Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca | Marcelo Badaró Mattos

Durante décadas, os pesquisadores avaliaram que o nascimento da classe trabalhadora brasileira foi epifenômeno mecânico das determinações estruturais: o florescimento do capitalismo industrial e a expansão do trabalho assalariado, após o fim do sistema escravista. Essas duas determinações estruturais teriam exacerbado a luta de classes ou, antes, engendrado a própria classe trabalhadora, que, nesse processo, adquiriu consciência de seu papel histórico, fundando sindicatos e partidos classistas na transição do século XIX para o século XX. Portanto, a formação da classe trabalhadora brasileira estava inextricavelmente ligada ao trabalho industrial-fabril e operário. O trabalhador livre e o trabalhador escravo no Brasil eram abordados, quase que invariavelmente, numa relação de dicotomia fixa, como duas categorias antagônicas e dissociadas, que jamais se aproximavam ou entrecruzavam em termos de vivências e experiências político-culturais.

Talvez, por isso, durante um longo tempo os especialistas da história social do trabalho ficaram apartados dos especialistas da história da escravidão. Os primeiros, quando investigavam a formação da classe trabalhadora brasileira, costumavam negligenciar a participação dos escravizados e ex-escravizados no processo. Já os segundos não davam a devida importância às experiências escravas no processo social do trabalho. Felizmente, esse panorama vem mudando, e as falsas dicotomias sendo superadas. Os historiadores estão cada vez mais se convencendo de que essas duas áreas de estudos e pesquisas são confluentes, entrelaçam-se, tecem interconexões, devendo, portanto, ser tematizadas de forma dialógica.

Um bom exemplo disso é o livro de Marcelo Badaró, Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca, que foi publicado em 2008 e é o objeto da presente resenha. Badaró é professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Depois de publicar sobre os “novos” e “velhos” sindicalismos no Rio de Janeiro em trabalhos anteriores, o historiador recuou no tempo e, agora, explora a formação da classe trabalhadora carioca num recorte cronológico que se inicia nos anos de 1850 – momento de apogeu e declínio da presença escrava na cidade, fase dos primeiros movimentos grevistas e início da publicação de uma imprensa identificada como de trabalhadores – e se estende até os primeiros anos da década de 1910, quando as experiências grevistas e as lutas sociais ganhavam maiores proporções; os partidos políticos operários e socialistas se consolidavam e as entidades sindicais classistas já estavam estruturadas com relativa estabilidade.

Sua tese é de que, na formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro, foram importantes as experiências político-culturais acumuladas, quer por trabalhadores livres, quer escravizados e ex-escravizados, que compartilharam com os livres processos de trabalho, aprendizados políticos e espaços de sociabilidade, cultura e lazer. Os escravizados e livres se comunicavam cotidianamente, muitas vezes dividiam o mesmo ambiente de trabalho, trocavam experiências diversas, permutavam ideias e entrealimentavam projetos emancipatórios. Ambos conviviam no mesmo espaço urbano e desenvolveram discursos identitários, formas associativas e ações coletivas que, ora se aproximavam, ora se distanciavam, mas antes coexistiam. Para desenvolver essa tese, o autor se baseou nos postulados marxistas de Edward Palmer Thompson, para quem a formação da classe trabalhadora envolveu os condicionamentos, tanto estruturais e objetivos, quanto os culturais e subjetivos, como sistemas de valores, crenças, moral e atitudes. A articulação de uma identidade de classe, segundo Thompson, deve ser pensada como “processo e relação” – processo de auto-identificação dos trabalhadores a partir de seus interesses comuns e da relação de oposição aos interesses dos seus exploradores – e não como “lugar estrutural” ou produto mecânico da industrialização. Seguindo esses pressupostos epistemológicos, Badaró consultou uma constelação de documentos (jornais que se definiam como representantes dos “artistas” ou operários, estatutos de associações e sindicatos, compromissos de irmandades, processos e pareceres do Conselho do Estado Imperial, registros civis, relatórios, memórias de militantes etc.) e estruturou sua pesquisa em quatro capítulos.

