O ano de 2022 é marcado pelas celebrações dos centenários de importantes eventos da História do Brasil, entre eles os 200 anos da Independência política e os 100 anos da Semana de Arte moderna. O mote dos centenários também deve ser usado para celebrar a vida de duas personalidades negras da nossa cultura: os 100 anos da sambista Dona Ivone Lara e os de morte do escritor Lima Barreto. Essas últimas efemérides nos remete a uma população negra pouco valorizada nas celebrações dos grandes eventos, um reflexo do último século da história do Brasil. Um país recém saído da escravidão e que procurava construir uma identidade que não poderia ser remetida a um passado, colonial e escravista. Em 1822 a independência ocorreu sem abalar a estrutura escravista e nem questionar o lugar social e político de homens e mulheres, negros e pobres. Em 1922, ao rememorar essa independência, a República reproduziu o esquecimento, e não lembrou dos egressos da escravidão e seus descendentes, que ocupavam as ruas das cidades brasileiras trabalhando e tentando sobreviver cultural e politicamente no regime republicano, apesar das crônicas de Barreto que alertavam para a crescente desigualdade social e a falta de oportunidades para homens como ele, negro e da periferia da República. Em 2022 é preciso lembrar e discutir o passado em dois tempos, o da independência e durante o Império, e o da República, que celebrou os cem anos da independência no pós-abolição.
Ao pensarmos nos diferentes tipos de eventos que ocorreriam em 2022 para celebrar o bicentenário da independência, achamos importante organizar um dossiê que desse espaço para a publicação de pesquisas que pensem a escravidão e o pós-abolição, temas distantes dos eventos oficiais organizados por instituições públicas e pelo governo federal. Diante disso, esse dossiê representa um esforço em pensar o pós-abolição articulado aos 100 anos da independência, e o passado escravista, principalmente sob o viés da luta de homens e mulheres escravizados. Temáticas fundamentais para compreender a história do Brasil e suas conexões. Se a liberdade e a independência que se celebravam em 1922 não os mencionam, ao mesmo tempo eles propunham outras formas de celebrar a vida, seja na cultura com o nascimento do samba, seja por meio da história e da literatura, dentre outras maneiras. Nesse sentido, os artigos publicados nos fornecem elementos para perceber, nuances de um pano de fundo no qual foi assentada a independência do Brasil, onde esses sujeitos emergem percorrendo caminhos áridos em busca de sua cidadania. Entre as questões trazidas pelos pesquisadores talvez uma ganhe maior destaque – as limitações da liberdade – e as estratégias legais e políticas para guiar os destinos dos ex-cativos diante das transformações e rumos políticos que a sociedade brasileira buscou seguir frente à independência.
O dossiê que ora apresentamos é composto por 7 artigos escritos por pesquisadores e pesquisadoras de diferentes instituições do país. Os resultados das pesquisas em diferentes escalas pautam, além do fortalecimento do campo dos estudos da escravidão e pós emancipação como problema histórico, as estratégias de diferentes sujeitos frente a um sistema escravista persistente e capaz de se adequar a mudança de conjunturas políticas e legais.
O texto que abre o dossiê é intitulado “Traficantes de escravos e escravidão em Recife, 1820-1860” de Amanda Barlavento Gomes e Arthur Danillo Castelo Branco de Souza. Nele, os autores abordam a discussão sobre a cultura político-econômica, a qual denominam “Escola da ilegalidade”, tentando mostrar como comerciantes atlânticos e interprovinciais enriqueceram como traficantes de escravos e tornaram-se verdadeiros capitalistas, atuando no negócio mesmo após as leis antitráfico. Conhecimento que era passado de pai para filho, demais familiares, sócios e até mesmo autoridades dos poderes provinciais e imperiais. Para isso, os autores perseguiram as redes de alguns desses negociantes atuantes da Praça comercial do Recife entre os anos de 1820- 1860, mostrando a evolução do negócio que se tornou um grande sistema nacional aceito, movimentando parte expressiva da economia do Brasil Imperial.
Em busca de acompanhar parte da trajetória de vida de dois personagens na cidade de Juiz de Fora na segunda metade do século XIX, o artigo escrito por Caio da Silva Batista e Dayana de Oliveira Silva, “Redes, agentes e negócios: aspectos da escravidão no interior do sudeste brasileiro durante a segunda metade do século XIX”, analisa processos criminais, registros de compra e venda de escravo e carta de alforria. Tal documentação permite compreender alguns aspectos da escravidão no Brasil oitocentista, como, por exemplo, a precarização da liberdade, o mercado interno de escravizados desenvolvido durante a segunda metade do século XIX e as relações sociais entre livres e escravos. Com isso, o estudo busca contribuir com o debate historiográfico a respeito das sociedades escravistas desenvolvidas no Brasil durante o século XIX, sobretudo na região Sudeste.
A lei do Ventre Livre representou uma importante medida legislativa que interferiu no futuro da escravidão. No artigo de Thomaz Santos Leite, “Com a letra da lei e o espírito do legislador: aplicação e regulamentação da Lei do Ventre Livre Brasileiroa (1871 – 1876)”, o autor investiga o processo de regulamentação da lei, aprovada em 1871, mas com discussões desde 1867. A importância dessa Lei se deve às diversas mudanças impostas à escravidão, sendo vista por alguns como um avanço em diversos âmbitos do Direito. Diante da sua importância, o debate que cercou a lei não foi finalizado com sua aprovação e o autor trata também nesse texto sobre as modificações existentes na letra da lei até 1876.
