Recompor o mosaico dessas narrativas, atando aquilo que se foi produzindo como separado, envolve uma virada epistemológica, a busca de outros referenciais de análise que, abdicando de colocar em primazia os contextos nacionais, se sensibilize por uma abordagem de cariz transnacional (VIDAL, 2021, p.11-12).
A New Education Fellowship (NEF), conhecida também como Ligue Internationale Pour L’Education Nouvelle, foi criada há 100 anos, em congresso realizado na cidade de Calais, na França. Baillie-Weaver foi nomeado como presidente, Beatrice Ensor assumiu como diretora organizadora, e Elizabeth Rotten e Adolphe Ferrière foram nomeados como diretores (VIDAL; RABELO, 2019). Com sede fixada em Londres, a NEF “emergiu como um movimento internacional desenhado para agregar pessoas de diferentes países em torno da renovação da educação e da escola”, reunindo “tanto educadores e profissionais ligados à educação quanto leigos” (RABELO; VIDAL, 2018, p. 03). Tendo por intuito difundir e promover discussões referentes aos diferentes aspectos da educação nova, a NEF organizou conferências bianuais, realizadas em diferentes países, assim como teve associada a publicação de três revistas: The New Era, editada por Beatrice Ensor, Pour L’Ere Nouvelle, por Adolphe Ferrière e Das Werdende Zeitatter, por Elizabeth Rotten1 (VIDAL; RABELO, 2019). Essa mobilização a favor da renovação da escola e da educação contribuiu, ou mesmo reafirmou, com o que é denominado na historiografia da educação como o Movimento da Escola Nova.
Com um itinerário que se conduz a partir de “uma virada epistemológica”, o livro, publicado em formato E-Book, organizado por Rafaela Silva Rabelo e Diana Gonçalves Vidal, trata desse movimento fomentado pela New Education Fellowship, entre as décadas de 1920 e 1940. O volume que se intitula – Escola nova em circuito internacional: cem anos da New Education Fellowship, é resultante das investigações empreendidas no interior do eixo 2 – Sujeitos e artefatos: movimentos e vestígios – do Projeto Temático FAPESP (n. 2018/26699-4), intitulado “Saberes e práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810-…)2 ”.
Segundo o dicionário3, itinerário pode significar um roteiro, um percurso que se pretende seguir ou mesmo um caminho percorrido. Muito presente no decorrer dos capítulos que compõem o livro, o termo não se configura apenas em uma metáfora utilizada como recurso narrativo, mas apresenta-se também como uma escolha metodológica nas e para as reflexões empreendidas pelas autoras e autor. Nesse sentido, são textos que falam de escolhas, dificuldades, novas possibilidades e diferentes olhares, no trabalho com a pesquisa em História da Educação na qual a problemática se remete à Educação Nova, evidenciando principalmente o aspecto formativo deste itinerário, não somente dos autores vale destacar.
O livro apresenta-se divido em duas partes: na primeira temos quatro capítulos em que os autores discorrem sobre seus itinerários de pesquisa em direção ao tema proposto; da iniciação científica ao pós-doutorado, os estudos discutem metodologias, estabelecimento de fontes, escolhas teóricas e acervos pesquisados, em meio às análises realizadas em torno da relação entre a NEF e a Escola Nova; já a segunda parte, trata-se de um apêndice em que estão reproduzidos todos os sumários da revista The New Era, entre 1920 e 1939. Compondo o livro, ainda há o prefácio feito por José Claudio Sooma Silva e uma apresentação escrita por Diana Gonçalves Vidal.
Pautando-se em uma abordagem transnacional, os textos promovem uma variação nas lentes de pesquisa, que permite visualizar um outro contexto da e sobre a educação nova, destacando a circulação de saberes, de sujeitos e de materiais, tendo a New Education Fellowship como um lugar de partida e ponto de intersecções, ou Hub, como bem definem os autores. Proposta que José Claudio Sooma Silva, autor do prefácio, assinala como profícua “por facultar as condições para que fosse possível (re)pensar as apropriações de modelos educacionais, os movimentos de sujeitos, os debates referentes às práticas e saberes educativos, as fronteiras e as territorializações dos espaços e tempos sociais” (p. 07).
No texto que inicia o livro, mais do que apresentar o volume, Vidal, dedica-se a detalhar o itinerário teórico priorizado pelos demais autores. A autora localiza a obra em meio aos estudos historiográficos, demarca a importância da temática analisada e os motivos pelos quais as pesquisas apresentadas no livro direcionam as lentes para a NEF/LIEN e a educação nova, e situa a abordagem utilizada na perspectiva da história da educação. Vidal faz uma importante discussão teórico-metodológica demarcando a perspectiva transnacional nos estudos realizados, e nesse intento, a autora esmiuça de forma concisa e apurada os principais pontos a serem considerados em tal abordagem, construindo dessa forma um inventário de relevante contribuição para a área da História da Educação.
