Laurentino Gomes, autor de 1808, 1822 e 1889, lançou em 2019 seu novo trabalho: Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Trata-se do primeiro volume de uma trilogia, fruto de uma pesquisa de seis anos que passou por três continentes (África, América e Europa). Seu objetivo é narrar a história da escravidão pelo viés de longa duração, apresentando diferentes perspectivas historiográficas, a pluralidade de sujeitos históricos e polêmicas. A narrativa de Gomes é marcada pela comunhão de revisão bibliográfica temática com escrita jornalística, conectando apontamentos fundamentais do tempo historiográfico à fluidez narrativa. O foco territorial passa pelas histórias do continente africano (enfatizando Angola), Brasil e Portugal. Seu ponto de partida é o primeiro leilão de escravos em Portugal, em 1444, e finaliza com a mudança de ênfase do trabalho escravo no Brasil no século XVIII, o qual passou do cenário da lida com cana-de-açúcar para a mineração de ouro.
Esse recorte temporal e espacial inicial não é meramente fortuito. Gomes parte da perspectiva de que o tráfico existente no interior do continente africano mudou de configuração em relação ao contato com os portugueses no século XV. Gomes afirma que o tráfico negreiro para o Novo Mundo foi volumoso, organizado, sistemático e duradouro, envolvendo quatro continentes (África, Europa, América e Ásia), no qual conferiu ao tráfico de escravos uma característica econômica global. Mas, não somente; indica que a pele negra passou a ser sinônimo de escravidão, desenvolvendo a segregação e o preconceito racial que ainda assolam muitos países, pontuando principalmente o Brasil e os EUA. Tais afirmações de Laurentino Gomes, advém da reunião de pesquisas realizadas por diversos historiadores que investigaram afundo documentos, a fim de produzir esses conhecimentos históricos. Dessa forma, começar com o primeiro leilão de escravos em Portugal diz respeito a uma posição crítica de Gomes ao revisionismo histórico, o qual afirma que os portugueses fizeram uso de um comércio já existente, desconfigurando características históricas, e deturpando a história da escravidão negra.
O livro abre com uma linha do tempo linear de acontecimentos pontuados ao longo da narrativa. Essa linha tem como função guiar o leitor não familiarizado com a História do Brasil, principalmente com sua história colonial. Esse recurso é pertinente quando se observa o conjunto de 30 capítulos. Tais se configuram como ensaios, na medida em que não seguem uma narrativa linear temporal, mas sim temática. Por mais que o plano de fundo seja sobre a escravidão brasileira, os capítulos apresentam diferentes enfoques. Além disso, Laurentino Gomes emprega o cruzamento de dados, relacionando revisão bibliográfica, pesquisa oral e debates do tempo hodierno.
Como autor, Laurentino Gomes assume a posição de repórter ao longo da narrativa, afirmando: “posso e devo observar e ouvir os diferentes olhares e vozes, admitindo, porém que seria indevido ou falso de minha parte tentar, por exemplo, expressar na sua totalidade a experiência de dor e sofrimento do ‘olhar negro’, pela qual nunca passei” (p. 39). Com isso, ele apresenta uma consciência de lugar de fala. Indica que está apto a escrever sobre a história da escravidão e tem o dever de reunir a maior quantidade de sujeitos em suas narrativas, contudo não é capaz de explicitar/entender questões como sofrimento causado pelo racismo.
No rol de bibliografia que Laurentino Gomes utiliza, destaca-se O trato dos viventes de Luiz Felipe de Alencastro (2000), o qual analisa a formação do Brasil por uma perspectiva atlântica do século XVI e XVII, empregado principalmente ao relacionar as configurações da escravidão brasileira à intensificação do tráfico de escravos, após a tomada de Angola pelos portugueses. Outro recurso importantíssimo que Gomes utiliza, é o banco de dados público: www.slaveyages.org. Trata-se de um mapa do tráfico de escravos negros no Atlântico desde o século XIV até o final do XIX. Parte do livro Atlas of the Transatlantic Slave Trade, de David Eltis e David Richardson (2008), com a ampliação do recebimento de informações de todo o mundo para formular gráficos sobre a entrada e saída de escravos negros em todo o mundo.
Dessa forma, por conta do banco de dados estar em constante modificação e pesquisas sobre a escravidão estarem periodicamente trazendo novas óticas, sujeitos e vozes, Laurentino Gomes concebe sua narrativa “como se fosse uma fotografia instantânea de uma paisagem ou cena em rápida mutação” (p. 42) sobre a história da escravidão negra no Brasil.
É possível destacar alguns capítulos chaves para a compreensão do livro. O capítulo 2 – O leilão apresenta o primeiro leilão de escravos em Portugal em 1444. Gomes objetiva descrever o registro Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, de Gomes Eanes de Azurara (1989). Com base em sua revisão bibliográfica, os historiadores vêm considerando essa fonte um marco, pois apresenta já em 1444 a concepção de salvação das almas dos africanos por meio da escravização. Após, Gomes passa a apresentar a justificativa religiosa que permeou a dominação e escravização dos sujeitos negros. A escravidão como meio de salvação e o dever do bom cristão.
