Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes | Antonio de Ruggiero e Leonardo de Oliveira Conedera
Antonio de Ruggiero | Imagem: PUC-RS / Acervo pessoal do autor
Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes, organizado por Antonio de Ruggiero e Leonardo de Oliveira Conedera, apresenta estudos de caso de pesquisadores brasileiros sobre a temática da História da Imigração Italiana a partir de fontes orais que, ao possibilitarem uma variação de escalas entre a história individual e a grande história, permitiriam compreender a memória coletiva como a lembrança de um passado comum dentro de uma comunidade que constrói e reconstrói identidade compartilhada.
Segundo Maria Lusitana Santos (2012, p.161), a memória seria um tema popular na produção cultural de sociedades desenvolvidas. Podemos dizer que a memória ascendeu como importante fonte no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em virtude das tentativas de se apagar as fontes oficiais. Os testemunhos do vivido por vítimas dos campos de concentração e extermínios, por exemplo, surgem como um registro de um passado que não poderia ser esquecido, conferindo à História Oral um dos expedientes empregáveis para pesquisadores de História.
Ao longo do tempo, muitos estudiosos buscaram definir seu entendimento acerca da memória. Para Santo Agostinho, ela seria uma das categorias fundamentais da alma; para Freud, seria representação que incluiria a vida psíquica consciente e inconsciente do indivíduo; para Halbwachs, ela se construiria a partir das vivências de grupos sociais onde a memória individual seria um ponto de vista da memória coletiva. Em suma, pensar em memória envolve considerar a heterogeneidade a partir da singularidade, por exemplo. Podemos dizer que essa visão constituiria o cerne da obra resenhada.
Ainda na apresentação, Ruggiero e Conedera inserem a obra no contexto de ampliação dos estudos que se valem da metodologia da História Oral. Segundo os organizadores, nesse vasto grupo residiriam pesquisas relacionadas às representações e memórias identitárias herdadas pelos descendentes de imigrantes, que chegaram ao Brasil no final do século XIX e no início do século XX, e sobre as mobilidades humanas mais recentes.
Além de aspectos individuais, um estudo como esse deixaria transparecer uma tipologia de memória no que se refere a uma memória coletiva que construiria e reconstruiria uma identidade compartilhada.
No capítulo 1, intitulado “Crenças e práticas de cura entre os descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul – Século XX”, as autoras Karina Bortolanza e Maíra Inês Vendrame se propõem a analisar as entrevistas de descendentes de imigrantes residentes na comunidade São José, da qual também fazem parte, buscando compreender as explicações conferidas a determinadas práticas de cura de alguns que se diziam detentores de poderes sobrenaturais e a relação entre tais procedimentos e a experiência de mulheres que atuavam como benzedeiras (p.19).
Após demarcarem o entendimento de História Oral como um meio de conhecimento (p.17), as autoras deixam claro pontos importantes da sua aplicação na pesquisa em questão, a exemplo do tipo de entrevista utilizada e da escolha dos entrevistados. Um dos pontos positivos desse capítulo seria a problematização, indo de encontro a uma historiografia tradicional, sobre a busca por curandeiros que não dever ser compreendida apenas pela ausência de médicos na região já que muitas dessas práticas se faziam presentes no início da ocupação e continuaram a existir, tensionadas, por vezes, pela presença de uma sociedade médica no local (p.23). As autoras, por outro lado, não apresentam a compreensão do que consideraram “práticas de cura”. No início, pensamos serem algo amplo, depois vemos que tais práticas são mais voltadas ao ato de benzer as pessoas, por exemplo. As autoras também se valem da categoria “ritos de magia” ou “ritos mágicos” sem apresentarem, de maneira clara e consistente, uma definição para o que elas entendem por magia, rituais e até mesmo bênção.