No artigo seguinte temos os efeitos práticos da Lei de 1871. O texto de Victor Hugo Modesto contextualiza a cidade de Belém na segunda metade do século XIX e analisa o encaminhamento de crianças e menores “ingênuos” por meio da instituição do Juízo dos Órfãos, logo após a promulgação da Lei do Ventre Livre. Em “Juízo dos órfãos, emancipação e tutelas de ingênuos em Belém (1871-1890)”, o autor também destaca a figura do Curador Geral de Órfãos e suas opiniões em pareceres sobre as petições de tutela de “ingênuos”, que em fins da década de 1870 e principalmente no início de 1880 tiveram um crescimento gradativo em todo o Império brasileiro, com seu ápice em 1888 com a abolição. Nesse caso, os agentes do Juízo dos Órfãos foram centrais no encaminhamento dessas crianças ingênuas, seja por vias legais ou não, e na própria execução da Lei de 1871.
A temática do pós-abolição ganha destaque no artigo de Júlio César de Souza Dória. Em “O ruralismo na Baixada de Jacarepaguá: a intervenção intelectual na agricultura de subsistência do sertão carioca” o autor trata da Comunidade de Agricultores Negros e Mestiços, que deu origem ao Quilombo Cafundá Astrogilda. Nesse texto, o foco é sobre as alterações socioeconômicas na virada do século XIX e XX e que afetou a região de Vargem Grande, local da Comunidade. No período do pós-abolição, homens e mulheres da região rural do Rio de Janeiro construíram estratégias de resistência para terem assegurados direitos básicos de moradia, trabalho, cultura e sociabilidade.
O pós-abolição e a metodologia de História Oral estão presentes no artigo de Daiana Sousa Santiago e Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, sob o título “Fazenda Engenho Novo: História oral e memória negra na cidade de São Gonçalo”. Através dos depoimentos dos lavradores Alfredo Pinheiro da Silva e Marcolina Alexandrina da Silva, descendentes daqueles que conquistaram a liberdade no final do século XIX, os autores tratam das lutas por direitos e o paternalismo senhorial, temas frequentes no estudos de especialistas sobre o meio rural fluminense.
As memórias de uma fazenda de escravos no interior da Bahia ganham destaque no texto de Victor Santos Gonçalves em “A Família Steiger: digressões ou reminiscências no Pós-abolição? (Bahia, 1860-1890)”. A cidade de Ilheus abriga a fazenda, que é investigada pelo autor através de um interessante conjunto de documentos, que inclui a biografia de Ferdinand Steiger, proprietário da fazenda, onde é possível entender suas ideias sobre escravidão, escravos e libertos no tempo da escravidão e da liberdade.
Essa edição também conta com o artigo livre de Selva Alves Pantoja, “Sintonia fina dos poderes: sobas, degredados, aventureiros e o desejo da realeza lusa”. No texto a autora examina as relações entre a África Central Ocidental diante da presença portuguesa, no contexto do comércio atlântico de escravos, alguns dos efeitos tratados pela autora são a respeito das novas atribuições a alguns sujeitos sociais e que sobreviveram como marcadores sociais até o século XXI.
Esse primeiro número da Revista Transversos em 2022 não seria possível vir ao ar sem o trabalho apurado dos pareceristas convidados a ler e analisar os artigos enviados para essa edição. Aproveitamos a oportunidade para agradecer o apoio de professores e professoras de diferentes regiões do país que contribuíram para a excelência dos textos. Além deles há também o trabalho dos editores da Revista e do estagiário Antonio Herrera, a quem agradecemos muito. Esperamos que esses textos inspirem os leitores a verem nas efemérides deste ano homens e mulheres que lutaram individualmente por sua liberdade, sem gritos ou com brados retumbantes e que não apareceram em grandes quadros ou pinturas e poesias modernistas. Não são anônimos, são sujeitos da liberdade do Brasil.
Organizadores
Renata Moraes – Professora Adjunta de História do Brasil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2012) onde pesquisou as festas da abolição no Rio de Janeiro (1888-1908). O mestrado em História Social e a graduação em História foram feitos na Universidade Federal Fluminense. Possui atuação na rede básica de ensino, tanto no ensino fundamental quanto no médio através da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Na Universidade tem pesquisas nos seguintes temas: festas no Brasil Imperial, escravidão no século XIX, história do trabalho, ensino de História e relações étnico-raciais, coordenando projetos de extensão e de Iniciação à docência, além de orientar alunos de Iniciação científica. Atualmente é coordenadora da seção Rio de Janeiro do GT da ANPUH Mundos do trabalho e do Grupo de Pesquisa LEDDES (Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades) – UERJ; É pesquisadora dos seguintes grupos de pesquisa: Nubhes-UERJ – Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades); Grupo de pesquisa História, poder e ideias políticas (UERJ); LEHMT – Laboratório de estudos de história dos mundos do trabalho (UFRJ). Faz parte do corpo de professores do Mestrado Profissional ProfHistória (UERJ) e do Programa de pós-graduação em História (UERJ). E-mail: renatafmoraes@gmail.com
Idalina Freitas – Professora Adjunta na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Campus dos Malês/ Bahia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012), onde foi bolsista FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007) e Graduada em História pela Universidade Federal do Ceará (2004). Tem se dedicado a pesquisas na área de História, Gênero e Trabalho; Diáspora Africana nas Américas e Mundo Atlântico. E-mail: idaestevam@gmail.com
Referências desta apresentação
MORAES, Renata; FREITAS, Idalina. Apresentação. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 24, p. 6-10, abr. 2022. Acessar publicação original [DR]
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