Relacionando com o terceiro capítulo – As Origens, Gomes narra sobre a diferenciação de características entre a escravidão negra potencializada pelos europeus e as formas de escravidão da antiguidade. Afirma que na África já existiam redes estruturadas de mercados de escravos e descreve a perspectiva que verifica o aumento do volume e o revestimento ideológico capitalista rudimentar desses mercados. O ponto de diferenciação fundamental é a “completa perda da identidade original do escravo e sua nova condição de submisso à vontade do senhor” (p. 69) na configuração empreendida pelos povos europeus. Ressalta um ponto recorrente nos debates anacrônicos: a escravidão nem sempre esteve ligada à raça ou a cor da pele. Somente no final do século XVII, a população de escravos negros se tornou majoritária e sua cor de pele passou a ser sinônimo de escravo.
Esse debate ganha destaque no capítulo A cicatriz, no qual Gomes faz uma crítica a história relativista e a corrente do “politicamente incorreto”. Destaca as afirmações de que africanos escravizavam africanos antes dos portugueses e de que o tráfico de escravos era devido a fatores internos e não externos, evidenciando uma falta de compreensão histórica. O autor defende que tais argumentos corroem a compreensão histórica já consolidada de como o escravo, a partir do século XIV, passou a ser um ativo econômico descartável. Apaga a transformação que os europeus realizaram do comércio de escravos, transformando-o em um negócio global. Assim, exemplifica seu objetivo: levar o conhecimento acadêmico para além da academia.
O último capítulo que devemos pontuar com grande destaque é o vigésimo nono, intitulado – Zumbi. Gomes descreve a história de Zumbi dos Palmares e sua construção como herói nacional. Indica a presença de Zumbi como único herói nacional negro do período Colonial e a necessidade de reescrever a história das grandes figuras brasileiras. Afirma que Zumbi dos Palmares é figura central no movimento negro brasileiro, como alguém que resistiu à escravidão e lutou contra o sistema escravista. Segundo Gomes (p. 422-423):
Personagens, datas e acontecimentos históricos são ferramentas de construção de identidade. Funcionam como âncoras lançadas no passado nas quais procuramos alicerçar valores, convicções, sonhos e aspirações do presente, enquanto preparamos a jornada rumo ao futuro.
Referenciais históricos permeiam e são importantes para a construção de identidades no tempo contemporâneo. Seguindo essa linha, Gomes aborda um ponto polêmico, mas fundamental em sua obra. Destaca a pesquisa do Zumbi gay, do antropólogo baiano Luiz Mott, que apresenta seis vestígios históricos que sustentam sua pesquisa. Para desenvolver seu raciocínio utiliza os comentários de França e Ferreira (2012) sobre a pesquisa de Mott, indicando que teve contato a obra de Luiz Mott de forma indireta. Gomes após um panorama dos argumentos, afirma que até então não havia mais apoiadores entre os historiadores, cientistas sociais e linguistas que desenvolveram essa temática do Zumbi gay. Dessa forma, indica a si mesmo como autor que defende a pesquisa de Mott, criticando à sociedade e academia brasileira, afirmando que os vestígios que indicam que Zumbi dos Palmares era homossexual são ignorados, negados e rebatidos devido ao fato da academia refletir um Brasil machista, homofóbico e patriarcal. Contudo, Laurentino Gomes deixou transparecer falhas na sua argumentação. Primeiro, não ler diretamente a pesquisa de Mott para compreender seus pressupostos/fontes. Segundo, a crítica a academia transparece uma visão parcial do presente e limitada da pesquisa historiográfica, a qual alicerça-se na possibilidade de interpretação, reunião de fontes e bibliografia.
Mesmo com essas falhas, o livro Escravidão reúne uma excelente revisão bibliográfica temática e apresenta fontes clássicas, em uma linguagem sintética/popular. Podemos afirmar que este é o maior ganho da obra, levar críticas, descrever acontecimentos e narrar perspectivas historiográficas para à massa da população.
Sendo assim, o livro Escravidão, de Laurentino Gomes, é uma abordagem geral com uma rica bibliografia, números, fontes históricas e repleto de críticas à academia, à sociedade e as correntes teóricas no tempo atual. Tornar-se um texto importante entre as pesquisas contemporâneas acerca da escravidão negra no Brasil, configurando-se como uma fotografia de pesquisa contemporânea envolvendo o tema.
Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
AZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e da conquista da Guiné. Lisboa: publicações Europa-América, 1989.
ELTIS, David.; RICHARDSON, David. Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven: Yale University Press, 2008.
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho.; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. 480 p.
Resenhista
Jaciel Rossa Valente – Graduando em História Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: jacielvalente@gmail.com
Referências desta resenha
GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. Resenha de: VALENTE, Jaciel Rossa. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.3, p.1001-1005, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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