Escrita de si/ escrita da História | Ângela de Castro Gomes

Organizada por Ângela de Castro Gomes, chega-nos uma significativa contribuição ao debate teórico-metodológico referente à “escrita de si”. Embora sempre tenham sido usados como fontes pelos historiadores, o conjunto de fontes documentais composto por diários, correspondências, biografias e autobiografias, apenas recentemente passaram a ser considerados fontes privilegiadas de análise e objetos da pesquisa histórica. Resultado das transformações na prática historiográfica vindas da consolidação da chamada História Cultural, segundo a organizadora também social e política, que estabeleceu novos recortes e temáticas, bem como objetos, metodologias e fontes ao trabalho do historiador.

Visto que ainda são poucos os estudos voltados a uma reflexão sistemática sobre esse tipo de texto na área da história, a coletânea composta por dezesseis artigos não se apresenta como uma obra definitiva. Mas sim, como uma amostra expressiva das diversas possibilidades e limites do trabalho historiográfico que se utiliza desse conjunto de documentos seja como fonte, seja como objeto de pesquisa. “Exercícios de análise” demarcados pelo debate das relações ente história e memória, pela questão da temporalidade e pelo enfretamento da questão da dimensão subjetiva dessa documentação, onde se estabelecem procedimentos metodológicos de críticas as fontes históricas que descartam “a priori qualquer possibilidade de se saber “o que realmente aconteceu” ou, a “verdade dos fatos”.

a escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua verdade”. (…)O que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de “dizer o que houve”, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento (GOMES, 2004: 14).

O trabalho de crítica exigido por essa documentação não é maior ou menor do que o necessário com qualquer outra fonte de análise. No entanto deve levar em conta determinadas características próprias da “escrita de si”, tais como as relações do texto com seu “autor”, seus objetivos e perspectivas na construção voluntária ou involuntária do “eu”. Bem como, tratando-se da escrita epistolar, atentar-se para uma série de questões que não envolvem apenas o indivíduo “autor” da carta, mas também a relação que se estabelece com o “receptor”, a quem ela se dirige (p.10-22).

A coletânea está dividida em duas partes cuja apresentação dos temas segue uma ordem cronológica que percorre a história do Brasil desde meados do século XIX até o fim do século XX. A primeira parte é composta de sete artigos e tem na “escrita de si” seu objeto de análise. São textos voltados para figuras intelectuais de destaque tais como Gilberto Freyre, Oliveira Lima, Monteiro Lobato e Capistrano de Abreu. Cinco deles trabalham com a correspondência pessoal enviada e recebida entre esses intelectuais. Nelas estão explícitas suas relações de amizade, trabalho, idéias, projetos opiniões, interesses e sentimentos. Redes de sociabilidade que possibilitam analisar o “mundo das letras” através das relações estabelecidas em espaço privado e refletidas no espaço público através da troca de favores, e mesmo, de uma espécie de apadrinhamento que dinamiza a circulação das idéias nos meio intelectuais.

Nessa perspectiva, estão os artigo de Angela de Casto Gomes, “Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre”, de Lúcia Paschoal Guimarães e Valdei Lopes de Araújo: “O sistema intelectual brasileiro na correspondência passiva de John Casper Branner”, de Giselle Martins Venâncio: “Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história”, de Tânia Reina de Luca: “Monteiro Lobatto: estratégias de poder e auto-representação n´A Barca de Gleyre” e ainda, “Paulo amigo: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu” de Rebecca Gontijo.

Os outros dois artigos dedicam-se à análise de um diário de juventude e a uma reflexão comparada em torno de quatro registros autobiográficos do conselheiro Antonio Pereira Rebouças. Antonio Paulo Rezende em “Freyre: as travessias de um diário e as expectativas da volta” e Hebe Maria Mattos e Keila Grinberg em “Lapidário de si: Antonio Pereira Rebouças e a escrita de si”, centram sua análise na perspectiva da “construção de si”. A primeira através de um diálogo do autor consigo mesmo, um diário de adolescência que a priori não tinha objetivo de publicação. A segunda através da comparação entre os registros biográficos de Antonio Pereira Rebouças, onde evidencia-se a preocupação do Conselheiro e de seu filho, André Rebouças, em construir uma memória, escolhendo fatos e feitos pelo qual pretendia definir-se.

A segunda parte, composta por nove artigos, apresenta a “escrita de si” como fonte para a discussão de determinadas questões da história do Brasil. Também verifica-se textos que a recortam tanto como fonte quanto como objeto de estudo. Dialogando principalmente com as temáticas de gênero e da política, estes estudos abarcam também a “escrita de si” realizada pelos chamados homens e mulheres “comuns”.

