Escravidão Moderna / Territórios & Fronteiras / 2017

A Afro-América – as zonas do Novo Mundo que mais contaram com o aporte demográfico de africanos escravizados – engloba uma diversidade enorme de países, com trajetórias históricas muito distintas. Desde a década de 1930, antropólogos e historiadores exploraram cuidadosamente, a partir de múltiplos referenciais teóricos e metodológicos, os fundamentos comuns e as divergências da herança africana para a formação de nações tão díspares como Brasil, Estados Unidos, Cuba, Haiti, Jamaica, Venezuela, Colômbia e Suriname, dentre outras. Ao mesmo tempo que se discutia o problema dos aportes e das recriações culturais, economistas, sociólogos e historiadores lançavam luz sobre o peso da escravidão africana nas Américas para o deslanche econômico do Velho Mundo, chamando atenção para a importância crucial do colonialismo e da economia escravista de plantation na formação da modernidade capitalista.

Os especialistas jamais chegaram a um consenso a respeito desses problemas. De todo modo, os avanços dos estudos sobre a escravidão na África e sobre o tráfico transatlântico de escravos rapidamente indicaram que, de todas as regiões do Novo Mundo, o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados. Conforme os dados disponíveis no sitio www.slavevoyages.org, fruto de um notável esforço coletivo de historiadores de diversos países, cerca de 10 milhões e 700 mil escravos foram desembarcados nos portos americanos entre 1500 e 1866, dos quais cerca de 4 milhões e 864 mil chegaram ao Brasil. Portanto, o país importou, sozinho, 45% de todos os africanos forçados a migrar como escravos para as Américas. As colônias da América portuguesa estiveram entre as primeiras a receber escravos africanos, e o Império do Brasil foi o penúltimo país a abolir o infame comércio.

Até fins do século XVII, a colonização portuguesa de suas possessões na América, fundada de início na escravidão indígena e, em sequência, na escravidão africana, limitara-se ao litoral, com a exploração de zonas açucareiras dispersas entre si – Pernambuco e Bahia, e, em escala muito menor, Rio de Janeiro e São Vicente. Dado o custo do frete para uma mercadoria de volume considerável e relativamente perecível, os engenhos de açúcar não tinham como se afastar dos portos atlânticos. As únicas exceções de interiorização econômica (a pecuária no Vale do Rio São Francisco e os raids de escravização indígena) eram atividades complementares à economia açucareira, sendo ambas fundadas em uma mobilidade intrínseca.

No açúcar, na pecuária e no infame “bandeirantismo” paulista, a escravidão constituía a relação básica de trabalho. As descobertas de ouro no interior da América portuguesa a partir da década de 1690, muito além das fronteiras estabelecidas em Tordesilhas, seguiram esse padrão estabelecido desde o século XVI, conferindo-lhe, no entanto, nova substância e caráter. Em primeiro lugar, por uma notável intensificação no tráfico transatlântico de escravos. Ao longo de todo o século XVII, haviam sido desembarcados cerca de 784.000 africanos escravizados para trabalhar no complexo econômico articulado em torno do açúcar. Somente na primeira metade do século XVIII, sob o impacto direto da nova economia aurífera, chegaram ao Brasil quase 900.000 africanos escravizados; somados aos desembarques da segunda metade do século, ao longo dos setecentos o Brasil importou cerca de 2 milhões de escravos africanos.

Em segundo lugar, pelo espraiamento espacial da escravidão negra. O ouro, como uma mercadoria com altíssimo valor agregado, justificava economicamente sua extração em lugares muito afastados do litoral e completamente despovoados. Mas, em pouco tempo, as demandas de consumo básico e de luxo provocadas pelo adensamento populacional nos centros urbanos dispersos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ativaram a economia interna em lugares até então completamente apartados. Do Rio Grande do Sul ao Piauí, com mulas para o transporte interno e charque para o consumo humano, a pecuária articulou-se à extração de ouro. Rotas de escoamento atrelaram o Mato Grosso a Belém do Grão-Pará, cruzando os rios do Vale Amazônico. São Paulo e o sul de Minas Gerais tornaram-se os celeiros das cidades e vilas do ouro, e os portos do Rio de Janeiro e da Bahia converteram-se em portas de entrada atlântica de mercadorias importadas para o ouro – a principal das quais, evidentemente, eram os africanos escravizados.

