A produção historiográfica acerca da escravidão e da presença africana na América tem se mostrado prolífica desde as duas últimas décadas do século passado. José R. Jouve Martín elegeu como tema principal dessa obra a análise da apropriação e uso da cultura letrada por africanos e seus descendentes trazidos à porção espanhola do Novo Mundo, a partir do século XVI. O autor aborda precisamente a população negra de Lima, no Peru, durante a segunda metade do século XVII, quando esta cidade apresentava-se, segundo os censos realizados entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do seguinte, como um território cujos habitantes eram predominantemente afrodescendentes.
Martín se confessa entre aqueles que, inspirados por Frederick P. Bowser,1 buscam analisar e elucidar a questão da escravidão na perspectiva da História Cultural, focando sua análise na forma como negros, mulatos e zambaios recorreram ao uso da escrita para interagir com a elite dominante. Apoiado em estudos encetados desde a metade do século XX que lhe permitiram, de acordo com suas palavras, ampliar seu conhecimento acerca da escravidão e do papel desempenhado pelas pessoas de origem africana na configuração do mundo atlântico, notadamente no Virreinato del Peru, o autor analisa o cotidiano desses homens e mulheres praticamente ignorados nas histórias oficiais do e sobre o período assinalado, evidenciando a complexidade dos processos de sua inserção nas sociedades hispânico-americanas.
Abordando os usos da cultura letrada e da cultura oral, Martín aponta para a estratégia que negros, mulatos e zambaios utilizaram para interagir com a “cidade letrada”, mesmo de maneira indireta. Seu estudo revela a estreita proximidade entre escravos, ex-escravos, proprietários, ex-proprietários e os demais habitantes da cidade, evidenciando as estratégias de africanos e seus descendentes para marcar seu espaço nessa sociedade urbana e a utilização a seu favor, de maneira consciente, do aparato civil e legal então existente. Através de documentos oficiais, apresentados à justiça por africanos e seus descendentes, escravos e libertos, o autor nos apresenta uma realidade diferente daquela presente na historiografia tradicional sobre a América espanhola que nos levava a supor que esses estivessem completamente apartados da “cidade letrada”. O autor destaca os estudos de Thornton (1998), Lovejoy (1997) e Morgan (1997)2 entre aqueles que questionam a historiografia tradicional e se recusam a aceitar que a escravidão tenha sido uma instituição “indiferente às variações de lugar, procedência ou poder colonial” (p. 12). É importante salientar a observação do autor de que as mulheres puderam utilizar o direito de testar com mais freqüência que os homens, devido, principalmente, às maiores oportunidades de obtenção de sua alforria e da conseqüente acumulação de bens.
Martín salienta a ocorrência de uma mescla estabelecida por essa parte da população de Lima entre a cultura letrada e a oral, responsável pelos diversos níveis de assimilação e utilização do letramento para resolver, tal qual as demais parcelas daquela sociedade, as questões ligadas a seu cotidiano. A apropriação das formas de comunicação visual e de textos escritos pelo ver e ouvir atos públicos, manifestações religiosas e profanas, permitiu-lhes o conhecimento e apreensão do aparato legal. Isso lhes tornou possível se valer deles para a aquisição e preservação de direitos e ainda para a solução de contendas entre si e com os demais. Embora a maioria desses indivíduos tivesse permanecido à margem do ensino oficial da leitura e da escrita, considerados como “fundamentalmente analfabetos”, negros, mulatos e zambaios estabeleceram articulações com a cultura letrada. A falta de habilidade para ler e escrever não os impedia de reivindicarem seus direitos. A população negra de Lima, formada por escravos e libertos, dentro de certas limitações, negociou por escrito com seus proprietários. Estudos para a América sob o domínio de Portugal evidenciam práticas similares levadas a cabo por africanos, crioulos e mulatos.3 Da mesma forma, essa população apresentou demandas judiciais, comprou e vendeu, legou bens móveis e de raiz e confessou dívidas, entre outras ações. Na maior parte das vezes foram utilizados, para tais fins, aqueles que haviam sido treinados para a escrita e leitura: escribas y escribanos, mediadores entre aqueles que praticavam a cultura oral e os que conheciam as práticas textuais e os discursos da sociedade da América espanhola, em especial da Ciudad de los Reyes de Lima. Esses conhecedores do aparato jurídico teriam papel importante nas articulações entre os segmentos de origem africana, não letrados, e os representantes da ciudad letrada colonial.
Martín divide seu estudo em seis capítulos nos quais nos apresenta, de maneira aprofundada, a estrutura social dos africanos e seus descendentes no espaço urbano do Peru, as interações dos negros, mulatos e zambos com as práticas e textos escritos, a mediação desempenhada pelos escribas e escribanos e essa parcela da população de Lima, no que se refere a seu papel ativo diante do aparato legal, e ainda, a maneira como essa participação permitiu a escravos e libertos interagir com outros setores da sociedade colonial peruana. Igualmente se dedica a apresentar e discutir o papel desempenhado pelo gênero nessas apropriações, articulações e interações da cultura letrada dos grupos dominantes naquela porção da América espanhola.