O primeiro capítulo (“Trabalho, vida urbana e experiência da exploração”) focaliza o cenário econômico e social do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e princípios do século XX, dando uma atenção especial à demografia urbana e à distribuição da população trabalhadora, entre a escravidão e trabalho livre, passando pelas modalidades de exploração não assalariada, quando não compulsória. O autor ainda discute, neste capítulo, as relações de trabalho e o perfil da mão de obra, nas fábricas e nas ruas; com as condições de vida (moradia, saúde, salário e emprego). O segundo capítulo (“Formas de organização”) mapeia e examina as formas de organização arquitetadas pelos trabalhadores – escravizados e livres – ao longo do tempo, como irmandades, associações de auxílio mútuo, sindicatos e partidos. O autor encontrou mais de 180 associações mutuais, beneficentes ou congêneres no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1850 e 1900. São pautados os objetivos, o perfil e o número de participantes, as regras de funcionamento, entre outros aspectos que marcaram a história dessas associações. Chamam a atenção, nesse contexto, a Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor e a Sociedade Cooperativa dos Empregados em Padarias do Brasil. A primeira porque, ao reunir os “homens de cor” (livres ou escravos) no Rio de Janeiro na década de 1870, demonstrava a disposição desses segmentos de se apropriarem de formas de organização e solidariedade coletiva de trabalhadores; já a segunda associação chama a atenção pelas mutações e re-elaborações ao longo dos anos. A Sociedade Cooperativa dos Empregados em Padarias do Brasil foi criada pelos trabalhadores do setor em 1890, tendo por lema “Trabalhar para nós mesmos!”. De vida efêmera, deu lugar, tempo depois, à Sociedade Cosmopolita Protetora dos Empregados em Padarias que, além do mutualismo, tinha uma conotação sindical, de viés socialista. Em 1902 um grupo de dissidentes, sob o estímulo dos donos de padarias, soergueu a Liga Federal dos Empregados em Padarias. Se no início esta fazia crítica aos métodos políticos da ação direta, preconizados pelos anarquistas, a partir de 1910-1912 ela abraçou um linha mais combativa e, em 1914, mudou seus estatutos, assumindo integralmente a orientação “revolucionária”, transformando-se, assim, no Sindicato dos Operários Panificadores:

A seqüência de experiências associativas dos padeiros, embora não possa ser tomada como “exemplar” – como, aliás, nenhuma outra seria -, foi representativa de uma gama de possibilidades, com as suas variadas orientações políticas – cooperativista, socialista, sindicalista revolucionária – e as diferentes denominações – Sociedade Cooperativista, Sociedade Cosmopolita, Liga Federal, Sindicato. Mais significativo é o fato de que as primeiras experiências de organização coletiva surgiram no calor da luta contra a escravidão (Badaró, 2008, p.134).

No terceiro capítulo (“Resistência e Luta”), a intenção é discutir as formas de lutas – específicas e/ou comuns – de trabalhadores escravizados e livres, sem perder de vista o grau de continuidade/descontinuidade das modalidades de mobilizações anteriores e posteriores à Abolição. Como formas de ação coletiva, são investigadas desde quilombos urbanos até greves, sem se esquecer das revoltas e dos movimentos sociais de ampla repercussão política, como o abolicionismo. Chama a atenção, neste capítulo, o questionamento à periodização clássica da história das greves no Brasil. Se já foi dito que a primeira greve do Rio de Janeiro ocorreu em 1858, ignoraram-se as paralisações e lutas dos trabalhadores escravizados, pois, como argumenta Badaró, “deveríamos pensar em movimentos de suspensão do trabalho também por parte dos escravizados, para dar conta da diversidade de ações desse tipo na experiência dos trabalhadores cariocas na segunda metade do século XIX” (BADARÓ, 2008, p. 147). O quarto capítulo (“Consciência”) dedica-se à questão das formas de consciência da classe dos trabalhadores. Para tanto, o autor esquadrinha os discursos das organizações e das lideranças, bem como as evidências de manifestações coletivas de uma identidade específica. Ancorado sobretudo nos jornais de caráter popular, ele acompanha as nuances das categorias (auto-)identificatórias – como artistas, operários, trabalhadores, escravos, africanos, livres, libertos – e suas vicissitudes ao longo do tempo, assim como rastreia os projetos político-ideológicos discutidos pelos trabalhadores, “sendo possível localizar os momentos em que o sentido de ‘classe’ passa a ser predominante aquele que identifica uma consciência coletiva” (BADARÓ, 2008, p. 33). Se foi na década de 1890 que se gestou uma “cultura associativa” dos trabalhadores cariocas, o autor julga ser possível tratar de “uma classe trabalhadora” quando reporta-se às organizações, movimentos e manifestações da consciência operária nos primeiros anos do século XX.

