Escravidão e sociedade em espaços lusófonos / Ponta de Lança/2018
O mundo lusófono, considerado como um todo, cruza mares e continentes. Constituído por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor Leste, este mundo transnacional e cosmopolita inclui atualmente cerca de 250 milhões de falantes do português. O estudo do espaço cultural criado pela adoção da língua portuguesa ainda carece de pesquisas acadêmicas multi e interdisciplinares amplas e a partir de várias perspectivas. Atualmente, essa lacuna tem sido suplantada pela realização de estudos que procuram mostrar a lusofonia a partir de uma perspectiva globalizante que une diferentes regiões desse imenso espaço. Um dos campos mais desenvolvidos nos últimos anos é o do comércio atlântico de africanos escravizados, mostrando-o como um processo histórico fundamental para a criação dos espaços lusófonos ao redor do mundo. Esse comércio não apenas forjou conexões econômicas, mas também criou laços políticos e culturais que uniriam diferentes regiões do mundo atlântico, entendido hoje como sendo muito mais amplo que apenas os territórios da bacia oceânica.
As trocas regulares ocorridas ao longo de séculos entre a África e as Américas, por exemplo, ajudaram a moldar o desenvolvimento das sociedades envolvidas nesses intercâmbios nas duas margens do oceano. Deste modo, os estudos a respeito dos espaços lusófonos criados por esta interação têm derrubado velhas ideias e apresentado novos temas sobre as sociedades escravistas, tais como as dinâmicas internas de poder, a natureza e o significado da liberdade, a importância do comércio interno e internacional de escravos, o papel do mundo lusófono nesse sistema de trocas, os elos entre o escravismo e os aparatos legais, as possibilidades e limitações das resistências escravas, o desenvolvimento de identidades étnico-raciais e as desigualdades sociais resultantes.
Em meados de 2017, dois importantes eventos para os estudos luso-africanos ocorreram em Aracaju, algo pouco comum para a cidade. Primeiro, a Associação de Estudos Lusófonos realizou sua conferência internacional nesta cidade entre os dias 28 de junho e 02 de julho daquele ano. Segundo, e logo a seguir, teve lugar na Universidade Federal de Sergipe o 1º Seminário Mundo Atlântico e Colonização Portuguesa: Desafios na pesquisa e ensino entre os dias 3 e 5 de julho. Este dossiê temático, “Escravidão e Sociedade em Espaços Lusófonos”, teve sua origem em conversas entre José C. Curto e Carlos Liberato, presentes nos dois eventos. Em nossa opinião, existe uma verdadeira escassez de estudos tratando da escravidão em sociedades localizadas em espaços lusófonos a partir de uma contextualização comparativa. Assim sendo, decidimos organizar um dossiê temático que pudesse contribuir para a divulgação dos trabalhos que estão sendo desenvolvidos nessa temática. A ideia foi recebida com grande interesse pelo Professor Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá, editor da Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória &Cultura, que prontamente abriu o espaço para que este projeto pudesse se concretizar.
As pesquisas mais recentes a respeito da história africana têm mostrado que a África não era um continente isolado ou alheio ao que se passava no resto do mundo antigo. No entanto, é a partir do século XV, com o início das grandes navegações europeias, que grande parte das populações africanas localizadas ao sul do Saara passaram a ter relações diretas e permanentes com os povos da Europa, da Ásia e, posteriormente, das Américas. Assim, tomando o Oceano Atlântico como o lugar por excelência onde ocorriam as trocas de pessoas, ideias e mercadorias, essa relativamente recente linha de pesquisa tem sido definida como história atlântica. Objeto de múltiplas interpretações, esse campo historiográfico tem-se desenvolvido com rapidez. Essas abordagens, ainda que diversas, têm como premissa básica uma análise que transcende o eurocentrismo, o racismo, as fronteiras nacionais, as relações centro / periferia, as hierarquizações metrópole / colônia e o estudo das grandes civilizações. A história atlântica é, por assim dizer, um constructo analítico e uma categoria de análise histórica que auxilia os historiadores a organizar seus estudos a respeito de acontecimentos e processos da Idade Moderna, quando a bacia atlântica se desenvolveu como o locus de intercâmbios demográficos, econômicos, sociais e culturais, entre e dentro dos continentes que circundavam o Oceano Atlântico – África, Europa e Américas – bem como as ilhas banhadas por aquele oceano (RUSSELL-WOOD, 2009a, p. 20).
