Lançado em 2008, Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas é o primeiro livro publicado a partir das atividades do Grupo de Pesquisa “Escravidão e Mestiçagem”. O grupo foi criado em 2005, como desdobramento do Simpósio “Escravidão: sociedades, culturas, economia e trabalho”, no XXIII Encontro Nacional da ANPUH, ocorrido em Londrina. Em um segundo Simpósio, realizado no ano seguinte na cidade de Belo Horizonte, foi reforçada a disposição em ampliar as discussões acerca dos estudos sobre história da escravidão e das mestiçagens em uma perspectiva comparada, eixo central desse livro.
Sem perder de vista os aspectos locais e regionais que marcaram o escravismo e as mestiçagens, o grupo busca compreendê-los inseridos em processos mais amplos e complexos, no tempo e no espaço. A partir dessa perspectiva, o livro rompe, inequivocamente, com uma história comparativa tradicional, pautada em rígidas hierarquias sociais e culturais ou modelos históricos ideais a serem perseguidos.
Os capítulos do livro contribuem para que se compreendam as relações sociais para além da dicotomia senhor/escravo. Desvelam o universo escravista incorporando as relações sociais que senhores e cativos estabeleciam, não apenas entre si, mas com outros escravos, com ex-escravos, com pessoas livres pobres e com outros senhores. Traz à tona os laços familiares e de compadrio, as permanências culturais, as intrincadas redes de solidariedade e de informação que muitas vezes viabilizaram um maior espaço de negociação entre estes agentes históricos ou até mesmo a própria liberdade. Enfim, polemiza e dinamiza o debate acadêmico acerca da escravidão, aponta caminhos para novos diálogos com as fontes, enriquece os estudos regionais ao adotar a perspectiva comparada e ressalta a proximidade, apesar das diferenças e distâncias, das regiões sob domínio das Coroas ibéricas.
O texto de Eduardo França Paiva, “Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo Ibérico”, que abre o livro, apresenta uma série de considerações e conceitos que poderemos reconhecer na leitura dos trabalhos reunidos em Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. Após uma breve análise do pensamento historiográfico que optou por uma história comparativa tradicional, o autor aponta conceitos-chave para a produção de uma história comparada sob a perspectiva da relativização das experiências históricas dos povos ao invés da sua hierarquização.
Nessa ótica, para o estudo da escravidão e da mestiçagem, comparar possibilita perceber as permanências, os trânsitos e as conexões existentes nas histórias da miscigenação biológica e cultural processada no mundo ibérico colonial e do século XIX. Ou, ainda, o papel desempenhado pelos agentes mediadores, responsáveis pela transferência dos universos culturais de uma região à outra, as suas apropriações e ressignificações por grupos estranhos.
No texto de Douglas Cole Libby é retomada a questão do diálogo entre o específico e o geral. A especificidade da natureza das relações escravistas, marcada por nuances diferenciadas de uma região para a outra, estaria inserida no contexto das sociedades escravistas da América, assim definidas, em função de sua dependência em relação ao trabalho escravo de africanos e de seus descendentes.
Tendo como referência as sociedades escravistas do Sul dos Estados Unidos e do Brasil dos séculos XVIII e XIX, o autor discute o conceito de paternalismo de Eugene Genovese e o seu uso na prática da história comparativa. Após apontar as semelhanças e as diferenças entre ambas as sociedades escravistas, critica o uso generalizado do conceito de paternalismo. Também enfatiza a necessidade de se estabelecer a relação entre a extensão da posse de cativos e o grau ou tipo de paternalismo, seja para o Brasil ou para o sul dos Estados Unidos.
Trazendo o debate para as especificidades da marcante miscigenação da sociedade brasileira, Libby deixa uma questão instigante e desafiadora a ser respondida por aqueles que têm na escravidão e na perspectiva comparada seu objeto e método de pesquisa: como pensar as relações entre senhores africanos, crioulos ou pardos forros e seus cativos africanos e nativos?
Um dos aspectos mais positivos dos trabalhos reunidos em Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas é, sem dúvida, a diversidade das fontes utilizadas. Relatos de viajantes e de autores, quadros de castas, iconografia, documentos cartoriais, processos criminais, listas nominativas, máscaras de chafarizes, entre outras, possibilitam indiscutivelmente a imersão em vários aspectos do cotidiano e do universo cultural desta população escrava, liberta ou livre, de origem africana ou mestiça.
Com isso, reforça e enriquece uma tendência da historiografia sobre a escravidão inaugurada na década de 1980. Incorporada como elemento fundamental, a experiência escrava (valores e ações dos escravos) tornou-se peça imprescindível para a compreensão da escravidão e de suas transformações, dos significados e mudanças das estratégias de cativos e libertos ao longo do tempo e de acordo com os contextos demográficos, econômicos e sociais.
O grupo de pesquisa, ao associar os estudos acerca da mestiçagem aos da escravidão, inova ao repensar o universo de escravos e forros sob a ótica da heterogeneidade. Negros, crioulos, pardos, mulatos e cabras compunham um mosaico de origens e identidades diversas. Esses agentes históricos compartilhavam formas de distinção social ao se representarem e ao representarem os demais, com nítidas diferenças entre eles. Diferenças essas que não impediram as negociações, os acordos, as aproximações e o estabelecimento de laços pessoais por parte desses atores sociais – por conveniência, por afeição ou estratégia política –, fato que, forçosamente, indica uma realidade histórica bem mais complexa do que aquela que reúne todas essas “qualidades” sob o denominador comum de negros.