Sobre a perspectiva, a autora ainda evidencia que essa não é nova e que em sua utilização há uma variedade de terminologias: “transferência cultural, conexão, circulação, entangled, história partilhada, história cruzada a formas modernas de história internacional e comparação histórica” (p. 12). No entanto, segundo os autores Struck, Ferris e Revel (2011), a história transnacional pode vir a ser uma mudança metodológica expressiva na historiografia, assim como foi com outras perspectivas, como por exemplo a micro-história. Ancorada nesses autores, Vidal, indica que um dos motivos de interesse que levou os historiadores a voltarem-se para este enfoque é o de uma “convicção de que os processos históricos e sociais não são confinados a espaços (Nações, Estados, Impérios ou regiões). Ao contrário, produzem-se pela interação e trânsito de ideias, pessoas, instituições e tecnologias e pelo contato e mútua influência de Estados, sociedades e culturas” (p. 12). Pode-se pontuar a adoção da abordagem transnacional como o principal destaque dos estudos apresentados no livro, uma vez que, ao se debruçarem sobre um tema considerado canônico na historiografia educacional, nacional e internacional, – o movimento da escola nova -, os autores demonstram não só um refinamento nas análises empreendidas, como um novo olhar sobre concepções há muito consolidadas, além de instigarem novas discussões acerca da temática.
O primeiro capítulo, de Rafaela Silva Rabelo, trata da investigação empreendida pela autora em seu pós-doutorado, a qual explora as conexões entre o Brasil e a New Education Fellowship. Em um primeiro momento, a autora discorre sobre os caminhos percorridos, as dificuldades enfrentadas e as escolhas realizadas em relação à metodologia adotada no trato com as fontes e aos autores que serviram de fundamentação para as análises efetuadas, o que a levou a refinar o tema de sua pesquisa. É a partir da exposição do percurso realizado, embrenhando-se em arquivos diversos e reunindo um corpus documental variado, que Rabelo conduz a narrativa para os pontos resultantes deste itinerário. Desta forma, a autora examina não só as (des)conexões entre o Brasil e a NEF, como também entre a NEF e os Estados Unidos, por meio de uma interlocução da Fellowship com a Progressive Education Association (PEA) e, diante disso, Rabelo apresenta indícios de uma circulação da NEF em território brasileiro via Estados Unidos. Por fim, a autora, indica novas frentes de pesquisa que podem ser realizadas por meio do viés da história transnacional com o intuito de ampliar e aprofundar o conhecimento acerca da temática.
No segundo texto do livro, acompanhamos Giorgia Agostini em seu itinerário formativo na Iniciação Científica. Sua pesquisa se voltou para a circulação da NEF/LIEN na cidade de São Paulo, por meio dos periódicos a esta vinculados. Para tanto, a autora realizou uma busca “pelos acervos da cidade” (p. 46) de vestígios destas revistas, e nessa pesquisa empírica, Agostini localizou as revistas La Obra, de publicação argentina, e a Das Werdende Zeitalter, de publicação alemã. A localização dessas duas revistas, não só corrobora a hipótese delineada pela autora como também evidencia de que houve a circulação de material associado a NEF na cidade de São Paulo. Destaca-se a tradução, por Agostini, dos sumários dos periódicos encontrados, pois permite a realização de novas pesquisas, e também a reflexão esmerada que a autora faz sobre o processo de pesquisa científica.
Já Nara Vilma Lima Pinheiro, no terceiro capítulo, nos leva pelos caminhos percorridos por Carleton Washburne, presidente da PEA, membro e representante da NEF e autor do sistema Winnetka, e também o responsável por intermediar a criação da seção brasileira da NEF no Brasil, com a liderança de Lourenço Filho. Resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, a autora analisa a produção intelectual de Washburne e suas incursões pedagógicas por diversos países, com o objetivo “de reconectar as redes relacionais de Washburne, a fim de compreender o papel delas na difusão e circulação multidirecional de suas ideias” (p. 61). Valendo-se de uma documentação composta principalmente das publicações deste educador, “em especial aquelas que resultaram de viagens de estudos, e os periódicos oficiais da NEF, sendo eles The New Era (TNE) e Pour l’Ère Nouvelle (PEN)” (p. 61), Pinheiro demonstra “as teias que foram constituídas”, a partir de suas ações, e as iniciativas pedagógicas que dela decorreram. Outro ponto a se destacar do texto de Pinheiro é o seu detalhamento de alguns dos debates realizados em algumas das conferências da NEF, evidenciando principalmente a circulação de saberes e sujeitos nesses eventos; aliado a esse aspecto, a autora fornece um relevante levantamento bibliográfico e temático dos escritos deste educador a quem se interessar por analisar e discutir sobre a escola nova ou mesmo sobre outros tópicos de sua atuação.