O livro de Bernard Baylin, Atlantic History: Concepts and Contours, tornou-se obra de referência obrigatória para os estudos de história atlântica. Segundo Baylin, após a Segunda Guerra Mundial, as pesquisas em história sofreram inúmeras mudanças, se abrindo para novas possibilidades. A partir de então, os estudos sobre o Atlântico receberam um vigoroso respaldo institucional advindo das necessidades de estruturação das alianças estratégicas dos países ocidentais contra as “ameaças” de expansão do comunismo soviético (BAYLIN, 2005).
Ainda que não seja sempre propriamente citado, o livro seminal de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo na época de Felipe II, tem servido de inspiração a inúmeros historiadores que trabalham sobre as dimensões históricas do Atlântico. No entanto, apesar das aparentes semelhanças analíticas – um espaço marítimo colocado no centro da interpretação histórica dos povos que o margeiam –, o modelo braudeliano não pode ser automaticamente transposto para os estudos sobre o Atlântico. No caso do Mediterrâneo, Braudel encontrou uma série de elementos geográficos, econômicos e culturais que conferiam certa homogeneidade aos processos sociais experimentados pela maioria dos povos do mundo mediterrânico (BRAUDEL, 1984). O Atlântico apresenta uma realidade bem diversa. Aqui, destaca-se a grande variedade humana, paisagística e climática que não só favoreceu a criação de novas formas de interação, mas também o estabelecimento de intercâmbios socioeconômicos em dimensões até então inéditas. Outra diferença fundamental é a de que os povos mediterrânicos se encontravam conectados há milênios, enquanto grande parte das populações africanas localizadas ao sul do Saara e aquelas das Américas tiveram pouco ou nenhum contato com o resto do mundo antigo. Assim, Pierre Chaunu acredita que o efeito de maior importância das navegações europeias iniciadas no século XV tenha sido, quiçá, o que ele denominou “desencrave”; isto é, o fim do isolamento de vastas regiões do planeta através do estabelecimento de contatos comerciais e intersociais permanentes, bem como a sua incorporação ao sistema mundial de trocas (CHAUNU, 1978).
A migração forçada de milhões de africanos através do Atlântico tem recebido a atenção de um número considerável de historiadores do mundo inteiro, marcando definitivamente a historiografia a respeito do mundo moderno. Após a publicação de inúmeros estudos sobre as dimensões e a direção do tráfico, agora parece claro que existiram essencialmente dois sistemas de comércio de africanos escravizados: um no Atlântico Norte – centrado na região caribenha que, além das ilhas, incluía a América do Norte, os territórios sob domínio espanhol e, em muito menor escala, a Amazônia portuguesa –, e o outro, o Atlântico Sul que enlaçava principalmente a África Centro-Ocidental ao Brasil. Os padrões de comércio eram marcadamente diferentes entre os dois “sistemas”. O comércio que cruzava o Atlântico a norte do Equador transportava uma população escravizada muito mais diversificada regional e etnicamente que aquele do sul – quase exclusivamente ocupado com povos centro-africanos.
Os estudos sobre o volume do comércio atlântico de africanos escravizados foram pela primeira vez sintetizados no trabalho seminal de Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census. Publicado em 1969, o livro de Curtin combinou uma série de dados obtidos em arquivos nacionais com pesquisas regionais de demografia histórica para apresentar uma primeira estimativa a respeito dos números de escravos comercializados nos dois lados do Atlântico. Toda uma geração de pesquisadores foi inspirada pela obra de Curtin e, em 1999, os esforços combinados de uma equipe internacional culminou na criação e publicação em CD-Rom do banco de dados Trans-Atlantic Slave Trade (ELTIS e outros, 1999). Passados quase vinte anos, o banco de dados foi colocado online sob o título Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database e pode ser acessado por qualquer pessoa conectada à rede mundial de computadores através da plataforma www.slavevoyages.org.