No capítulo 2, intitulado “Um grupo minoritário: relatos sobre a vivência italiana do nordeste gaúcho”, Vicente Dalla Chiesa explora o período de meados da década de 1930 a meados da década de 1960 com o objetivo de apresentar a vivência do preconceito por parte de comunidades metodistas que residem numa área de predomínio católico.
Nesse ponto entra a contribuição, para Chiesa, da História Oral. Ela dá a ouvir vozes que, de outra maneira, estariam silenciadas nos relatos oficiais (p.40). O autor apresenta, ao longo do artigo, suas escolhas em relação aos relatos, a organização do texto por cortes temáticos, informando, inclusive, que as declarações se referiam a um lapso de tempo no qual a presença metodista teria sofrido uma retração (p.41).
O autor afirma o valor da fonte, dizendo não se tratar “de um relato de perseguições produzido por uma fonte metodista, o que reforça sua verossimilhança” (p.42). Contudo, o fato de o relato não ter partido de um metodista não o isenta de ser alvo de problematização. Outro ponto frágil está na passagem sobre a queima das bíblias metodistas (p.51). Compreendemos que o foco do trabalho são as perseguições sofridas pelos metodistas. Mas, é interessante notar como, a partir dos trechos das entrevistas apresentadas pelo autor, os depoentes justificavam as perseguições por serem eles considerados “inimigos de Cristo”, ao mesmo tempo em que há uma adoção desse mesmo discurso, por parte dos metodistas, num sentido contrário (como é possível notar no opúsculo mencionado cujo título pode ser traduzido para “Discurso sobre a queima das Bíblias feitas pelos inimigos de Cristo”, de autoria de Mateus Donati). Tal circularidade de discurso, se assim pudermos nominar, não é problematizada pelo autor. Apenas na página 63, no contexto das observações finais, o autor menciona breve e superficialmente que seria importante lembrar como as minorias religiosas historicamente teriam se estruturado em torno da ideia de serem portadoras do real conhecimento e de uma missão divina.
Em tons modestos, no capítulo 3, intitulado “Indústria têxtil na colônia italiana no Sul do Brasil: da pesquisa documental à história oral”, Vania B. M. Herédia se propõe a escrever a trajetória da primeira grande indústria têxtil da Região de Colonização Italiana no Sul do Brasil (p.69), a Cooperativa Têxtil de Galópolis. Posteriormente, a autora se mostra consciente dos limites da pesquisa histórica quando afirma que a análise apresentada recuperava parte de uma história que começa no século XIX, na Itália, e se estende a outro país (p.85). Segundo a autora, as fontes orais são importantes para reescrever muitos espaços de compreensão, por exemplo (p.70).
Apesar da importância dos relatos orais para a sua pesquisa, o que vemos no decorrer do texto é a utilização de poucos relatos, apresentados de forma genérica. No pacote de “entrevistados”, a autora coloca operários e ex-operários cuja feições são esmaecidas pela falta de informação sobre os mesmos (quem eles eram? Não sabemos ao certo!). São indivíduos que, em suma, não aparecem em sua individualidade, se opondo, em termos, a prerrogativa anunciada no início da obra: ouvir as vozes que seriam silenciadas pelas fontes oficiais. Outro ponto problemático é o fato de a autora anunciar, ao início de seu texto (p.71), que se valeria de fontes complementares para seu estudo, como a fotografia, mas nos apresenta imagens desconectadas da sua narrativa e empregadas como simples ilustrações (p.77-78).
No capítulo 4, intitulado “Memórias orais arquivadas: a escolarização de imigrantes no meio rural na região nordeste do Rio Grande do Sul (1910-1940)”, Luciane Sgarbi Santos Grazziotin explora a cultura escolar nos Campos de Cima da Serra Gaúcha, partindo de relatos orais de quinze sujeitos. Tais relatos foram selecionados no Acervo de Memória Oral (AMO) e no arquivo pertencente à Universidade de Caxias do Sul, tendo por filtro as entrevistas que tratavam das práticas de escolarização adotadas pelos moradores da região.