O quarto e último capítulo do livro, de Vinicius de Moraes Monção, traz uma importante contribuição, para a história da educação, pela metodologia utilizada em suas análises. Sua investigação tem por foco a revista The New Era (TNE), órgão oficial em língua inglesa da New Education Fellowship, na qual o autor procura desenvolver um estudo transnacional da instituição, operando com o software de análises de dados qualitativos ATLAS.ti na busca e sistematização de dados. Diante da especificidade de disponibilidade de acesso do corpus documental, essencialmente digital, e, ainda, do que Monção indica como um “denso volume de informações”, foi estabelecido como abordagem teórica e metodológica a história digital, operação esta que, segundo o autor, permite “alternar a lente de análise, do macro para o micro e vice -versa” (p. 92), quando necessário. Neste seu itinerário de pesquisa pelos assuntos da revista, Monção discute sobre as possibilidades e limites da história digital, pondera sobre as vantagens do uso da ferramenta, além de apresentar os resultados de sua pesquisa, e, a partir dos seus achados, inventaria outras perspectivas de pesquisa na abordagem da The New Era. Em sua conclusão, o autor caracteriza a revista como suporte e hub, pois, por meio dessa perspectiva, pode-se pensar a TNE tanto como um local no qual são identificados os sujeitos e instituições articulados “em torno da temática da educação nova, como um espaço em que as interações são manifestadas” (p. 107).
Finalizando a publicação, na segunda parte, tem-se o apêndice, composto pelos sumários da The New Era, sistematizado por Rafaela Silva Rabelo e Vinicius de Moraes Monção. Em sua elaboração, os pesquisadores fazem uma comparação de todos os sumários, índices e verificação página a página da revista, entre os anos de 1920 e 1939, apresentando, portanto, uma versão mais abrangente do que a encontrada no início de cada número. Trata-se de uma importante ferramenta de pesquisa, fornecida pelos autores, e privilegiada pelo tipo de publicação do livro em questão – em formato e-book -, pois as informações sistematizadas auxiliam e permitem a busca pelos temas que permearam o interesse da revista, bem como dos autores que tiveram seus escritos publicados.
Compreender o Movimento da Escola Nova tem sido pauta de uma grande parcela de estudos no campo da História da Educação, nacional e internacional, nesse sentido, ao finalizar a leitura do e-book, ressalta-se que a “virada epistemológica”, proposta pelas autoras e autor, fundamentada na história transnacional, tende a contribuir para um refinamento e aprofundamento nas análises já efetuadas pela área acerca da temática. Ademais, a partir da exposição, em cada um dos estudos, dos itinerários percorridos, tem-se um valioso inventário teórico-metodológico passível de subsidiar outras investigações e análises (não só) sobre a escola nova.
Notas
1 Para além dos trabalhos de Rabelo e Vidal, aqui citados, sobre a NEF conferir também: LARSSON, 1987; JENKINS, 1989; BREHONY, 2004 (VIDAL; RABELO, 2019).
2 Processo FAPESP 2018/26699-4, disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/bolsas/192651/a-revista-thenew-era1920-1930-producao-e-circulacao-de-saberes-sobre-a-educacao-nova-a-partir-d/.
3 Aulete Digital: https://aulete.com.br/itiner%C3%A1rio.
Referências
Dicionário Aulete Digital. Disponível em: https://aulete.com.br.
RABELO, Rafaela S.; VIDAL, Diana G. A seção brasileira da New Education Fellowship: explorando o cenário de sua criação. XIII CONGRESO IBEROAMERICANO DE HISTORIA DE LA EDUCACIÓN LATINOAMERICANA, 28 de febrero al 3 de marzo, (ANAIS…), Montevideo, Uruguay, 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/333824754. Acesso em: 25/08/2021
RABELO, Rafaela Silva; VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Escola nova em circuito internacional: cem anos da New Education Fellowship. 1. ed. Belo Horizonte [MG]: Fino Traço, 2021.
STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate; REVEL, Jacques. Introduction: Space and Scale in Transnational History. The International History Review, v. 33, n. 4, p. 573-584, 2011. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/241727426_Space_and_Scale_in_ Transnational_History . Acesso: 05/09/2021
VIDAL, Diana G.; RABELO, Rafaela S. Fórmula e utopia: o movimento internacional da educação nova. Sarmiento, n.25, p.23-50, 2021. Disponível em: https://revistas.udc.es/index.php/sarmiento/article/view/srgphe.2021.25.0.8600. Acesso em: 25/08/2021. DOI: https://doi.org/10.17979/srgphe.2021.25.0.8600
Resenhista
Franciele Ferreira França – Universidade de São Paulo. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo. https://orcid.org/0000-0003-3161-6572 http://lattes.cnpq.br/8629067764224429 E-mail: fran.f.franca@outlook.com
Referências desta Resenha
RABELO, Rafaela Silva; VIDAL, Diana Gonçalves (Orgs.). Escola nova em circuito internacional: cem anos da New Education Fellowship. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021. Resenha de: FRANÇA, Franciele Ferreira. A Escola Nova e A New Education Fellowship sob uma nova perspectiva na História da Educação. Cadernos de História da Educação, v.21, e095, 2022. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.