Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio
Ao detectar a carência de materiais educativos voltados para o estudo das línguas e culturas clássicas na academia brasileira, Paulo Sérgio de Vasconcellos e Matheus Trevizam resolveram coordenar, junto à Editora da Unicamp, uma coleção intitulada Bibliotheca Latina. O intuito é reunir 19 títulos, voltados para diferentes gêneros literários praticados na Antiguidade. Em 2014, Vasconcellos lançou um trabalho sobre poesia épica, no qual estudou as epopeias de Ênio e Virgílio. Trevizam, no mesmo ano, publicou um livro sobre poesia didática (Virgílio, Ovídio e Lucrécio) e outro sobre prosa técnica (Catão, Varrão, Vitrúvio e Columela). No ano de 2016, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni escreveram sobre historiografia (Salústio, Tito Lívio e Tácito) e Leni Ribeiro Leite tratou da épica pós-virgiliana (Ovídio, Lucano e Estácio). Um texto sobre epigrama (Catulo e Marcial), de Robson Tadeu Cesila, saiu em 2017. Os outros 13 volumes ainda não foram publicados, mas os coordenadores anteciparam os gêneros que serão abordados: Elegia, Lírica, Comédia, Tragédia, Diálogo filosófico, Bucolismo, Romance, Epistolografia, Tratados gramaticais, Sátira, Fábula, Tratados de retórica e Eloquência. A presente resenha, como o título anuncia, tem por objeto o livro Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio. Sua autora, Leni Ribeiro Leite, é professora de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Espírito Santo.
Comecemos pela disposição do livro: após breve apresentação, há um capítulo introdutório no qual a autora discorre sobre o gênero épico, detendo-se especialmente nos exemplares romanos que sucederam a Eneida de Virgílio. Os capítulos II, III e IV retomam, respectivamente, os poemas de Ovídio, Lucano e Estácio. Em cada um deles, Leni Leite introduz a matéria poética e estabelece nexos com a epopeia virgiliana. Em seguida, há uma conclusão, uma seção na qual a autora comenta alguns trabalhos, uma pequena antologia com fragmentos dos poemas analisados e discriminação da bibliografia geral.
Ler epopeia atualmente é seguramente uma empreitada espinhosa, pois pressupõe códigos linguísticos que as estéticas românticas arruinaram. Sendo assim, retomar os exemplares latinos do gênero envolve vagar e dedicação. Vagar para degustar especiarias linguísticas e dedicação para apreendê-las historicamente. No entanto, não convém pressupor um modelo literário unívoco, já que Ovídio, Lucano e Estácio representam maneiras díspares de encarar a épica. Esses poetas escreveram ao longo dos séculos I-II e, portanto, não puderam se furtar do diálogo com a tradição. Por outras palavras, não há forma de escapar de poemas como a Eneida, ainda que a intenção seja refutá-los.
Antes de prosseguir, é preciso remeter às circunstâncias históricas que ampararam a iniciativa e o livro de Leni Leite. Nos últimos anos, a atenção dispensada ao gênero épico tem se avolumado consideravelmente. Não deixa de ser intrigante, uma vez que boa parte dos leitores do século XXI costuma resistir à leitura dos clássicos. A Penguin Companhia lançou, há pouco, as traduções de Frederico Lourenço da Ilíada (2013) e da Odisseia (2011). Em 2014, a Editora 34 publicou uma tradução da Eneida efetuada por Carlos Alberto Nunes. Três anos depois, a mesma editora lançou as Metamorfoses de Ovídio, traduzida por Domingos Lucas Dias. A Editora da Unicamp publicou os cinco primeiros cantos da Farsália (2011), de Lucano, com introdução, tradução e notas de Brunno Vieira. Além disso, alguns estudos também foram desenvolvidos recentemente: alguns deles resultaram, em 2014, no livro Grandes Epopeias da Antiguidade e do Medievo, organizado por Dominique Santos. Já mencionamos, há pouco, o livro de Paulo Sérgio de Vasconcellos sobre as epopeias de Ênio e Virgílio, que integra a Bibliotheca Latina. Vários trabalhos e artigos acadêmicos sobre o assunto foram e continuam sendo escritos, o que deixa transparecer uma persistente tentativa de reaver as ruínas desse gênero. O livro de Leni Leite chamou-nos a atenção por dois motivos: além de contribuir com o debate em questão, ele voltou-se para poemas pouco conhecidos na academia brasileira. Muitos estudiosos apreciam as peripécias de Odisseu ou já ouviram falar sobre as andanças de Eneias, mas poucos saberiam discorrer sobre a poesia de Ovídio, Lucano e Estácio.
