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Entre mares: o Brasil dos portugueses | Maria de Nazaré Sarges

Brasil, berço dos imigrantes

Sua raça é mistura

Sem cessar Roberto Ribeiro e Jorge Lucas (Samba Enredo da Escola de Samba Império Serrano, 1977)

A idéia do Brasil como um berço de imigrantes não é mera licença poética, daquelas que o carnaval permite. Italianos, libaneses, espanhóis, húngaros, alemães, japoneses, chineses e poloneses, entre imigrantes de outras nacionalidades, alcançaram o país em diversos momentos, especialmente a partir da formulação de políticas de incentivo à imigração, do último quartel do século XIX em diante. A introdução desses imigrantes conformou definitivamente os rumos da vida brasileira, de modo que as correntes migratórias estabelecidas desde então e a imigração como processo constituíram-se em objetos de estudos especializados.[2]

Visto como aquarela, como cadinho no qual foram forjadas uma nacionalidade e uma identidade singulares, o país se pensa e é pensado a partir da mistura. Autores emblemáticos, constituintes da gênese da moderna historiografia brasileira, participaram da conformação dessa tese, enfatizando o lugar preponderante dos portugueses na conformação dos tipos sociais e da cultura brasileiras. Entre nós, que vivemos e produzimos história a partir da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis foi, certamente, o gestor dessa perspectiva. Suas obras repercutem aquela tese para a trajetória histórica da Amazônia. [3]

Os vínculos que unem Portugal e Brasil contribuíram para que o país se tornasse um dos destinos preferenciais de portugueses interessados em emigrar. Aqueles homens e mulheres trouxeram em sua bagagem mais que o interesse de mobilidade e ascensão social, de melhoria das condições materiais de existência; seus valores, tradições, códigos de conduta, vícios e virtudes também compuseram o rol de utensílios que os acompanharam.

As trajetórias percorridas por esses emigrantes têm sido pesquisadas sob diversos aspectos.[4] O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses participa da discussão sobre imigração no Brasil por meio da análise das correntes migratórias lusitanas para o Brasil. Nascido a partir do encontro de instituições brasileiras e portuguesas [5] em torno da temática da imigração lusa para o Brasil, o livro apresenta contribuições relevantes à temática, por meio dos artigos que o compõem, os quais resultam das reflexões apresentadas por seus autores no V Seminário Internacional sobre a migração portuguesa, ocorrido em Belém, no Pará, em setembro de 2009.

O livro está dividido em três partes: a primeira trata da presença portuguesa na Amazônia; a segunda aborda as experiências portuguesas em outras partes do Brasil; a terceira e última parte versa sobre aspectos diversos, como legislação, projetos políticos e registros de emigrados. Mais do que sugerem os títulos das partes, os artigos constituem um panorama revelador das possibilidades dos estudos sobre imigração.

Rafael I. Chambouleyron e Paulo C. Gonçalves, cada qual em seu artigo, analisam as motivações dos emigrantes. O primeiro considera a transferência de portugueses para o Estado do Maranhão no século XVII, o segundo sopesa a interferência dos interesses de Estado nos projetos de migrantes portugueses desejosos de se transferirem para o Brasil, ao longo do século XIX. A perspectiva adotada por esses dois trabalhos é complementada por outros que analisam aspectos quantitativos do fenômeno migratório, considerando a saída de portugueses das diversas localidades lusitanas. Maria da C. C. Salgado, Isilda B. da C. Monteiro, Ricardo Rocha, Susana S. Silva, Diogo Ferreira e Fernando de Sousa elaboram estudos que dão conta do perfil dos emigrantes, considerando faixa etária, gênero, funções exercidas e o que mais a documentação permitir, em áreas como a região do Douro e Trás os Montes, o universo insular açoriano e a parte Norte do país, desde o século XIX até bem entrado o século XX. Antonio O. de Souza Jr. e Daniel Barroso consideram o universo brasileiro por essa mesma perspectiva ao analisarem o fluxo de imigrantes portugueses para o Grão-Pará, no início do século XIX.