A autora deixa claro que a intenção do estudo não é a de salientar especificidades regionais e culturais, mas partir de um mosaico que a pesquisa em História da Educação ajude a organizar (p. 91). Ao apresentar os entrevistados e incorporar os relatos no decorrer da narrativa, a autora consegue materializar as suas ideias de maneira linear para a (o) leitora (o). A grande contribuição desse trabalhado se deve ao entendimento mais amplo do que viria a ser cultura escolar, como algo para além da materialidade, que envolve formas específicas de ensino, práticas singulares às culturas do lugar, inclusive na zona rural, aulas domiciliares com professores pagos pelos pais e pequenas escolas mantidas pela comunidade (p.107).
Entretanto, além da falta de cuidado com as notas de rodapé (que inexistem a partir do número 16), a autora parece desconsiderar a transformação do conteúdo das memórias individuais ao afirmar que o seu estudo “inventariou, assim, os traços, gestos e indícios que sobreviveram […]”. (p.9o)
No capítulo 5, intitulado “História Oral e narrativas biográficas no estudo da trajetória do marmorista italiano Leone Lonardi”, Regina Zimmermann Guilherme propõe demonstrar como utilizou as metodologias da História Oral em sua dissertação de mestrado, onde buscou entender o universo dos imigrantes qualificados que participaram do desenvolvimento urbano de Porto Alegre, desde o final do século XIX, a partir da trajetória do marmorista italiano Leone Domenico Lonardi (p.115).
Com toda certeza podemos afirmar que, ao pontuar suas escolhas teóricas e metodológicas (o trabalho sistemático de categorização das fontes, produção de textos sínteses, observação da documentação e imersão em novos questionários), a autora , para além da pesquisa de extrema relevância, acaba fornecendo um guia para a (o) leitora (o) que queira se enveredar por caminhos semelhantes. Assim, compreendendo os depoimentos orais como passíveis a múltiplas interferências e contradições (p.121), ela os demarca como de suma importância para a análise da trajetória de Lonardi e realização de pequenas biografias de indivíduos que se relacionaram com ele, a fim de reconstruir sua rede de sociabilidade (p.133).
Lamentavelmente, a autora não adequa alguns trechos citados da dissertação ao gênero capítulo de livro (p.119, n.7), repete informações (notas 18 e 23, por exemplo) e escreve de modo saudosista (como se estivesse a incorporar como suas as memórias dos entrevistados) que “as pessoas são definidas por suas posses, pelos seus bens” (p.134).
No capítulo 6, intitulado “Um Lucano no Novo Mundo: a trajetória de Guiseppe Antonio Marramarco em Porto Alegre”, Leonardo de Oliveira Conedera busca analisar a trajetória do imigrante italiano em questão, um dos muitos peninsulares que desembarcaram no Rio Grande do Sul após a Segunda Guerra Mundial, corroborando com os estudos a respeito do processo migratório italiano no contexto brasileiro (p.138).
Entendendo o ato de lembrar como uma reelaboração das vivências de um tempo pregresso com as percepções do hodierno (p.144), o autor não economiza elogios para ressaltar a trajetória de sucesso do migrante que, além de empreendedor (p.148), constituiu família, se dedicou ao trabalho voluntário (era um indivíduo caridoso), e levava esperança aos enfermos e presidiários no Estado no qual escolheu viver (p.154). A vida contada não tem problemas e nem conflitos. Isso só é matizado quando o autor pontua, ao tratar da criação do Instituto de Assistência Social aos Italianos (IASI), que nem sempre a experiência de mobilidade revela-se exitosa (p.153).