O texto de Andréa Lisly Gonçalves, acerca das práticas de alforria em Lima e na Comarca de Ouro Preto, no decorrer do século XIX, aponta uma série de variáveis comuns a essas práticas, em contextos bastante diversos. Enquanto na capital peruana a escravidão não se constituía em forma preponderante de mão-de-obra, a província mineira se destacava pelo maior plantel escravo do Império. Mas em ambos os casos, obter as manumissões passava por um longo processo de negociações, pressões e conflitos nas relações senhor/escravo.
Note-se ainda que, embora o foco do trabalho sejam as práticas de alforria, as redes de solidariedade, de informações e familiares, nem sempre explicitadas, constituem parte integrante daquelas. Fato indicativo do quanto a prerrogativa senhorial na concessão das alforrias era passível de ser moldada pelas relações traçadas no cotidiano.
O mesmo se pode dizer acerca do trabalho de Carlos Leonardo Kelmer Mathias. No texto sobre a participação escrava na Revolta de Vila Rica, ocorrida em meados de 1720, o autor analisa a complexidade da relação senhor/escravo a partir das negociações a ela inerentes, especificamente, no caso, na obtenção das alforrias. Em contexto diverso daquele analisado por Lisly, a família escrava, os laços de solidariedade e de compadrios aparecem mais uma vez como elementos fundamentais para a definição das margens de negociação nas relações escravistas.
Estas margens de negociação eram definidas não apenas na busca pela liberdade, mas no cotidiano do trabalho executado por escravos e livres pobres. O texto de Francisco Eduardo de Andrade insere faiscadores e jornaleiros, escravos, forros ou livres no contexto da mineração do século XVIII. Com isso, indica o quanto essas negociações poderiam ser alargadas e o autor aponta o recurso, por parte desses trabalhadores, a subsídios no direito português, para garantir a exploração coletiva dos depósitos e das formações minerais localizadas nos altos dos morros.
Importante destacar, ainda, que as próprias contingências do trabalho estimulavam os laços de amizade e de parentesco, as redes de convivência e de ajuda mútua nas perambulações dos negros gandaeiros. A associação aos trabalhadores livres pobres era essencial para que os ajustes entre eles ou com os detentores de lavras possibilitassem a forma conveniente de extração do metal. Transformados em interlocutores principais, é a partir desse universo escravo, africano e mestiço que uma imbricada teia social vai sendo tecida e o diálogo com os vários grupos sociais é travado.
Nos textos de Camila Fernanda Guimarães Santiago, José Newton Coelho Menezes e Fabiano Gomes da Silva, o mundo do trabalho é também o mundo dos trânsitos e das permanências culturais. Pintores, entalhadores e artesãos, africanos ou mestiços, atuam como mediadores, evidenciando em suas obras traços culturais do universo negro e mulato.
Este universo cultural indica formas de resistência às imposições do mundo branco e ao cativeiro em si que se revelam tanto nas complexas relações de elaboração cultural entre negros e índios oriundos da guerra Cabana, de Pernambuco e Alagoas, no Oitocentos, quanto na dinâmica social das comunidades negras de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, no mesmo período. Respectivamente, são estes os temas desenvolvidos por Janaína Cardoso e por Márcia Amantino.
O texto de Isnara Pereira Ivo, “Trânsito externo e o malogro da interiorização holandesa no Brasil”, é fundamental para aqueles que se propõem a pensar a colônia a partir do redimensionamento dos binômios “dominação” e “controle” ou dos dualismos engessados nas categorias “colônia” e “metrópole”.
Para Ivo, faz-se necessário reinterpretar as relações construídas pelas autoridades coloniais e os colonos e perceber os elementos de caráter híbrido, resultantes das práticas do Antigo Regime e das “novas substâncias agregadas no Novo Mundo” (p. 185). Essa perspectiva possibilita compreender como a permeabilização das fronteiras culturais se constitui em uma variável explicativa do sucesso do empreendimento colonial português e, em contrapartida, do insucesso holandês nos trópicos.
Os demais textos que compõem o livro tratam de temas como a família escrava; a produção das crônicas coloniais; os diferentes significados do serviço doméstico para as criadas e seus empregadores; a estrutura de posse e demografia escrava; a construção das identidades africanas sob diferentes perspectivas; a inserção dos trabalhadores livres e forros em uma sociedade escravista e o papel da evangelização dos africanos. Em abordagens que reforçam as preocupações centrais da obra, pontuam o diverso e o comum para áreas coloniais distintas e chamam a atenção para o quanto a dinâmica interna das capitanias ou províncias poderia variar no tempo ou no espaço.
Finalmente, podemos afirmar que, em seu conjunto, a coesão temática e metodológica da obra se destaca e que a diversidade das fontes e o leque de leituras possíveis enriquecem e desafiam os que se propõem a pensar a escravidão para além das rígidas fronteiras geográficas, nacionais ou locais, e culturais.
Resenhista
Marileide Lázara Cassoli – Doutoranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: ml.meyer@uol.com.br
Referências desta Resenha
PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira. (Org.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2008. Resenha de: CASSOLI, Marileide Lázara. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 10, n. 1, p. 249-253, 2010. Acessar publicação original [DR]
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