A despeito da grande importância desse instrumento de pesquisa, duas importantes críticas foram feitas à sua estruturação e conteúdo. Para muitos pesquisadores, a base de dados teria sido estruturada a partir do estabelecimento de regiões, especialmente as de embarque na África, a partir do zoneamento costeiro estabelecido pelos capitães dos navios negreiros – especialmente os de língua inglesa. No entanto, essas regiões não fazem muito sentido se tomarmos como ponto de partida a história do comércio atlântico de africanos escravizados em seus diferentes períodos (HALL, 2005 e 2010). A segunda objeção, especialmente dirigida à primeira edição de 1999, salientou o fato de que os números referentes ao comércio português, em geral, e aquele dirigido ao Brasil, em particular, estariam sub-representados na base de dados. Entre uma e outra edição e graças a um trabalho de cooperação internacional sem precedentes, a desproporção foi, em grande medida, sanada. Mas muito fica para fazer
No entanto, quando se analisa os estudos dedicados ao comércio de africanos escravizados e as contribuições deles e de seus descendentes para a constituição do mundo atlântico, ainda existe uma flagrante desproporção entre aqueles dedicados aos espaços lusófonos e aqueles que se ocupam de outras regiões, como as colônias britânicas da América do Norte e do Caribe, por exemplo (MANNING, 2003). É certo que o Atlântico tem tido um papel de destaque na historiografia portuguesa e brasileira. Pode-se mesmo dizer que um certo “multiculturalismo” tem estado presente em muitos estudos que destacavam as trocas culturais, linguísticas e genéticas entre portugueses e africanos e, até mesmo, desses dois grupos com os ameríndios. O que acontecia, porém, é que estes trabalhos tinham um caráter eminentemente regional e, com raras exceções, adotavam uma perspectiva “panatlântica” (RUSSELL-WOOD, 2009b).
Mais recentemente, porém, historiadores brasileiros, norte-americanos e outros têm-se tornado mais conscientes da necessidade de conhecer a África para uma melhor compreensão não só do Brasil, mas também dos afro-brasileiros e dos africanos que para aqui vieram (HEYWOOD e THORNTON, 2002). Da mesma forma, outros estudiosos procuraram apresentar a história do Brasil a partir de uma perspectiva atlântica, onde a África assume um papel de destaque, abandonando as narrativas regionais e eurocêntricas (ALENCASTRO, 2000).
É, pois, nesse contexto acadêmico de mudança paradigmática que apresentamos esse dossiê “Escravidão e Sociedade em Espaços Lusófonos”, como uma contribuição ao debate sobre os africanos e seus descendentes que ajudaram a moldar o mundo atlântico, dando especial destaque ao espaço que a língua portuguesa ajudou a criar.