Completamente diferente dos capítulos anteriores, que traziam relatos de imigrantes analisados pelas (os) pesquisadoras (es), o capítulo 7, intitulado “’Eu ficava ali, olhando o céu’: Narrativas, imagens, objetos, personagens e lugares em pesquisas etnográficas com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na Itália”, apresenta as memórias da própria autora, Maria Catarina Chitolina Zanini. A autora apresenta a importância da memória a partir do binômio pesquisador/pesquisado, mas o que lemos é justamente uma pesquisadora que, implicitamente, abre-se ao público leitor, objetivando analisar o papel desempenhado pelas imagens, objetos, lugares e personagens nas narrativas acerca do pertencimento ao “mundo italiano”. Tais elementos, para a autora, seriam portadores de mana, ou seja, de uma energia especial e de um poder simbólico (p.159).
Zanini trata de toda sorte de objetos, das emoções a eles relacionadas, e mesmo de paisagens e seu relevante papel nos pertencimentos, construções identitárias e emoções (p.161). Além disso, a autora relata eventos que marcaram sua experiência de pesquisadora, se valendo de fotografias dispostas emsequência.
Depois de sintetizados e comentados os capítulos em seus prós e contras, é possível afirmar que o título da obra não fornece a devida dimensão ao leitor sobre o que nela é abordado, a partir do esforço das pesquisadoras e dos pesquisadores de buscar a compreensão de um todo amplo e plural, por exemplo, partindo de narrativas individuais. O livro fornece informações sobre como fazer uma pesquisa e comunica a experiência memorialística de quem, há anos, trabalha na área. A obra nos apresenta as várias faces contidas na aplicação da História Oral. Com a leitura, é possível perceber as inúmeras potencialidades envolvidas em sua utilização, mas também os perigos que a rondam como, como a falta de problematização dos relatos, a diluição dos indivíduos em grupos de entrevistados ou mesmo a exaltação demasiada de entrevistados na narrativa.
Referências
GIL, Isabel Capeloa. Olhando as memórias dos outros… Uma ética da fotografia de Freud a Daniel Blaufuks. In: CORNELSEN, Elcio Loureiro; VIEIRA, Elisa Maria Amorim; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Imagem e Memória. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2012, p.159-190.
Sumário de Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
- Apresentação | Antonio de Ruggiero e Leonardo de Oliveira Conedera
- Crenças e práticas de cura entre descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul – Século XX | Karina Bortolanza e Maíra Ines Vendrame
- Um grupo minoritário: relatos sobre a vivência metodista na colônia italiana do nordeste gaúcho | Vicente Dalla Chiesa
- Indústria têxtil na colônia italiana no Sul do Brasil: da pesquisa documental à história oral | Vania B.M Herédia
- Memórias orais arquivadas: a escolarização de imigrantes no meio rural na região nordeste do Rio Grande do Sul (1910-1940) | Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
- História oral e narrativas biográficas no estudo da trajetória do marmorista italiano | Leone Lonardi e Regina Zimmermann Guilherme
- Um Lucano no Novo Mundo: a trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco em Porto Alegre | Leonardo de Oliveira Conedera
- “Eu ficava ali, olhando o céu”: Narrativas, imagens, objetos, personagens e lugares em pesquisas etnográficas com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na Itália | Maria Catarina Chitolina Zanini
Resenhista
Maria Luiza Pérola Dantas Barros é doutoranda em História Comparada (PPGHC/UFRJ). Publicou, entre outros textos, “O trabalho com as fotografias no ensino da segunda guerra mundial: um estudo comparado das coleções do PNLD 2018″, O caso Nelson de Rubina: guerra e cotidiano em Aracaju (1942-1943) e A Revolução Mexicana nos livros didáticos de História do PNLD 2018. ID: https://orcid.org/0000-0002-1990-9017. E-mail: malupedanbar@gmail.com
Referências desta resenha
RUGGIERO, Antonio de; CONEDERA, Leonardo de Oliveira (Orgs.). Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes. Porto Alegre: Editora Fi, 2020, 179p. Em busca de memórias. Resenha de: BARROS, Maria Luiza Pérola Dantas Barros. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.4, p.40-46, mar./abr. 2022. Acessar publicação original.