A partir dos anos 1980 a historiografia brasileira passou por um processo de renovação, revisitando a história do Brasil sob um novo enfoque e trazendo à tona elementos que antes eram quase invisíveis para ela. Essa nova historiografia passou a dar visibilidade a diversos agentes sociais enquanto participantes de processos históricos, observando suas dinâmicas cotidianas que, por sua vez, evidenciam a complexidade das relações entre os mais diversos grupos sociais. É, portanto, a partir de uma nova perspectiva teórica e metodológica, de um novo olhar e de novas questões que tais agentes, até então desconsiderados ou considerados irrelevantes para os processos históricos e identitários, foram visibilizados pela historiografia.
O livro Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII: Estratégias de Resistência Através dos Testamentos, de autoria do historiador Eduardo França Paiva, apresenta agora sua terceira edição, e é caudatário dessa transformação na perspectiva historiográfica. A primeira edição da obra resultou de pesquisa de mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História e defendida ainda na década de 1990 na Universidade Federal de Minas Gerais – instituição em que, atualmente, o autor é professor do Departamento de História. Estudando o sistema escravista, o autor focaliza três aspectos que seriam peculiares às Minas Gerais do XVIII: “o processo de libertação do escravo, o papel desempenhado pelo elemento forro – sobretudo a mulher – na organização socioeconômica da capitania e o exame das relações sociais retratadas nas nossas principais fontes de pesquisa, isto é, os testamentos” (PAIVA, 2009, p.34).
Além da nova edição trazer uma introdução, quatro capítulos e observações finais, traz também, ao final do segundo capítulo, um caderno de imagens intitulado Personagens, costumes e objetos das Minas Gerais, no qual estão incluídas reproduções de pinturas de teto, algumas imagens de esculturas em madeira e gravuras feitas pelo artista Carlos Julião (todas, reprodução de obras dos séculos XVIII e XIX). A edição conta ainda com outro caderno, em que reproduz as imagens originais de alguns dos documentos trabalhados no texto e, em seguida, suas respectivas transcrições.
Consta também uma apresentação da terceira edição, escrita pelo próprio autor, que faz uma releitura da obra em tom de autocrítica, evidenciando algumas mudanças de perspectivas teóricas e conceituais ocorridas no decorrer dos anos que a separam do texto original. Nesta apresentação, Paiva faz uma revisão do seu próprio percurso e trajetória intelectual, refletindo acerca da compreensão sobre história, a prática do historiador e outras questões inerentes ao seu ofício. Deixa explícitas as perspectivas com as quais trabalhava à época e as que trabalha atualmente. Um exemplo disso foi a revisão feita ao conceito de resistência. Tal conceito foi fundamental para sua análise e entendimento das relações entre senhores e escravos no sistema escravista da Capitania das Minas Gerais do século XVIII. Resistir, para o autor, significava mais do que simplesmente se rebelar, fugir ou cometer ações violentas contra os senhores. Ampliando esse conceito, Paiva demonstra que os escravos utilizavam outras práticas, não apenas as violentas, para se sobressaírem naquela sociedade. Analisando o tema da escravidão a partir daquele conceito, demonstrou que a Capitania era bastante peculiar frente às demais, no que tange às relações escravistas. Contudo, conforme esclarece o autor, tal conceito foi sendo abandonado ao longo do tempo, de acordo com a aproximação de outras perspectivas teóricas e metodológicas que o possibilitaram incorporar novas fontes, visões e temáticas a respeito da sociedade colonial.
Da introdução ao segundo capítulo, o autor situa o leitor tanto no ambiente da sua pesquisa, quanto no das Minas Gerais do século XVIII. Tudo isso é demonstrado de forma clara e objetiva, expondo o objeto de investigação, o corpus documental organizado, a metodologia e os conceitos com os quais trabalhou e as implicações dessa análise para o estudo dessa temática; além de oferecer uma apreciação do que seria Minas Gerais e a região estudada em seus aspectos sociais, econômicos e demográficos que caracterizam o período.
Foi a partir da análise de testamentos registrados na Comarca do Rio das Velhas, sediada na Vila de Sabará – uma das principais da capitania, por contar com uma economia complexa e diversificada e conter um dos maiores contingentes populacionais do período, principalmente de negros e mulatos, entre outras “qualidades” – que o autor evidenciou uma das principais práticas de libertação de escravos: as coartações. Tal prática revelou um tipo de relação entre senhores e escravos que pôs em xeque toda uma tradição historiográfica que percebia aquela relação a partir de dicotomias, tais como: vencedor/vencido, dominador/dominado, algoz/vítima. A prática da coartação revelava um espaço existente na sociedade mineira do Setecentos, que permitia negociações entre senhores e escravos, visando a libertação desses últimos. Essas práticas foram largamente utilizadas pelos escravos, das mais diversas formas e estratégias, para conseguirem suas alforrias.