Em terceiro lugar, esse espraiamento espacial da escravidão negra na América portuguesa significou, também, seu espraiamento pelo tecido social. Dados os custos relativamente baixos da “mercadoria” escrava, propiciada pelo fato de o tráfico transatlântico ser operado basicamente a partir dos portos brasileiros, todos os setores livres da América portuguesa – o que incluía o número crescente de afrodescendentes libertos ou nascidos livres – passaram a medir sua posição no espectro social pela propriedade de cativos. Noutros termos, a posse de escravos tornou-se a medida da pobreza e da riqueza no Brasil.

No momento da independência, essas práticas compartilhadas de escravização, criadas ao longo do século precedente e presentes de modo relativamente uniforme no Rio Grande do Sul, em São Paulo, em Minas Gerais, nas vilas auríferas de Goiás e Mato Grosso, no Vale do Rio São Francisco, no Vale Amazônico, no Maranhão, no litoral nordestino e nos grandes portos negreiros do Rio de Janeiro, Salvador e Recife serviram de solda para a construção da unidade nacional. Em um duplo sentido: por um lado, o fato de a posse de escravos ser disseminada pelos diversos estratos sociais levou a que os sujeitos sociais livres do Brasil, fossem brancos nascidos em Portugal ou no Brasil, fossem afrodescendentes negros ou mulatos, se vissem como partícipes de um conjunto de interesses unificados em torno da perpetuação da escravidão africana. Por outro lado, dada essa base escravista comum, as forças políticas regionais brasileiras tenderam muito mais para a convergência do que para a divergência, a despeito de todas as manifestações de contestação ao poder central, verificadas em especial no período de 1835 a 1845.

No período pós-independência, isto é, nos vinte e oito anos compreendidos entre 1822 e 1850, foram importados cerca de um quarto de todos os africanos que aqui chegaram durante três séculos e meio. Noutras palavras, no tempo em que o Brasil como nação soberana foi responsável direto pela gestão de seus negócios negreiros, importou-se proporcionalmente mais africanos escravizados do que em qualquer outra região do Novo Mundo, em qualquer outra época. Daí a validade da proposta analítica de uma “segunda escravidão” para descrever e analisar o novo conteúdo das relações escravistas brasileiras no século XIX. Como diversos historiadores têm demonstrado, três feixes de forças foram estruturantes para sua configuração: a novidade da forma institucional do Estado nacional, a geocultura do liberalismo centrista e os novos padrões econômicos surgidos com a integração de mercados da era do capitalismo industrial.

A diversidade espaço-temporal que marcou a trajetória histórica da escravidão brasileira colonial e nacional, bem como seus legados para o presente, constituem o objeto deste dossiê da Territórios e Fronteiras. Seus artigos apresentam uma pluralidade de linguagens teóricas para dar conta de objetos relativos à demografia histórica, à micro-história, à história regional, ao tráfico transatlântico de escravos, à degradação do trabalho nos séculos XX e XXI. De formas variadas, eles procuram enfrentar o desafio de articular eventos locais a processos globais, lançando luz sobre as forças mais amplas que permitiram a reprodução e a recriação da escravidão brasileira no tempo, no entanto com o emprego de lentes que não desconsideram as contingências de terreno enfrentadas pelos sujeitos históricos.

Dentre os temas aqui abordados, encontram-se as relações entre o tráfico transatlântico de escravos e as possibilidades de reprodução vegetativa da população escravizada; a reconfiguração das práticas do tráfico negreiro na África na passagem do século XVIII para o XIX; a disseminação social da propriedade escrava como condição de estabilidade do sistema escravista; a prática relativamente de escravos se apresentarem como proprietários escravistas; a conversão de colônias originalmente concebidas como zonas de trabalho livre em fronteiras mercantis da produção escravista de café; a precarização das relações de trabalho nas fronteiras agrícolas do século XX como parte das heranças da escravidão. Trata-se, em resumo, de um dossiê que oferece uma importante contribuição para a cada vez mais pujante historiografia sobre a escravidão no Brasil.

Rafael Marquese – Professor doutor do Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Doutor em História pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: marquese@usp.br

Dale Tomich – Professor de História e Sociologia da Universidade de Binghamton, Estados Unidos, além de diretor do Fernand Braudel Center na mesma instituição. Autor de, entre outros, Slavery in the Circuit Sugar: Martinique in the World Economy (Johns Hopkins University Press, 1990), e Pelo prisma da escravidão (EDUSP, 2011). E-mail: dtomich@binghamton.edu


MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.1, jan / jul, 2017. Acessar publicação original [DR]

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