O artigo de Carlos de Oliveira Malaquias, Ana Cláudia Pereira e Éden Filipe Santos Vieira trata da expansão da lavoura canavieira e do aumento do número de engenhos de açúcar que, entre os últimos anos do século XVIII e o início do século XIX, caracterizaram a evolução agrária da Capitania de Sergipe. O caso sergipano ilustra um movimento mais amplo de renascimento da produção açucareira no Brasil. O crescimento da agricultura de exportação brasileira só pôde ocorrer pela intensificação do tráfico atlântico de africanos escravizados que, ao abrir novas zonas de exportação na África, também transformou a demografia dos desembarques e os padrões de miscigenação étnica das regiões receptoras da mão-de-obra escrava. Os autores fizeram uso de fontes históricas diversas. Além da bibliografia disponível, também se valeram de listas de plantadores e inventários post-mortem para mostrar como as atividades produtivas e seus respectivos plantéis de escravos encontravam-se distribuídos. A correlação existente entre esses dois aspectos possibilita o estudo das formas pelas quais os senhores de engenho acessavam a mão de obra escrava. Os autores defendem a ideia de que o aparecimento tardio da produção de açúcar em Sergipe no final do século XVIII teria sido o fator determinante para a entrada da região nos circuitos da economia atlântica. No entanto, também reconhecem que a evolução agrária anterior da capitania teria condicionado o processo de expansão econômica. Deste modo, as atividades canavieiras tiveram que conviver e, de certa forma, competir com os padrões agrários tradicionais de Sergipe: a pecuária e o cultivo de mandioca. Em consequência, as condições ecológicas regionais permitiram a geração interna de alimentos e da força motriz necessária para o funcionamento dos engenhos. Da mesma forma, ao contrário do que ocorria em outras regiões do país, cerca da metade dos senhores de engenho sergipanos também plantavam mandioca ou criavam gado, talvez porque tivessem dado continuidade às atividades anteriores ou porque quisessem se prevenir de uma possível escassez de alimentos. Por fim, os autores constataram que a economia sergipana gerava menos capital e o seu comércio estava subordinado ao da praça de Salvador, porto pelo qual escoava o grosso de sua produção açucareira. e recebia a mão-de-obra escrava vinda da África. Assim, a expansão da lavoura da cana de açúcar em Sergipe obedeceu a condições específicas dos padrões agrários anteriores, das formas de financiamento da produção e da exportação indireta do produto final. Entre outras consequências dessas peculiaridades, os engenhos de Sergipe tinham que seguir padrões tecnológicos tradicionais e sofriam de uma dificuldade relativa de acesso à mão-de-obra importada.
O artigo de Mateus Rezende Andrade trata da infância brasileira no passado colonial e imperial, um tema ainda pouco explorado pela historiografia. A partir do estudo de documentos da Arquidiocese de Mariana, Minas Gerais, Andrade tenta reconstruir a história de vida de Teresa Felicíssima que, em 1822, sendo apenas recém-nascida, foi abandonada na porta da casa do alferes Francisco Dias da Costa e de sua esposa Francisca de Paula e Lana, residentes no Arraial de Piranga. A prática de abandonar crianças em portas alheias pode ser parcialmente explicada pela ausência de rodas de expostos na maioria dos núcleos urbanos brasileiros da época e a flagrante incapacidade das câmaras municipais e demais poderes públicos para aplicar políticas assistenciais de forma eficiente. A trajetória de vida de uma criança abandonada ocasiona variadas reflexões sobre a estruturação de sistemas relacionais em sociedades altamente hierarquizadas. O artigo aprofunda-se na tarefa de seguir o destino da menina Teresa junto ao casal que a recebeu como afilhada. O censo de 1830 lista Teresa como a terceira pessoa residente no domicílio do alferes Costa e a descreve como sendo “branca, solteira, livre, 9 anos de idade”. Por envolver a casa de um proprietário de escravos, o autor pondera sobre as negociações que permeavam as relações interpessoais que poderiam ajudar ou dificultar a ascensão social dos indivíduos nos marcos do escravismo brasileiro. Deve-se notar que, pela estruturação da listagem nominal do censo, é possível supor que Teresa tenha sido criada como filha do casal, pois a posição do seu nome logo abaixo daquele do cabeça da família e o da sua esposa é a mesma destinada aos filhos legítimos em outros domicílios. Se fosse considerada apenas uma agregada da família, o nome dela seria posto ao final da listagem, abaixo dos nomes dos escravos. A hipótese da adoção de Teresa é reforçada pelo fato de, já adulta, ter sido dada em casamento a um sobrinho dos seus “pais de criação”. Assim, este artigo procura explorar novos pontos de vista sobre a reprodução social e o papel dos laços familiares para a perpetuação e estabilidade da propriedade privada de terra e escravos no passado brasileiro.