A análise de correspondências também é predominante nesse espaço. São cinco artigos voltados a diferentes temáticas e contextos. “Correspondência familiar e rede de sociabilidade”, de Marieta de Moraes Ferreira, “Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado (1932-1938)”, de Lídia Vianna Possas, e, de Regina Guimarães Neto e Maria do Socorro de Souza Araújo: “Cartas do Chile: os encantos revolucionários e a luta armada no tempo de Jane Vanini”, centram-se na questão do gênero. Como nos coloca Marieta de Moraes Ferreira,

nas últimas décadas tem sido crescente o número de estudos sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. Os trabalhos existentes em geral privilegiam as mulheres anônimas, pertencentes ás camadas populares, ou figuras de destaque, de papel reconhecido um momentos ou eventos da história do país (p.241).

Os três artigos partem ao encontro dessas mulheres anônimas ou de destaque em determinados momentos e eventos da história do país. Permeado pelo estabelecimento de redes de sociabilidade, construídas na esfera pública e privada e, cujos laços eram preservados através da troca de correspondência, temos a trajetória de Honestalda de Moraes Martins, que alcançou papel de destaque, após a morte do marido, como fazendeira e mulher de negócios no começo da década de 1930. Através das cartas enviadas à família esboça-se a participação política ativa da militante Jane Vanini na resistência contra a ditadura militar no Brasil e no Chile. E estabelecendo um diálogo entre esses dois elementos, redes de sociabilidade e participação política, temos “as vozes femininas”, que dirigem correspondências ao líder integralista Plínio Salgado, explicitando as relações entre os gêneros dentro da Ação Integralista Brasileira.

Ainda perfilam-se os artigos “Ao mestre com carinho, ao discípulo com carisma: as cartas de Jango a Getúlio”, de Jorge Ferreira, e “Getúlio Vargas: cartas-testamento como testemunhos de poder”, de Maria Cecília D’Araújo. O primeiro é centrado nos laços de amizade e apadrinhamento político estabelecidos entre João Goulart e Getúlio Vargas. O segundo analisa a intencionalidade presente nas cartas-testamento de Getúlio Vargas. Ainda que elaboradas em momentos políticos diversos elas seguem a “opção da morte como gesto público, morte-tragédia” (p.306). Uma perspectiva de “construção de si”, ou de sua morte, suicídio, “produto de dramas históricos dos quais poderia sair como vítima” (p.306).

Completam a lista três artigos que se utilizam da análise de diários e dos registros contidos no Livro Tombo da diocese de Cratéus, “A escrita da intimidade: história e memória no diário da viscondessa de Arcozelo”, de Ana Maria Mauad e Mariana Mauze, de Antonio Torres Montenegro: “Arquiteto da memória: nas trilhas dos sertões de Crateús”, sendo este complementado por entrevistas e, “O diário de Bernardina”, de Celso Castro. O primeiro é centrado em uma história do cotidiano. Trata-se de um diário mantido pela então viscondessa de Arcozelo, não no intuito do registro íntimo, ou de um diálogo consigo mesma. Mas “por uma narrativa da lida diária, das relações sociais de classe, da rede de sociabilidade, da manutenção do patrimônio e do cuidado com os filhos” e cuja análise perpassa o contexto da sociedade brasileira no final do século XIX (p.202).

Nos outros dois artigos evidenciam-se o trabalho de análise da “escrita de si’ combinada a outras metodologias e fontes históricas. Antonio Torres Montenegro se beneficiará da história oral. Após o acesso aos registros feitos pelo Padre Fragoso, a realização da entrevista complementa a perspectiva da construção da memória da diocese de Crateús em prol da manutenção de seu projeto pastoral dito inovador na década de 1960. Já Celso Castro, colocará os registros cotidianos e pessoais do diário de Bernardina Constant de Magalhães Serejo, filha de Benjamim Constant, frente a um “pano de fundo” mais amplo, cruzando informações com dados e fontes oficias. Recurso que permitiu ao autor confirmar fatos e preencher lacunas referentes aos dias que antecederam a proclamação da República no país.

O trabalho que fecha a coletânea constitui uma escolha a parte da organizadora frente à “originalidade da fonte e o interesse que desperta” (p.22). “De ordem superior….os bilhetinhos da censura e os rostos das vozes”, de Beatriz Kushmir não se enquadra como análise centrada na “escrita de si”, mas dialoga com vários estudos do livro que enfocam o regime militar. O trabalho centra-se em apontar não apenas a prática da censura mas, principalmente, quem eram os censores e nas particularidades referentes à trajetória da profissão no país.

Tratando-se de uma coletânea organizada como contribuição a um debate ainda carente de reflexões mais profundas, o livro “Escrita de si, escrita da História” é uma demonstração interessante dos resultados e possibilidades deste campo na área da pesquisa histórica. Ao final de sua leitura não encontramos um modelo fechado de análise. E sim diferentes propostas metodológicas que dialogam entre si em prol da elaboração de categorias analíticas que possibilitem uma exploração cuidadosa e produtiva dessas fontes documentais.


Resenhista

Victória Gambetta da Silva – Mestranda em História – PPGHST – UFSC, Bolsista CAPES.


Referências desta Resenha

GOMES, Ângela de Castro (Org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Resenha de: SILVA, Victória Gambetta da. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 1, n. 1, jan./jun. 2007. Acessar publicação original [DR]

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