O livro de Badaró está em sintonia com as últimas tendências historiográficas no campo do marxismo, na medida em que busca apreender a experiência da classe trabalhadora carioca de maneira ampla, conjugando processo de trabalho, formação de identidades, cotidiano e cultura de classes, sem, contudo, olvidar dos objetos mais tradicionais dessa área de estudo e pesquisa, como a organização sindical e a participação político-partidária. Ao se ler o livro, resta pouca dúvida de que a formação da classe trabalhadora foi um processo longo, multifacetado, plural, marcado por tensões, contradições e ambiguidades. Diversos atores e grupos foram protagonistas dessa trama; heterogêneas formas de organização, protesto e luta fizeram parte do jogo. Múltiplas respostas foram formuladas para os dilemas do contexto. E, talvez, o mais instigante, todo esse processo foi influenciado pela experiência escrava. A articulação de uma identidade de classe, ao menos no Rio de Janeiro, não pode ser pensada desvencilhada de outras formas identitárias, especialmente a étnico-racial.

Entre as lutas dos escravos pela liberdade e as primeiras lutas de trabalhadores assalariados urbanos na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, existiam elos significativos e compartilhamento de experiências – de trabalho, de vida comunitária, de organização, de ação coletiva – e de traços diferenciados mas combinados de valores e identidades acionados pelas novas formas de consciência de classe dos trabalhadores. E esses são elementos essenciais para uma compreensão mais ampla do processo de formação da classe trabalhadora na situação histórica que esta análise privilegiou (BADARÓ, 2008, p. 225).

Já não se admite mais explicações simplistas, unívocas e esquemáticas, baseadas em paradigmas deterministas, apriorísticos e, o pior, sem lastros nas fontes e evidências. As mobilizações coletivas, criadas com a finalidade de defesa dos interesses dos trabalhadores – livres e escravizados –, agenciaram e equacionaram (ou procuraram equacionar) a dimensão profissional, de classe e étnico-racial, simultaneamente. E isto constituiu uma ferramenta fundamental na construção da identidade e na formação da consciência de classe. O eixo em partidos e sindicatos precisa ser revisto, assim como os marcos cronológicos tradicionais que definem a formação da classe trabalhadora brasileira. Muitas vezes as formas associativas “antigas” (como sociedades mutualistas e beneficentes) e “novas” (partidos e sindicatos) conviveram, mesclaram-se, conservando sua especificidade ou adaptando-se a novas situações. Portanto, organizações, ações coletivas e tradições identitárias foram inventadas entre os trabalhadores – livres e escravizados, brancos e negros – ainda no tempo do cativeiro e não sumiram num passe de mágica com a Lei Áurea, embora fossem reinterpretadas no pós-Abolição.


Resenhista

Petrônio Domingues – Doutor em História (USP) e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).


Referências desta Resenha

MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. Resenha de: DOMINGUES, Petrônio. Pretos e brancos: experiências comuns. História em Revista. Pelotas, v.16, p. 147-151, dez./2010. Acessar publicação original [DR]

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