O autor se detém a apresentar o eixo no qual articula sua investigação e a utilização de trabalhos desenvolvidos por estudiosos do “New Literacy Studies”. Ele argumenta que as investigações e discussões que vêm acontecendo, desde a década de oitenta do século passado, entre os teóricos desse grupo questionam os conceitos “oralidade” e “cultura escrita” até então utilizados e propõe a adoção de outros conceitos tais como “letramento” e literacy.4 Esses investigadores pretendem abranger os aspectos sociais e ideológicos das transações escritas e os fenômenos associados a elas. Seus estudos, que têm se espalhado por outras partes da Europa, conta com seguidores em diferentes áreas do conhecimento e também no Brasil.5 O autor corrobora a tendência de não aceitação da escrita como uma tecnologia neutra, dividida entre o oral e o escrito, mas antes a de considerar também os objetivos para os quais os textos foram criados, bem como os contextos nos quais eles tiveram origem. A continuidade e a ampliação dessa discussão têm, segundo Martín, servido para esclarecer dúvidas e expandido a compreensão do verdadeiro significado desses conceitos e das dimensões do “saber ler e escrever” em diferentes culturas e tempos.
As observações de Martín se assemelham, guardadas as devidas proporções, com o que tem sido observado em relação aos africanos nas terras portuguesas da América durante o mesmo período, onde tais apropriações e interações são evidenciadas na leitura de documentos de igual tipologia. Em relação à América Portuguesa estudos pontuais têm demonstrado que o letramento de africanos e seus descendentes foi uma constante em cidades e vilas urbanizadas,6 se assemelhando ao observado por Martín à respeito de Lima colonial. Oliveira,7 abordando a Bahia do século XIX, apresenta similitudes no quadro observado nesse estudo. Ele verificou as mesmas estratégias que os negros, mulatos, cabras e pardos traçaram para se incluírem na sociedade, fazendo com que diversas escrituras se estruturassem em torno de si e engendrando formas semelhantes àquelas descritas e estudadas por Martín para se apropriar da cultura letrada ou interagir indiretamente com ela. Paiva demonstrou que negros traficados para o Brasil já chegavam na América portuguesa alfabetizados em línguas arábicas, africanas e latinas. O conhecimento dos idiomas e a leitura do Alcorão, da Torá e da Bíblia lhes permitiu atuar como intérpretes entre realidades linguísticas distintas.
Paiva analisou a trajetória de vida de Cosme, um crioulo que, ainda no cativeiro, aprendera a ler e a escrever em português e por essas habilidades tornou-se escrevente do cartório de Paracatu e de Sabará, duas das principais vilas do período colonial em Minas Gerais. No entanto, a atividade altamente qualificada desenvolvida por Cosme não facilitou a obtenção de sua liberdade. Após várias tentativas para obter sua manumissão, Cosme, provavelmente recorrendo aos conhecimentos adquiridos no exercício de sua função, pleiteou na justiça o que acreditou ser seu direito.
As realidades comparadas tanto em Lima como em Minas Gerais durante o período colonial mostram como africanos, escravos ou libertos, tornaram-se intermediadores culturais traduzindo e aproximando realidades diferentes. Neste sentido, o que Martín aponta, com propriedade, é parte de uma história ainda a ser escrita na qual a historiografia sobre a presença africana no mundo moderno tem experimentado notável desenvolvimento, mas continua apresentando lacunas e não poucas controvérsias. Tal constatação sinaliza a necessidade de novas abordagens que possam, através do cotejamento de diferentes fontes, desvendar aspectos ignorados acerca da presença dos africanos e seus descendentes nos domínios espanhol e português desde sua chegada ao “Novo Mundo”.
Notas
1 BOWSER, Frederick P. The African slave in colonial Peru, 1524-1650. Stanford, California: Stanford University Press, 1974.
2 Leituras recomendadas pelo autor: THORNTON, J. K. Africa and Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1800. 2. ed. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1998; LOVEJOY, P. E. The African Diaspora: Revisionist interpretations of the ethnicity, culture and religion under slavery. Studies in the World History of Slavery, Abolition and Emancipation, v. 2, n. 1, 1997; MORGAN, P. D. The Cultural Implications of the Atlantic Slave trade: African Regional Origins, American Destinations and New World Developments. In: ELTIS, D.; RICHARDSON, D. Routes to Slavery: Direction, Ethnicity and Mortality in the Atlantic Slave Trade. Londres; Portland: Frank Cass, 1997.
3 GONÇALVES, J. C. Justiça e direitos costumeiros: apelos judiciais de escravos, forros e livres em Minas Gerais (1716-1815). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos de origem africana na América portuguesa. In: SILVA, M. B. N. da (Coord.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995.
4 Ver MORAIS, C. C. Posse e usos da cultura escrita e difusão da escola: de Portugal ao Ultramar, Vila e Termo de São João d’el Rei, Minas Gerais (1750-1850). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009.
5 Recentes pesquisas efetuadas por membros do Grupo de Pesquisa sobre a História da Educação (GEPHE), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais têm trazido resultados interessantes sobre essa questão.
6 PAIVA, E. F. Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América Portuguesa. In: DUTRA, E. de F.; MOLLIER, J.-Y. (Org.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política no Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006. p. 481-493.
7 OLIVEIRA, K. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica de documentos e estudo linguístico. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2006.
Resenhista
Carla Berenice Starling de Almeida – Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: cbstarling@ig.com.br
Referências desta Resenha
MARTÍN, José Ramón Jouve. Esclavos de la ciudad letrada: esclavitud, escritura y colonialismo en Lima (1650-1700). Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2005. Resenha de: ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 13, n. 1, p. 261-265, 2013. Acessar publicação original [DR]
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