A contribuição de Kalle Kananoja procura trazer à tona uma dimensão pouco estudada pela historiografia do tráfico atlântico: a saúde mental dos africanos escravizados. Comparandose com as análises quantitativas sobre o comércio de escravos, pouco foi produzido sobre os aspectos médicos dos intercâmbios atlânticos. Para preencher um pouco essa lacuna, Kananoja propõe-se examinar a doença do banzo no mundo atlântico português. A definição do vocábulo banzo mudou muito ao longo do tempo. Atualmente, os dicionários de português o definem como “nostalgia” ou “melancolia” e, quase sempre, o relacionam com um sentimento próprio dos africanos, quando estes se encontravam ausentes da sua terra natal. Ao que tudo indica, o termo banzo teria surgido no fim do século XVII em Angola, de onde o conceito se espalhou para o Brasil e Portugal. Inicialmente, o banzo era visto como uma doença mental que poderia ser contraída por qualquer pessoa, mas na segunda metade do século XVIII ela se transformou em uma doença restrita apenas aos escravos de origem africana. Esta transformação foi mais evidente nos escritos do médico português Francisco Damião Cosme, cujo manuscrito sobre as doenças da África Central tratou do banzo em detalhe. As respostas dramáticas dos escravos a sua condição, como o suicídio e o infanticídio, foram tratadas frequentemente na historiografia como formas de resistência dos escravos. Neste artigo, porém, o autor desafia a interpretação historiográfica predominante. Assim, como uma perspectiva alternativa, ao invés de estudar o comportamento dos escravos no âmbito da resistência, Kananoja apresenta a saúde mental, especialmente o banzo, no contexto da história da medicina. Para tanto, o autor mostra que o banzo representava uma forma de depressão e, sendo assim, para médicos como Damião Cosme a doença provava que os africanos não eram inerentemente diferentes dos europeus. Ou seja, os africanos também tinham sentimentos humanos e sofriam com os efeitos da escravização, especialmente com a violência e a perversão que acompanharam o comércio de pessoas através do Atlântico. Essa humanização do “outro” poderia ter consequências nocivas ao tráfico que se nutria de uma imagem dos africanos como sendo bárbaros rudes, de corpos robustos e próprios para o trabalho escravo. No entanto, as considerações médicas não foram capazes de mobilizar a intelectualidade portuguesa e brasileira para lutarem pela abolição do tráfico. Se de algo serviu, foi como alerta aos senhores de escravos para que tratassem melhor aos seus escravos pois assim produziriam mais e melhor. Essa perspectiva serviu para reforçar os argumentos econômicos que, em última instância, era o que guiava os senhores na escolha de um novo lote de escravos e na sua utilização posterior.
Seguem dois trabalhos que enfocam a história demográfica de Angola durante o fim do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX.1 Em seu artigo, José C. Curto faz uso de uma fonte pouco explorada pela historiografia sobre Angola: a “Convenção dos Dízimos”. A documentação compilada sob este título apresenta uma série de informações quantitativas sobre a demografia dos povos que viviam às margens do baixo Rio Kwanza. O dízimo era um imposto cobrado pelo governo colonial português em Angola que combinava o que se costuma chamar “imposto de palhota”, que incidia sobre os moradias existentes em cada distrito, e o “dízimo” propriamente dito, de caráter religioso, uma taxa cobrada aos povos da colônia que, correspondendo teoricamente a dez por cento da produção agrícola, deveria ser paga em troca do suporte espiritual que o estado português lhes provia (segundo os acordos do Padroado de 1514). Entre 1792 e 1796, o capitão Francisco António Pita Bezerra de Alpoim e Castro produziu esta espécie de censo reunindo informações julgadas importantes para o trabalho de cobrança de impostos pelos funcionários coloniais. É digno de nota o fato de que a compilação antecede aos recenseamentos nominais e sumários que seriam posteriormente realizados entre as populações de Ambaca, Pundo Andongo, Cambambe, Massangano, Muxima e Calumbo. Esses territórios eram cortados por uma rota comercial de aproximadamente 300 quilômetros através da qual milhares de cativos eram anualmente transportados em direção aos portos atlânticos, onde eram embarcados para as Américas, especialmente para o Brasil. O capitão Alpoim e Castro percorreu esse corredor em toda sua extensão e, entre outras tarefas, procurou determinar o número de habitantes de cada assentamento como meio de determinar o valor do dízimo a ser coletado pelos administradores coloniais. A despeito das óbvias limitações da metodologia dos censos da época, os dados recolhidos apontam para a existência de um total de 45.889 fogos nos presídios de Ambaca, Pungo Andongo, Cambambe, Massangano, Muxima e o distrito de Calumbo, nos quais deveriam residir 147.916 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. A “Convenção dos Dízimos” apresenta, pois, a mais antiga representação das dimensões, gênero, idades e distribuição espacial das populações dessa região. Segundo Curto, é possível dizer que, para a década de 1790, poucas fontes rivalizam com “Convenção dos Dízimos” no que tange à compreensão dos dados demográficos desse período da história dos povos do baixo Kwanza. Da mesma forma, o autor acredita que essa documentação possibilitará um refinamento maior, senão a correção, de concepções recorrentes a respeito do impacto do comércio atlântico de africanos escravizados nos povos da África Centro-Ocidental.