Outra dimensão dos estudos sobre imigração é satisfeita pelos trabalhos que analisam a experiência dos imigrantes no Brasil. É o caso da reflexão desenvolvida por Eliana R. Ferreira, que considera a presença portuguesa na Vila de Óbidos, no Pará do século XIX. Sênia Bastos analisa a distribuição dos diferentes estratos de imigrantes portugueses pela cidade de São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940. Nessa dimensão, destacam-se, particularmente, as pesquisas sobre formas de sociabilidade, estabelecimento de vínculos e estratégias de ascensão social forjadas pelos imigrantes lusos, desde meados do século XIX até a segunda metade do século XX. Roseli Boschilia, Celina Fiamoncini e Giseli C. Passos, Vitor M. M. da Fonseca, Maria A. F. Pereira e Maria S. G. Frutuoso, Andréa T. da Corte, Ismênia Martins, Maria de N. Sarges e Caue Morgado, Cristina D. Cancela e Daniel Barroso e Yvone D. Avelino são autores dos artigos que tratam dessa fração importantíssima do universo imigrante, desvendando a interferência das diversas comunidades portuguesas no mundo em que se inserem. Maria Izilda S. de Matos e Lená M. de Menezes, em artigos próprios, participam desse grupo de trabalhos verificando as estratégias de sobrevivência e inserção social formuladas por mulheres imigrantes.

Aspectos reveladores do fluxo migratório português para o Brasil são perscrutados por outros artigos. O posicionamento da classe política lusa sobre a emigração para o Brasil é analisado por Paula Barros. José S. R. Mendes faz percurso inverso, ao considerar as reflexões dos constituintes brasileiros, de 1946, sobre a participação portuguesa na formulação da cidadania brasileira. Ainda com relação às formulações das elites, Paula M. Santos, Pedro Leitão e Filipe Ramos consideram a legislação portuguesa, produzida durante o Estado Novo português, e Paulo M. dos Santos Jr. analisa a apropriação das teses raciológicas, do final do século XIX, pela imprensa amazonense do início do século XX. O trabalho de Magda Ricci configura contraponto a este conjunto de trabalhos, pois, além de considerar a participação da comunidade luso-paraense na conformação de identidades locais, sopesa a percepção das populações indígenas e negras sobre a emergência daquelas identidades.

Dois trabalhos sugerem um caminho promissor para os estudos sobre imigração ao debruçarem-se sobre trajetórias individuais de imigrantes. É o caso da pesquisa de Aldrin M. de Figueiredo sobre o interessantíssimo caso de um pajé português no Pará oitocentista e o trabalho de Alexandre Hecker sobre a participação de um militante português nos processos iniciais do socialismo no Brasil. Finalmente, o trabalho de José J. de A. Arruda propõe reflexão sobre a apropriação, pelas pesquisas sobre imigração portuguesa, das contribuições formuladas pelos trabalhos que tratam do novo regime de temporalidade.

O livro Entre mares: o Brasil dos portugueses, especialmente pela diversidade dos temas que abarca e das perspectivas adotadas, oferece oportunidade para a reflexão sobre imigração no Brasil e, particularmente, para a consideração da participação portuguesa na conformação de nossas especificidades. Boa leitura!

Notas

2. Destaco os seguintes trabalhos, em os diversos estudos disponíveis: Boris FAUSTO. Negócios e ócios: histórias da imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Jeffrey LESSER. Negociando a Identidade Nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001; Giralda SEYFERTH; Helión POVOA NETO; Maria C. C. ZANINI. Mundos em Movimento: ensaios sobre migrações. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2007; Nelma BALDIN. Tão fortes quanto a vontade – história da imigração italiana para o Brasil: os vênetos em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 1999; Núncia Santoro de CONSTANTINO. Italiano na cidade: a imigração itálica nas cidades brasileiras. Passo Fundo/Porto Alegre: Editora da Universidade Federal de Passo Fundo/ACIRS, 2000; SEYFERTH, Giralda. A Colonização Alemã no Vale do Itajaí-mirim: um estudo de desenvolvimento econômico. Porto Alegre: Movimento, 1974; Maria Yume TAKEUCHI; Maria Luiza Tucci CARNEIRO (orgs.). Imigrantes Japoneses no Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; Hiroshi SAITO. A presença japonesa no Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

3. Arthur Cezar Ferreira REIS. A Amazônia que os portugueses revelaram. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1994; A política de Portugal no Vale Amazônico. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1993; A formação espiritual da Amazônia. São Paulo: SPVEA, 1964.

4. Destaco, aqui, os trabalhos que analisam os fluxos migratórios e os percursos de imigrantes portugueses, como os de: Eulália Maria Lahmeyer LOBO. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001; José Aurivaldo Sacheta Ramos MENDES. Laços de sangue: privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil (1822-1945). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

5. CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, do Porto; Universidade do Porto, Universidade Lusíada; Universidade dos Açores; ISCTE: Universidade Federal do Pará: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Universidade de São Paulo: Universidade Federal Fluminenses: Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Universidade do Estado de São Paulo e Universidade Mackenzie.

Mauro Cezar Coelho – Professor Adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.


SARGES, Maria de Nazaré e outros (Org.). Entre mares: o Brasil dos portugueses.  Belém: Paka-Tatu, 2010. Resenha de: COELHO, Mauro Cezar. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.6, n.6, p.229-232, 2010. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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