Escravidão, emancipação, história e historiografia: América Latina e experiências comparadas / História Unisinos / 2006
Este dossiê está organizado em duas sessões. Na primeira: Brasil, história atlântica e diáspora aparecem artigos enfocando a historiografia da escravidão, comércio de escravos, políticas de domínio, legislação e campesinato negro. Abre com uma abordagem panorâmica de Regina Xavier sobre a história dos africanos e afro-descendentes no Rio Grande do Sul. A autora investiga cenários e contextos da produção historiográfica rio-grandense, as perspectivas dos autores, campos de investigações, temáticas, espaços editoriais e fontes. Destaca o papel da revista do Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro e suas vinculações intelectuais na formulação de uma história da escravidão negra local, fortemente impregnada de uma dada perspectiva de nação e, portanto de região e suas especificidades no século XIX.
Trata-se de uma reflexão fundamental para ser conectada com a historiografia mais recente sobre o tema no Rio Grande do Sul. Não só dos importantes trabalhos de Bakos, Flores, Freitas, Maestri, Pesavento e Picollo1 entre outros já nos anos 1980, mas especialmente a tradição de Dante Laytano2 nos anos 1950 e 1960. Talvez possam ser recuperadas as interlocuções dos primeiros campos de estudos no Sul, articulando interesses pela diáspora e religiosidade africana, incluindo Herskovitss e outros que analisavam o chamado “passado africano” nas Américas3. A temática das vivências africanas e a construção da diáspora urbana mais do que um tema emergente se encontra solidificado em várias abordagens para o Rio Grande do Sul4.
O excelente artigo de Gabriel Santos Berute aprofunda isso ao perscrutar os registros de pagamentos do imposto da meia-sisa da Vila do Rio Grande no período de 1812-1822. Desvela tanto sobre impostos, valores de compra e venda, negociantes, com cenários e personagens do comércio negreiro intra-atlântico, como as procedências e perfis socioeconômicos de africanos e crioulos negociados para o Rio Grande nas primeiras décadas do século XIX. Qual o período de maior negociação de escravos? Como se articulava com a economia charqueadora e outras dimensões da sociedade riograndense? Quem eram os compradores de escravos? Quais características mercantis do tráfico intra-atlântico para o Rio Grande do Sul? Berute assinala a dimensão da população de escravos crioulos (embora mantida a predominância de cativos do sexo masculino) comercializados, indo em direção a um importante campo de estudos sobre a “crioulização” endógena da população escrava sulina, também articulada com taxas consideráveis de africanos ocidentais. As margens de uma história atlântica – menos de uma escravidão genérica – que consideram as variações translocais e conectadas de portos, personagens, dimensões e diásporas inventadas são aproximadas5. Parodiando Alberto Costa e Silva, assim como o Rio de Janeiro, o Rio Grande também era atlântico, posto que conectado entre centros, periferias, impérios e nações.
A historiadora Adriana Pereira Campos oferece uma interessante reflexão sobre os nexos do cativeiro e políticas de domínio no mundo escravista pós-colonial. Partindo da documentação da polícia provincial do Espírito Santo avalia o que denomina “ambigüidades” das relações entre o poder público e as políticas de domínio privado. Assim flagra uma face da montagem e o equilíbrio da construção da ordem da nação numa sociedade escravista e em permanente tensão na segunda metade do século XIX. Por fim, Flávio Gomes analisa as interfaces entre narrativas oitocentistas da repressão antimocambos com aquelas das memórias de comunidades negras, avaliando dimensões e expectativas na formação de micro-sociedades camponesas na escravidão e no pós-emancipação no Baixo Tocantins, região amazônica.
A segunda parte deste dossiê intitula-se Escravidão e Dimensões Comparadas: América Latina, sociedades escravistas e sociedades com escravos. Aparecem trabalhos enfocando história das idéias, história intelectual e reflexão historiográfica sobre a escravidão e abolição na Argentina, Colômbia, Venezuela e Uruguai. Ela é aberta com a instigante reflexão de Eduardo Restrepo sobre as representações e as narrativas discursivas sobre a Abolição na Colômbia na primeira metade do século XIX, em que destacam-se convergências, polarizações, argumentos e justificativas multivocais da sociedade em questão. Imagens de barbárie, incompatibilidade econômica, progresso, civilização e cidadania eram desenhadas em termos dialógicos. Com abordagem historiográfica, articulando história das idéias e história intelectual apresentam-se interessantes análises sobre escravidão e identidade na Venezuela, Uruguai e Argentina. Ramos Guedes oferece uma breve reflexão sobre a trajetória intelectual do importante historiador venezuelano Brito Figueroa. Lamentavelmente pouco conhecido na literatura sobre escravidão no Brasil, Figueroa destaca-se como importante historiador marxista da escravidão nas Américas, produzindo pesquisas fundamentais sobre a história econômica da escravidão venezuelana e as perspectivas de pensar os seus sujeitos, especialmente os africanos e seus descendentes. Recupera assim o legado desse intelectual para a literatura temática na Venezuela.
Os dois últimos artigos tratam da escravidão africana no Cone Sul, oferecendo assim ricas possibilidades futuras de comparação entre sociedades escravistas e sociedades com escravos em várias regiões do Uruguai, Argentina, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Borucki chama atenção para as conexões entre as identidades nacionais e as imagens da história da escravidão uruguaia. Tema ainda com pouco investimento no Brasil, surge uma original abordagem sobre as relações entre movimentos sociais e a produção historiográfica no Uruguai, nos últimos 70 anos. Examina as possibilidades de diálogos invisíveis entre vários setores sociais, intelectuais e acadêmicos, assim como temas de investigação histórica e expectativas de cidadania e reconhecimento histórico através deles. Em direção semelhante apresenta-se o artigo de Gladys Perri, fechando este número especial. As historiografias nacionais da América Latina escolheram – entre mitos, memórias, silêncios e ênfases – percursos e atalhos para avaliar o papel da escravidão e da abolição em cada sociedade, no período colonial e pós-colonial. Estava em jogo a nação, suas identidades e horizontes, assim como memória social e história. A referida autora resgata os sentidos e contextos da produção de mitos de “negação” e “ausência” de escravidão, africanos e seus descendentes na Argentina e o papel da literatura histórica.
Paulo Staudt Moreira
Flávio Gomes
MOREIRA, Paulo Staudt; GOMES, Flávio. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3., setembro / dezembro, 2006. Acessar publicação original [DR]