Com tal abordagem, o autor se afasta de um tipo de historiografia, especialmente a marxista, que entendia a relação senhor/escravo baseada exclusivamente na violência. A perspectiva da relação unicamente violenta acabou por ofuscar, durante muito tempo, as particularidades das relações sociais dentro do sistema escravista. A ênfase na prática das coartações, além de ter evidenciado que as relações iam além da violência, demonstrou que tais ações desdobravam não somente em uma forma dos escravos conseguirem sua liberdade, mas também como um meio de se sobressaírem dentro daquele sistema, obtendo inclusive, ascensão econômica.
As diversas estratégias utilizadas pelos escravos para conseguirem a liberdade foram entendidas pelo autor como resistência pragmática: o escravo agia a partir do próprio sistema. Enquanto que, para uma historiografia mais tradicional, resistir significava necessariamente o confronto violento entre senhores e escravos. O conceito trabalhado por Paiva demonstrou que a resistência também se dava por outras vias, como: a compra da liberdade por meio de negociações com o senhor – coartação – ou mesmo a conquista da alforria por fidelidade e prestimosidade. Essa perspectiva evidencia a atuação dos escravos como agentes históricos, demonstrando que compreendiam os espaços e possibilidades dentro daquele sistema, deixando de serem vistos como simples vítimas.
Mesmo que Paiva destaque na apresentação da nova edição que não trabalha mais com essa ideia de resistência, devemos considerar a importância desse conceito no momento de produção do texto original. A forma como foi trabalhado o conceito de resistência resultou em uma abordagem inovadora, ao possibilitar na ampliação do entendimento das relações escravistas, trazendo novos elementos que subsidiaram um avanço nos estudos sobre a temática da escravidão. Tal abordagem explicitou a mobilidade social existente nas Minas Gerais, e consequentemente, desvelou a complexidade das relações sociais e, por que não dizer, das relações pessoais, dentro daquela sociedade do Setecentos. Tal perspectiva foi fecunda por revelar que não foram apenas os escravos que tiveram que se adaptar às situações impostas pelo sistema escravista, mas também os senhores tiveram que modificar suas relações com aqueles para conseguir manter o sistema.
Nos dois últimos capítulos e nas observações finais, o autor reconstrói o cotidiano da sociedade mineira do XVIII, enxergando nos testamentos analisados, elementos da vida social que revelaram uma complexa estrutura, baseada nos aspectos que envolviam os processos de libertação dos escravos. É nessa parte que se encontra o ponto alto do livro. É nela que o autor analisa a importância das mulheres escravas e forras na organização daquela sociedade, bem como, as estratégias utilizadas para conseguir a liberdade e, em alguns casos, ascensão econômica e social.
Se as estratégias para que homens e mulheres escravos conseguissem a liberdade, eram basicamente as mesmas, Paiva demonstrou que, para as mulheres, as condições eram menos rígidas. Segundo o autor, elas acrescentaram às suas estratégias os intercursos sexuais, explorando a intimidade afetiva para conquistarem privilégios e alforrias para si e para seus filhos, muitas vezes bastardos dos seus senhores. Além disso, teriam “uma vivência menos penosa no período de cativeiro e condições materiais básicas para a vida após a manumissão” (PAIVA, 2009. p. 121). Paiva, a partir da análise dos testamentos – vários deles de forras e de seus descendentes libertos e nascidos livres – conseguiu enxergar nesses elementos que foram durante muito tempo tidos como vítimas passivas do sistema, no qual estavam inseridos, agentes ativos naquela sociedade.
Na sua terceira edição, Escravos e Libertos nas Minas Gerais do XVIII, se mostra bastante atual e vigoroso a respeito da temática da escravidão. O autor comenta, na apresentação da terceira edição, que o tema da coartação seria o que suscitaria um grande interesse de jovens pesquisadores em relação ao tema. Sem dúvida, o tema é fascinante e a maneira como é analisado é instigante. Mas, talvez o que atraia e suscite a leitura dessa obra seja a ampliação da visão a respeito do cotidiano e das relações de força entre senhores e escravos, demonstrando que estes últimos não eram apenas vítimas passivas do sistema imposto, mas que eles conseguiam perceber as possibilidades de atuação dentro desse sistema e agiam conforme seus próprios interesses. Essa mudança na percepção das dinâmicas sociais apresentadas na obra nos permite novas perspectivas de estudo, possibilitando, até mesmo, estender o olhar para outras questões e outros grupos sociais.
Resenhista
João Paulo Costa Rolim Pereira – Mestrando pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: jpaulocrolimpereira@gmail.com
Referências desta resenha
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. 3ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009. Resenha de: PEREIRA, João Paulo Costa Rolim. Temporalidades. Belo Horizonte, v.3, n.2, p.222-225, ago./dez. 2011. Acessar publicação original [DR]
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