Epistemologias da história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade | Gabriel Giannattasio e Rogério Ivano
Nas últimas décadas, e bem mais recente quando se tem por base o cenário brasileiro, os debates no campo da História (e também, claro, no da Filosofia e no das Ciências Sociais), mais especificamente na área de Teoria e Metodologia da História tem direcionado suas preocupações em torno de um objeto, ou pode-se dizer ainda, tema, ideia, paradigma, pois as designações são múltiplas. De fato, o que é possível afirmar, aqui sim com convicção, é que a pós-modernidade é a pauta do momento, seja para arrancar suspiros daqueles que a defendem e/ou idolatram, seja para nausear aqueles que acreditam que tudo isso não passa de mera invenção de alguns intelectuais equivocados. E é com a intenção de esclarecer alguns tópicos que a torrente pós-moderna e a enxurrada de problemas, novidades, embates etc que a ela são intrínsecos, que surge o livro organizado pelos historiadores Gabriel Giannattasio e Rogério Ivano.
O título Epistemologias da história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade é realmente extenso quando o leitor trava o primeiro contato com a obra. Porém, ao realizar a leitura de ponta a ponta, é possível verificar que há uma perfeita harmonia entre título e conteúdo dos capítulos, haja vista que aquilo que foi oferecido de imediato está em constante debate ao longo dos textos. O livro é composto por dez capítulos, sendo a maioria desses de caráter mais abrangente e, predominantemente, teórico, e os demais, talvez três deles, podendo ser entendidos mais como estudos de caso, de cunho específico e menos generalizante. Trazendo uma discussão estritamente teórica ou não, o que é possível visualizar em relação aos artigos que compõem Epistemologias da história é que os seus respectivos autores se posicionam explicitamente em defesa das possibilidades do fazer historiográfico mediante o instrumental apresentado pelo pensamento pós-moderno. A exceção pode ser enxergada em um ou dois desses autores.
Estudando o conjunto da obra, é forçoso que o leitor seja levado à ideia de que três capítulos se afastam dos demais, naquilo que concerne ao tema trabalhado. Eis os capítulos: “Questões conceituais na História Ambiental” (Jozimar P. Almeida), “A crise dos paradigmas no cinema brasileiro: o caso Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Bandido da luz vermelha (1968)” (Fábio M. Bueno) e “Pergunte novamente aos cavalos: realmente foi preciso teologia para pensar o fim da história?” (Max A. de Paula Gonçalves). Esse último trata especificamente de alguns conceitos da obra de Walter Benjamin – e talvez o fato de dar exclusividade a um único autor – o que não é um pecado mortal, pelo contrário – seja o que o deixe numa posição mais distante dos demais textos. O autor disserta ainda, e de maneira bem elaborada, sobre a concepção de história e o Jetztsein benjaminianos. Do segundo texto citado acima, que é uma análise crítica de dois filmes brasileiros, contrapondo-os, pode-se destacar dois conceitos que estão presentes o tempo todo, que é o de alegoria ou espaço alegórico – tema caro aos filósofos – e o de narrativa teleológica, que é aquela em que os eventos ocorrem sempre presos à expectativa do devir.
Já o primeiro, apresenta um tema relativamente novo no campo historiográfico, que é sobre a questão ambiental. Nesse capítulo, Almeida discorre sobre construção de sentido e aspectos da linguagem, chegando a temas diversos como termodinâmica e entropia. Interessante é a ideia segundo a qual é afirmado que de um ponto de vista histórico o desenvolvimento sustentável é impraticável. Ainda com esse texto, é possível observar que os mais diversificados autores foram elencados como referência e citados ao longo do corpo textual. Com efeito, pode-se apostar na coexistência de paradigmas alternativos, concebidos como ‘coquetel teórico’ na expressão de Peter Burke, citado por Marcos A. Lopes, no capítulo “O problema do sentido histórico em história das ideias: notas acerca da interpretação de textos políticos”. Pode não ser o caso do referido texto, entretanto, seria factível produzir uma mélange com Marx e Collingwood, Bloch e Foucault? Lançar mão dos mais opostos teóricos visando a uma causa única parece não resultar numa mistura consistente.
O artigo já citado de Lopes é de um grande esforço intelectual. Estão também ao seu lado, em nível de erudição e clareza de ideias, “Por uma Historiografia pós-moderna, pós-virada linguística e interpretativista” (Alfredo dos Santos Oliva) e “História e ciência: algumas questões de método e epistemologia” (José D’Assunção Barros). O primeiro autor citado nesse parágrafo diverge dos demais pesquisadores presentes em Epistemologias da história, já que assume sem rodeios a posição de um historiador das ideias de vertente contextualista, tendo assim sua preocupação voltada para a intencionalidade autoral. Assim, a mens auctoris assume o papel principal nas lides da interpretação dos textos do passado, o que é o oposto da “morte do autor”, pretendido por Foucault e a grande leva de foucaultianos posteriores. Já o posicionamento teórico de Barros fica mais difícil de definir, já que em seus parágrafos, muito didáticos, diga-se de passagem, ele parece assumir um papel de distanciamento, analisando tudo com muita propriedade, mas sem se prender a uma ou outra técnica interpretativista.
O seu texto em aborda, como o próprio título dá a entender, a cientificidade ou não da História. Para isso, o autor mantém o seu foco de nos Annales e sua relação com o tema. Ele percorre dos primórdios do movimento, até chegar a historiadores de nosso tempo, como George Duby e François Furet, por exemplo. Ele responde ainda o que entende por epistemologia. Termina por citar Benedetto Croce, indagando se a História seria uma arte, e conclui deixando a questão de a História ser ou não ciência em aberto. Já Oliva opta por afirmar que o historiador pode sim reivindicar o caráter científico para o seu ofício, com muito cuidado, é claro. Em seu texto, segundo capítulo de Epistemologias, o autor demonstra certa afeição pelo modo pós-moderno de fazer historiografia. Ele inicia afirmando que há um mal-estar no campo da historiografia atual, o qual teria uma dupla origem: no âmbito do próprio campo historiográfico e também externamente a ele, vinculado aos debates filosóficos.
