Ensino de História: posicionamentos didáticos, teóricos e políticos | Escrita da História | 2018

Embora nunca tenha sido fácil desempenhar o papel de professor no Brasil, nos últimos tempos a função tem estado sob ataque. Docentes, sobretudo de História e de outras áreas humanas, têm sido acusados de doutrinar seus alunos e fomentar em sala um ensino parcial, ideológico e partidário.

Atualmente, na Câmara dos Deputados, uma comissão especial analisa o projeto de lei que tenta implementar as propostas do programa “Escola sem Partido”. A principal bandeira é a neutralidade absoluta no ensino. Com o anúncio do resultado das urnas das últimas eleições presidenciais e a vitória do candidato que é um dos arautos do movimento supracitado, houve uma intensificação das perseguições a professores que são acusados de promover o que o grupo considera doutrinação. Por meio das redes sociais, alunos foram incitados a gravarem áudios e vídeos que sirvam de supostas “provas” em futuros processos.

Para os defensores do “Escola sem partido”, os docentes não devem realizar discussões ou atividades que, na concepção dos idealizadores do movimento, se caracterizem como “doutrinação política e ideológica”, a exemplo de tratar de assuntos da atualidade, temas ligados às relações de gênero, racismo ou intolerância religiosa. Devem se limitar a lecionar os conteúdos de suas disciplinas e transmitir o conhecimento a respeito dos assuntos em questão, podendo sofrer penalidades caso desrespeitem tais orientações. Segundo as proposições do grupo, os professores não podem se aproveitar da “audiência cativa” dos estudantes para promover seus interesses.

Inúmeras discussões têm sido feitas a respeito do movimento e dos projetos de lei a ele atrelados. Especialistas em educação, professores, jornalistas e estudantes têm debatido os projetos, sua viabilidade, aplicabilidade e mostrado o caráter antidemocrático de suas proposições e sua inconstitucionalidade, ao impedir o pluralismo de ideias e a liberdade de cátedra. Acusam o projeto de querer implantar a censura nas escolas e de impor uma prática de ensino sem diálogo.

Alguém que já tenha entrado em uma sala de aula na atualidade perceberá que o ato de aprender não é tão passivo quanto querem fazer crer os partidários do “Escola sem partido”. Alunos são indivíduos em formação, também são seres pensantes, trazem consigo um saber oriundo da família e comunidade. Na escola, pela primeira vez podem entrar em contato com visões e percepções diferentes daquelas que têm contato usualmente. Ao serem confrontados por quem pensa diferente, desenvolvem a capacidade de diálogo com o outro. Aprenderão a debater, respeitando a pluralidade de ideias e as diferenças. A escola não necessariamente tem que reproduzir os valores familiares.

Defendemos não ser possível ensinar os conteúdos sem tratar da política, da economia, da cultura e da sociedade e que toda educação – ou todo pensamento e ação humana –, mesmo aquela reivindicada pelos que advogam em favor do programa “Escola sem partido”, é ideológica.

Nosso objetivo neste dossiê foi reunir trabalhos de pesquisadores e professores que mostrassem que o ensino das ciências humanas, sobretudo da História, mesmo quando pretensamente neutro, é carregado de valores. Todo currículo carrega uma historicidade e o ato de ensinar, mesmo quando realizado de forma aparentemente imparcial, implica necessariamente em se posicionar.

Consideramos ainda, baseados nas pesquisas recentes a respeito do ensino de História e de outras disciplinas escolares, que os professores, no desempenho de seu trabalho, não apenas expõe conhecimentos elaborados por outrem, mas eles mesmos produzem saberes na relação com seus alunos. Professores de História são portadores de um conhecimento específico proveniente de sua formação universitária. Saber esse que se constrói a partir do diálogo entre o presente e o passado. Tal diálogo torna-se fundamental para a produção de reflexões e para a elaboração das ideias para além da mera descrição cronológica. Ensinar História não é apenas expor uma narrativa a respeito de acontecimentos passados.

Com base nessas considerações, selecionamos artigos que contém reflexões em torno da construção de referenciais curriculares para o ensino de História. Consideramos que a elaboração de tais referenciais ensejam discussões que são políticas – em um sentido amplo – e que o currículo, longe de ser neutro, é fruto de uma seleção de conteúdos que são considerados relevantes por determinados grupos, em detrimento de muitos outros possíveis. As ausências e os silêncios, nesse caso, também são significativos e precisam ser ponderados.