O estudo de Carolina Perpétuo Corrêa também versa sobre as características demográficas de Angola durante as últimas três décadas do comércio legal de africanos escravizados através do Atlântico. Corrêa utiliza os dados demográficos como uma forma de melhor compreender as transformações sociais ocorridas em Angola durante esse período crucial de sua história. Para tanto, a autora apresenta o Presídio de Cambambe, entre 1797 e 1829, que era então um dos postos mais avançados da penetração portuguesa a leste de Luanda. Cambambe era um entreposto comercial importante na longa rota que, correndo paralela ao Rio Cuanza, ligava os mercados e povos do interior aos portos atlânticos. Além de uma revisão da bibliografia disponível sobre o tema, a autora utiliza uma longa série de documentos de caráter censitário que lhe permitem combinar informações variadas sobre o comércio e a população do Cambambe nessa época. Tal abordagem lhe permite explicitar algumas questões fundamentais a respeito dos impactos demográficos ocasionados pelo tráfico atlântico. Dessa forma, pretende contribuir para o debate acerca dos efeitos desse comércio sobre o crescimento populacional, a proporção de escravos, a estrutura etária e a divisão sexual da população residente no presídio, como um exemplo do que pode ter ocorrido nas regiões do interior da África Centro-Ocidental. Vale lembrar que os presídios serviram como bases essenciais para a penetração portuguesa no sertão de Angola. Assentamentos de feições eminentemente militares, esses entrepostos comerciais fortificados foram a fórmula encontrada pelo estado colonial para reforçar a sua frágil presença nas regiões interioranas no período anterior à efetiva dominação territorial de fins do século XIX. Deste modo, a autora salienta que a população do presídio teve um aumento significativo no período estudado. Esta constatação parece corroborar as teses que descartam o tráfico de escravos como um processo que leva necessariamente ao despovoamento das regiões nele envolvidas. Da mesma forma, paradoxalmente, apesar do aumento da população e das elevadas taxas de cativos exportados através de Cambembe, o peso da população escrava no assentamento parece ter permanecido estável ao fim do período estudado. Um outro achado da pesquisa contradiz, em parte, o ponto assente da historiografia de que, nas regiões afetadas pelo tráfico, o número de mulheres superaria em muito o de homens já que esses seriam maioria entre os indivíduos exportados. As fontes usadas por Corrêa a levam a pensar que esse ponto de vista deve ser relativizado e não pode ser generalizado para todos os períodos ou regiões exportadoras. O mesmo podendo, também, ser dito para a composição da estrutura etária da população exportada.