O capítulo I volta-se para as características protocolares do gênero, como era de se esperar de um material introdutório que busca contemplar um público mais amplo. A autora menciona os juízos e/ou preceptivas antigas como forma de demonstrar a falta de consenso na definição de epopeia. Ainda assim, é possível assinalar características que são esperadas, tais como uma narração in medias res, a presença de um concílio divino, a adoção de proposição e invocação no princípio do poema, uso de símiles, da écfrase etc. Na sequência, Leni Leite retoma brevemente outros poemas latinos, mais ou menos contemporâneos àqueles que elege para analisar nos capítulos seguintes: Valério Flaco, fundamentando-se no ciclo mítico de Jasão e baseando-se no poema de Apolônio de Rodes, escreveu a Argonáutica; em Punica, Sílio Itálico retratou a segunda guerra púnica, tema que outrora atraiu o poeta Névio; De raptu Proserpinae, de Cláudio Claudiano, é uma epopeia mitológica que representa o rapto de Prosérpina/Perséfone, filha de Ceres/Deméter, por Plutão/Hades.
O capítulo seguinte é dedicado à epopeia de Ovídio, intitulada Metamorfoses. O poeta reúne um total de 15 livros, dedicados a diferentes episódios da mitologia. Sua matéria, que pretende sobrepor/superar as outras, retoma a totalidade do universo, da formação do universo ao presente do poeta. Seu pertencimento ao gênero épico, como a autora recorda, já foi posto em questão. O título remete às transformações que caracterizam a vida. A mudança, portanto, é o fio condutor que interliga a multiplicidade de narrativas mitológicas que o poema retoma. Ovídio emula a tradição e, diferentemente de Virgílio, o poeta aproxima-se não tanto de Homero, mas de Hesíodo. A recusa em se admitir sua adesão à épica justifica-se não somente pelo afastamento do tema bélico, mas da adoção de preceitos que seriam recorrentes em outros gêneros, como a elegia, a tragédia etc.
O terceiro capítulo recupera o único poema (incompleto) de Lucano que nos restou: Bellum Ciuile, também conhecido como Farsália. O poeta em questão ocupou lugar privilegiado na corte de Nero, de quem se distanciou ao participar da Conspiração dos Pisões. O tema de sua epopeia é a guerra civil de 49-47 a. C., travada entre Júlio César e Cneu Pompeu, momento em que já se constata a fragilidade da República. Lucano não se vale da máquina mitológica e, diferentemente de Virgílio e Ovídio, ele retrabalhou “a tradição romana da épica histórica, concentrando-a em uma temporalidade mais limitada do que a dos Anais, removendo o aparato divino e evitando os mitos de fundação” (p. 50). A decadência da República é um dos objetos do poema, bem como a degeneração da integridade, da coragem, da piedade, do respeito, qualidades que remetem ao mos maiorum, à tradição romana. A guerra civil é encarada como um grande mal e as personagens são tipificadas de modo a figurar valores como liberdade, ambição, tirania etc. À maneira de Ovídio, Lucano se afasta do modelo virgiliano de epopeia mítica e bélica, o que não quer dizer que tenha se privado de imitar predicados da Eneida.
Por fim, o capítulo IV avalia os poemas atribuídos a Estácio: um completo, intitulado Tebaida, e Aquileida, interrompida com a morte do poeta. O primeiro remete à triste saga dos filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, que não cumpriram as ordens do pai de governarem em turnos a cidade de Tebas e, em consequência, foram vítimas de uma maldição: ambos morreram em campo de batalha, pelas mãos um do outro. Convém mencionar que a razão da maldição lançada pelo pai e assentida em concílio pelos deuses foi a ausência de pietas, uma importante virtude romana que nos leva a recordar a persona de Eneias. Aquileida, por sua vez, alude à vida de Aquiles. Estácio, como se pode ver, dedicou-se à epopeia de cunho mitológico.
Para encerrar, convém considerar a centralidade da aemulatio, isto é, do procedimento artístico que prevê a apropriação da consuetudo, do costume do gênero. Imitar não trazia necessariamente qualquer prejuízo em termos de mérito poético, já que o modelo era constituído para ser seguido. Não se pode presumir, no entanto, que o cânone impedia formas díspares de invenção, disposição e elocução: basta recordar, por exemplo, a maneira como Virgílio, diferentemente de Homero, separa a proposição da invocação, ou a forma como Camões, na epopeia lusíada, incorpora a dedicatória ao poema. Emulação, no final das contas, pressupõe superação do modelo, mas jamais prescinde dele.
Ao se desvencilhar de termos muito técnicos e mobilizar um linguajar ameno, o livro cumpre o propósito da coleção que ele integra: tornar a literatura latina mais atrativa a um público amplo e diversificado. Simultaneamente, atende às finalidades basilares da instituição retórica: instrui, move e deleita sua audiência. Sendo assim, que ele sirva de pretexto para o leitor buscar os poemas de Ovídio, Lucano e Estácio, afinal, por mais agudo que seja, um estudo jamais substitui seu objeto.
Referência
LEITE, Leni Ribeiro. Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.
Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (INHIS-UFU).
LEITE, Leni Ribeiro. Épica II: Ovídio, Lucano e Estácio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016. Resenha de: FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Epopeia: um gênero multiforme. Dimensões. Vitória, n.45, p. 372-377, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]