O primeiro artigo do dossiê é do licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e professor da Rede Estadual de Ensino do Paraná, Matheus Mendanha Cruz. O trabalho foi elaborado a partir dos dados levantados pelo autor em uma pesquisa realizada por ele em 2017, junto aos alunos de ensino médio de escolas públicas e particulares da região de Campos Gerais, Paraná. Foram aplicados um total de 339 questionários contendo questões a respeito do período da ditadura militar (1964-1985). As questões buscavam auferir o conhecimento dos alunos a respeito do último governo ditatorial vigente no Brasil, relacionando tal conhecimento – ou a falta dele – ao grau de apoio ao retorno do modelo imposto em 1964. O autor ainda discute a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apresentada em 2015, buscando compreender em que medida o documento buscou a implementação de um currículo para o ensino de História mais significativo para os jovens estudantes do ensino médio.

Discutindo também a primeira versão da BNCC temos o artigo de Maria Aparecida da Silva Cabral, professora da Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e do Programa de Pós-graduação em Ensino de História – Rede Nacional – Profhistória. Cabral trata dos debates que a divulgação da primeira versão suscitou, entre 2015 e 2016, entre historiadores, intelectuais e especialistas em ensino de História. A autora aborda o documento referente ao Componente Curricular de História que compunha essa primeira versão da BNCC, e busca analisar a visão de conhecimento histórico escolar nele presente. O texto é um belo exemplo do que se apontou acima, a respeito da elaboração de propostas curriculares como um processo de disputas e tensões sobre quais contribuições se devem privilegiar na análise da construção da sociedade brasileira a ser veiculada no ensino de História.

Seguindo ainda uma análise a respeito da BNCC, o artigo do professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Éder Cristiano de Souza, traz uma discussão teórica sobre a concepção de aprendizagem da História. O autor problematiza as concepções de competência e “atitude historiadora” presentes na terceira versão do documento, apresentada em 2017, e faz uma crítica à concepção de aprendizagem histórica que ela mobiliza. Em contrapartida, propõe uma concepção alternativa para o estudo na disciplina, na qual o ensino se aproximaria dos fundamentos teórico-metodológicos da ciência de referência.

Fechando o bloco de artigos sobre referenciais curriculares, temos o trabalho da Professora substituta do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da UNESP, campus Franca e do Claretiano – Centro Universitário, Karina Elizabeth Serrazes. A docente confronta documentos instrucionais da rede estadual de ensino com as matrizes de referências e relatórios pedagógicos das avaliações do SARESP e do ENEM, tendo como foco a história do Brasil, com o propósito de verificar em que medida as avaliações externas condicionam os conteúdos de história do Brasil do currículo do ensino médio de São Paulo. A autora mostra como a interferência das avaliações externas contribui para o estabelecimento de um currículo prescritivo e homogêneo, que não dialoga com os anseios e expectativas dos jovens estudantes do ensino médio público.

O dossiê traz ainda dois artigos que, mesmo não se reportando diretamente dos referenciais curriculares, tratam de temas presentes (ou silenciados) no ensino de História, ambos focando o Ensino Médio:

O trabalho do professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAp-UFRJ), Diego Bruno Velasco se propõe a investigar exercícios presentes em livros didáticos do 3º ano do Ensino Médio, buscando identificar de que forma a produção de memórias interfere na elaboração do que o autor chama de “verdades discursivas” no espaço escolar. A partir das narrativas sobre o período da Ditadura Militar brasileira, compostas pelos exercícios, o autor busca perceber como o diálogo com o tempo presente influencia a dinâmica da memória e do esquecimento, marcando a produção voltada para o ensino de História.

Finalizando o dossiê, temos o trabalho da professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) e doutoranda da Universidade de Brasília (UnB), Kátia Luzia Soares Oliveira. A docente e pesquisadora apresenta parte dos resultados de seu trabalho de mestrado sobre os saberes docentes na cidade de Barreiras, na Bahia. Por meio de questionário e da coleta de relatos de experiências de professores da rede pública da referida cidade, a autora objetivou identificar e analisar como os docentes mobilizam saberes para o Ensino de História e Culturas Afro-brasileira e Indígena. Ao incluir temáticas referentes a esses conteúdos, os professores buscam atender às exigências da lei 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade do ensino desses conteúdos já há quase dez anos, mas que ainda encontra inúmeras dificuldades em seu cumprimento nas salas de aula do país. A autora busca compreender as estratégias e motivações dos professores para transpor tais dificuldades e cumprir o que determina a lei.

