Os textos aqui reunidos versam sobre produção, circulação e recepção de obras artísticas visando contribuir com olhar problematizado a partir das imagens de arte na discussão sobre a cultura visual de fins do século XIX e início do XX. Pensar entresséculos permite alargar as faixas cronológicas tradicionalmente propostas pela historiografia, permite mesclar diferentes documentos consultados pelos autores e transpor marcos temporais esta – belecidos nos arquivos e nos compêndios da história, da cultura e da arte.
São apresentadas, neste minidossiê, diferentes categorias de imagens artísticas e de documentos, em assuntos como pintura, arquitetura, ensino artístico e objetos decorativos, com relevantes contribuições ao debate atual no campo da visualidade. Vale ressaltar o interesse das áreas de história e de arte nas abordagens visuais seja para alargar seus conhecimentos específicos, como no tratamento de material visual enquanto documento e/ou objeto de estudo, seja para provocar o diálogo com outras áreas do conhecimento e levar seus saberes particulares a outros domínios.
Desta maneira, as imagens apresentadas e discutidas pelos autores ampliam consideravelmente a noção de obra de arte, ao abordarem aspectos da produção, da circulação e recepção, levando o leitor a deslocar seu olhar para lugares inesperados de apreciação e produção das obras. As imagens de entresséculos escolhidas para aqui figurarem instigam reflexões sobre múltiplos aspectos: objetos, seus lugares e juízos estéticos cambiantes; formação de olhares artísticos moldados pelo ensino acadêmico; escrita de uma história da arquitetura no Brasil com a colaboração das imagens; con – figuração de uma estética decorativa como emblema de uma arte pública.
Sonia Gomes Pereira lembra da renovação historiográfica que a arte brasileira oitocentista vem passando nos últimos anos, permitindo se despir das generalizações que encobriam as complexidades da produção artística relacionada ao sistema acadêmico, que envolvia um processo de aquisição de domínio da representação das formas, principalmente humanas, com fins narrativos. Longe de se configurarem como estanques e enrijecidas, as imagens ditas acadêmicas foram bastante heterogêneas. Ao estudar caso a caso, opção metodológica defendida por Sonia, que oferece o exemplo do Prêmio de Viagem de Rodolfo Amoedo, permite-se a ultrapassagem da visão dicotômica entre tradição e modernidade, entre acadêmicos e modernos.
Denise Gonçalves discute os meandros da construção da história da arquitetura a partir do embate entre texto, imagem e representação do espaço, recuperando a tradição do conceito de disegno, desde Alberti, como fundamento de um modelo de representação considerada fidedigna e científica, mas que nos oitocentos começou a enfrentar maior descrédito em virtude das imagens bidimensionais não conseguirem dar conta da complexidade espacial e dos novos sentidos atribuídos à arquitetura e aos espaços urbanos. Trazendo a discussão para o Brasil, Denise pontua a atuação de J. A. Cordeiro em Ostensor Brasileiro e de Araújo Viana em Renascença e de como o ‘método do passeio’, expressão forjada pela autora, procurou criar uma alternativa ao modelo albertiano de análise arquitetônica e oferecer imagens como valorização de uma cultura nacional, a partir dos monumentos que se destacavam no espaço urbano do Rio de Janeiro. Para a autora, as fotografias que entremeiam os textos funcionam como quadros vivos do espaço urbano, pontuando a arquitetura e rascunhando uma nova história.
Arthur Valle desenvolve o argumento de uma tipologia de pintura realizada nos primeiros anos da República, a de estética decorativa, encontrada na ambientação dos prédios públicos e privados, na cidade do Rio de Janeiro. Ao discutir uma modalidade de pintura com suas regras próprias, Arthur enfrenta algumas obras decorativas e as críticas a elas dedicadas, como verifica que tais discussões se fizeram presentes tanto na Europa quanto no Brasil. A partir dos preceitos de Prosper Merimée e da repercussão das obras de Puvis de Chavanne, são visitados os ciclos decorativos presentes nas obras de artistas brasileiros finisseculares, com o intuito de evidenciar a amplitude do termo decorativo no âmbito das artes visuais.
Marize Malta discute a relação entre imagem, objeto e espaço ao analisar o percurso de produção, comercialização e apreciação de uma única peça decorativa, a imensa jarra Beethoven, mostrando a transitoriedade dos sentidos e o papel desempenhado pelas instituições e pela crítica no balizamento do juízo sobre o objeto artístico. A autora situa sua reflexão no campo teórico/metodológico da cultura visual, a partir do qual pensa o deslocamento físico da obra e o deslocamento dos sentidos a ela atribuídos ao longo do tempo. Apresenta o artista português Rafael Bordallo Pinheiro, autor da jarra realizada sob encomenda de um abastado proprietário de terras também violinista amador, e a busca por um comprador para a sua “criatura”.
Convidamos a leitura deste minidossiê visando compartilhar questões entresseculares que inquietaram os autores e, esperamos, inquietem os leitores.
Organizadores
Luciene Lehmkuhl – Professora do Instituto de História da UFU e integrante do conselho editorial da ArtCultura.
Marize Malta – Professora da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Referências desta apresentação
LEHMKUHL, Luciene; MALTA, Marize. Pensar arte de entresséculos. ArtCultura. Uberlândia, v. 12, n. 20, p. 83-84, jan./jun. 2010. Acessar publicação original [DR]
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