Esse autor estabelece uma interessante diferenciação entre modernidade e modernização cultural, termos que geralmente são confundidos ou distorcidos. Na sequência – assim como pelo restante do artigo – ele discorre acerca do conceito linguistic turn, apoiando-se principalmente nas ideias do filósofo Paulo Guiraldelli Jr. e também em R. Rorty. A implicação aqui para o historiador se dá no fato de que, a partir da denominada pós-virada linguística, o foco de análise do pesquisador se volta para a multiplicidade de linguagens produzidas ao longo do tempo. A realidade tal como aconteceu se torna inacessível, cabendo ao historiador somente escavar em busca de resquícios linguísticos. Outros dois capítulos se encontram mais próximos em relação a esse debate sobre discurso e linguagem, ambos praticamente tendo Michel Foucault como autor pontual em suas elucubrações. São eles: “Reinventando o fazer historiográfico à luz de certas aporias pós-modernistas” (Jonathan Menezes) e “Possibilidades teóricas da análise de discurso e da hermenêutica para a interpretação histórica” (Paulo Alves).
Em seu texto, Alves afirma ser equívoca a ideia segundo a qual um texto não pode ser analisado em si mesmo, mediante o seu conteúdo interno, já que a análise de discurso, segundo ele, atende de maneira plena a todos os objetivos da interpretação. O autor ou o objeto do discurso não importam, já que o que o caracteriza é a sua natureza. Aqui, a ideia é a de que o discurso encerra o social dado mediante as condições de produção desse próprio discurso. O papel do historiador seria não o de atribuir sentidos, mas de compreender como um objeto simbólico produz sentidos. Nessa toada sobre linguagens e discurso, Menezes gasta boa munição refletindo acerca do papel, do métier de arqueólogo, ideia básica presente nas idiossincrasias foucaultianas. Com tal perspectiva, ficam rechaçados a noção de unidade, de intencionalidade autoral e os atos discursivos “sérios”, isto é, aqueles que intentam pela busca de verdade.
Outro autor trazido para a cena por Menezes é Keith Jenkins, para quem as histórias do tipo moderno, ou histórias epistemológicas nunca deveriam ter existido, pois a única coisa válida, o único “nome do jogo” sempre foi o pós-modernismo. Com esse autor, a história não é nada mais que um discurso em meio a todos os outros discursos sobre o mundo, sendo uma construção linguística intertextual, na medida em que nada faz além de produzir textos mediante outros textos, discursos sobre discursos. O passado é, dessa maneira, não à realidade em si, mas realidade para o historiador, que o constrói, já que a história é sempre perspectiva, ou seja, é construção do narrador. A não-possibilidade da reconstituição do passado é também a ideia que está apresentada no capítulo inicial de Epistemologias da história, “Uma pós-modernidade trágica: a historiografia para além da verdade e da mentira” (Gabriel Giannattasio e Guilherme C. Bordonal), no qual se tem a afirmação de que o discurso historiográfico não consegue ir além dele mesmo.
O texto de Giannattasio e Bordonal talvez careça de uma linguagem mais clara e acessível, porém, é possível enxergar algumas conclusões para as quais os historiadores sinalizam. Do início à última linha do texto, eles afirmam que a história é apenas interpretação de outras interpretações, uma metalinguagem propriamente falando. Isso porque ao selecionar o objeto, o pesquisador o faz sob determinadas condições, orientado por aquilo que se tem registrado de um passado que já não é mais, já se foi. Esse registro é tido por documento, e o que o confere esse caráter é o conceito que se tem sobre o que vem a ser um documento. O estudo do mesmo se faz na forma de uma análise discursiva daquilo que não existe mais. Assim, o tal registro não equivale ao passado, só contribui para a prática discursiva. Por isso, os autores desse capítulo chegaram às suas conclusões de que não há história do passado, mas sim das linguagens do passado.
O último capítulo, “Aforismos sobre a História” (Rogério Ivano), apresenta algumas ideias de seu autor sobre os mais diversos temas, como tempo histórico, utilidade da História, verdade e realidade históricas. Enfim, apesar de breve, a gama de assuntos é variada, bem ao estilo nietzschiano naquilo que concerne à mistura de ideias. E assim também é o recente livro Epistemologias da história; verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade, obra de título complexo e de temáticas diversas, e cujos debates apresentados ao leitor também não tem nada de simples. Pelo nível de erudição presente nos textos que o compõem, talvez Epistemologias esteja voltada mais aos pesquisadores com certa bagagem de trabalho do que a iniciantes, porém não deixa de ser essencial a esses últimos. Para além da querela entre historiadores modernos e pós-modernos, a obra, fruto de um esforço intelectual coletivo, chega em muito boa hora ao mercado editorial nacional, o qual padece de uma carência endêmica relacionada às discussões sobre metodologias historiográficas.
Resenhista
Thiago Rodrigo Nappi – Universidade Estadual de Londrina/PR, Brasil. E-mail: thiagonappi@uol.com.br
Referências desta Resenha
GIANNATTASIO, Gabriel; IVANO, Rogério (Orgs.). Epistemologias da história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade. Londrina: Eduel, 2011. Resenha de: NAPPI, Thiago Rodrigo. Os Muitos Fazeres Historiográficos na Pós-Modernidade. Diálogos. Maringá, v.16, n.1, 355-360, jan./abr. 2012. Acessar publicação original [DR]