O número também conta com uma seção de artigos livres. O primeiro deles é de Rodolfo Rodrigues Almeida, mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em seu artigo, Almeida analisa os registros paroquiais de óbitos de negros escravizados na Freguesia de Nossa Senhora da Penha, em São Paulo, entre 1801 e 1863. O autor ressalta o papel das irmandades, sobretudo a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no fornecimento de ritos fúnebres e sepultamento aos escravizados. Mostra ainda como a religiosidade cristã católica se hibridizava com as manifestações de origem africana, de modo a possibilitar que tais ritos fizessem sentido para os escravizados que deles participavam.

O segundo artigo da seção é o de Sandra Regina Marcelino Pinto, doutoranda em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A autora analisa charges veiculadas recentemente na internet sobre a temática da intolerância religiosa. Tendo como referencial teórico as concepções do linguista francês Dominique Mainguenau, Pinto explora charges que apontam para a incitação da violência contra praticantes de outras religiões – sobretudo as religiões de matrizes afro-brasileiras – por parte de igrejas evangélicas – principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus.

O terceiro artigo da seção é de Rodrigo Aparecido de Araújo Pedroso, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. Em seu trabalho, o autor analisa o livro Que raio de professora sou eu?, publicado por Fanny Abramovich, em 1990. As reflexões da autora buscam aproximar o universo da literatura do ensino de História, a partir da construção de um modelo ideal de professor(a) da disciplina. O trabalho de Pedroso, em contrapartida, faz um esforço de compreensão das características desse modelo idealizado por Abramovich e de suas concepções a respeito do ensino de História.

Ronaldo Manoel da Silva, mestre em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), busca explorar o processo inquisitorial do escravo Timóteo da Fonseca, queimado na fogueira em Lisboa, no ano de 1647, por sentença do Tribunal do Santo Ofício. O réu foi acusado de sodomia e por seu “crime” foi condenado à morte “feito por fogo em pó”, já que a repressão à sodomia e a condenação do seu praticante era considerada uma forma de evitar a ira divina sobre toda a população.

Finalizando a seção temos o trabalho da doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e professora substituta no Departamento de História da mesma universidade, Helena Paulo de Almeida. A autora se dedica a compreender de que forma o termo “indígena” aparece em livros de leitura do período da primeira república brasileira. Sua fonte principal é o livro A Pátria Brasileira” de Olavo Bilac e Coelho Neto, publicada pela primeira vez em 1909. Almeida se debruça sobre a produção de uma memória coletiva que produz estereótipos sobre os povos indígenas que até bem recentemente estiveram presentes em materiais didáticos que circulavam nas escolas brasileiras.

A edição se encerra com a resenha da obra Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira, organizada pelo professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Gaudêncio Frigotto e lançada em 2017. O livro reúne nove trabalhos de professores e pesquisadores de universidades localizadas na cidade do Rio de Janeiro – principalmente da UERJ – e está disponível para download na íntegra gratuitamente. .A obra se encerra com uma citação do livro de Paulo Freire intitulado Extensão ou comunicação. Nessa citação Freire afirma que a educação jamais pode ser neutra: “Quem fala de neutralidade são precisamente os que temem perder o direito de usar de sua ineutralidade a seu favor”.1

Esperamos que os artigos aqui dispostos sirvam à reflexão sobre o ensino de História e sobre a educação em sentido amplo, pois foram produzidos por pesquisadores de diversas áreas, que são em sua maioria pós-graduandos ou pós-graduados e também professores em instituições públicas e privadas de ensino básico ou superior. A quem serve desqualificar essas pessoas? A quem serve tornar o professor indiferente? A quem serve calá-lo? A que ineutralidade serve o discurso da neutralidade no ensino?

Desejamos a todos uma boa leitura!

Nota

1 FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. 8. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 53. Apud FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. (Contracapa)


Organizador

Nayara Galeno do Vale


Referências desta apresentação

VALE, Nayara Galeno do. Apresentação. Escrita da História, v.5, n.10, p.3-8, jul./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

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