O artigo de Eduardo Medeiros mostra que, a partir de 1720, a captura, o transporte, a venda e a exportação de pessoas tornaram-se características dominantes no cenário político e econômico das regiões do norte e do centro de Moçambique e das suas respectivas zonas adjacentes. Os portos de Quelimane, Angoche, Ilha de Moçambique, Ibo, Tungué, para não falar das baías, ribeiras e ilhas costeiras setentrionais, emergiram como importantes armazéns de africanos escravizados. Para estes portos convergiram inúmeras caravanas de africanos escravizados procedentes de diferentes latitudes. Para Medeiros, o escopo e a quantidade de indivíduos variavam segundo as oscilações periódicas dos interesses dos comerciantes africanos e seus parceiros internacionais envolvidos no comércio atlântico de escravos. Quando as condições para exportar os cativos eram limitadas pela baixa demanda dos mercados externos, o vale do Zambeze e os estabelecimentos euroasiáticos das regiões costeiras ficavam abarrotados de massas escravas, compostas por indivíduos desenraizados originários de sociedades distantes. Esses recém-chegados aumentavam temporariamente as populações portuguesas, muçulmanas e afroluso-indostânicas do litoral suaíli. Nem sempre era possível encontrar-lhes ocupação e, muitas vezes, permaneciam improdutivos durante toda a sua estadia. Independentemente da duração de sua permanência, os africanos escravizados trazidos a esses postos comerciais eram invariavelmente registrados nos documentos oficiais segundo as suas origens. No entanto, ao serem embarcados para o seu destino final, os escravos recebiam denominações mais genéricas, passando a ser registrados como moçambiques, makuas (nome genérico dado a todos os povos vindos do norte de Moçambique) ou inhambanes (para aqueles que saíam pelo porto de Inhambane, sul de Moçambique). Assim, para o autor, esta “moçambicanização” dos escravos exportados pelos portos de Moçambique deveria levantar uma série de questões relativas às suas identidades culturais quando chegavam ao destino final. Deste modo, os chamados “moçambiques” que desembarcaram nos portos do Brasil e das ilhas do Oceano Índico, dando origem a manifestações culturais que ficaram conhecidas localmente como sendo originárias de Moçambique, devem ser reexaminados à luz dos conhecimentos atuais. Neste artigo, o autor concentra-se em alguns dos aspectos dessa “moçambicanização” iniciada nos portos de partida, mas faz questão de registrar que no território que hoje pertence à República de Moçambique existiram, ao longo da história, áreas culturais particulares que, a depender do caso e do período, deram origem a entidades étnicas e a comunidades políticas. Todas elas, no entanto, sofreram transformações pelas ondas migratórias e outros eventos socioeconômicos que assolaram a região. E, justamente, são essas particularidades e fenômenos históricos que devem ser examinados com mais atenção pela historiografia sob pena de incorrer numa uniformização étnica que não corresponde em nada à dinâmica dos processos históricos da região.
Assim, o presente dossiê traz contribuições significativas para a construção de um conhecimento mais amplo e complexo sobre os africanos e seus descendentes que ajudaram a moldar o mundo atlântico, com especial destaque ao espaço que a língua portuguesa ajudou a criar. Através da utilização de nova documentação e de novas leituras de fontes primárias publicadas os diversos artigos apresentados aqui abrem uma visão renovada sobre a escravidão e as sociedades em espaços lusófonos.
Notas
1. Nem um nem outro utilizam Maximiliano M. Menz e Gustavo Acioli Lopes, A população do Reino de Angola durante a era do tráfico de escravos: um exercício de estimativa e interpretação (c. 1700-1850). Revista de História, São Paulo. no. 177, 2018, pp. 1-35, por este trabalho ter sido publicado depois dos artigos já estarem no prelo.
Referências
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CHAUNU, Pierre. Expansão europeia do século XIII ao XV. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1978 (original 1969).
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HALL, Gwendolyn Midlo. África e africanos na diáspora africana: Os usos dos bancos de dados relacionais. Topoi. vol. 11, 2010, pp. 318-331.
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José C. Curto – York University, Canadá.
Carlos Liberato – Universidade Federal de Sergipe, Brasil
CURTO, José C.; SOUSA, Carlos Franco Liberato de. Apresentação. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.12, n. 23, 2018. Acessar publicação original [DR]