Ensino de História indígena / História Hoje / 2012
É com satisfação que apresentamos o dossiê temático do presente número da Revista História Hoje, que versa sobre história, educação e cultura indígena. A escolha da temática decorre, em grande parte, da Lei Federal 11.645 de 2008 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de ensino fundamental e médio, mas, sobretudo, o tema abordado nesta edição almeja contribuir para a ampliação dos estudos sobre os povos indígenas e subsidiar as tarefas dos professores de História em suas aulas. De acordo com a lei, a atribuição dos estudos é, em especial, relacionada à área de história, como fica explicitado nos parágrafos de seu artigo 1o:
- 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
- 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. [1]
Se, por um lado, a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígena na escola, forjada por uma lei, pode produzir certo desconforto, por outro oferece a possibilidade alentadora de que um tema tão importante e necessário se faça presente no curso básico e nos currículos de formação docente, favorecendo o diálogo étnico-cultural respeitoso embasado no reconhecimento dos saberes, histórias, culturas e modos de vida próprios dos povos originários e, contribuindo, assim, para superar o silêncio e os estereótipos que, em geral, acompanham a temática indígena nos espaços escolares.
A necessidade de rever a forma como a temática indígena é tratada na escola é uma preocupação de variados setores responsáveis pelas políticas públicas, de educadores e de intelectuais indígenas e não indígenas. Na Convenção 169 / 1989 da OIT, [2] lideranças indígenas afirmaram: “Medidas de caráter educativo deverão ser adotadas em todos os segmentos da comunidade nacional … com o objetivo de eliminar preconceitos que possam ter com relação a eles”. Diz ainda esse documento que muitos esforços deverão ser feitos, para que “livros de história e demais materiais didáticos ofereçam descrição correta, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos indígenas e tribais”. Nessa direção também se insere o depoimento de Vherá Poty Benitez, intelectual do povo Guarani. Segundo ele, a implementação da Lei 11.645 / 2008 requer alguns movimentos dos professores: em primeiro lugar a sensibilidade para reconhecer a necessidade e a importância do tema, inclusive para possibilitar aos alunos um encontro com a ancestralidade ameríndia. Porém, reconhece Vherá que os professores necessitarão de muito estudo, pois considera que há um desconhecimento do tema que precisa ser tratado com profundidade, trazendo-o para o centro das preocupações e reflexões na escola e nas aulas de História. E completa que para saber a história e cultura dos povos indígenas há um terceiro movimento, que é o de ouvir os próprios indígenas como autores de suas histórias, movimento que também iniciamos aqui, com a palavra de Gersem José dos Santos Luciano, professor indígena nascido na aldeia Yaquirana, no Alto Rio Negro, Amazonas, integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) e que esteve à frente da Coordenação da Educação Escolar Indígena, no Ministério da Educação (Secad / MEC) nos últimos anos. Em sua entrevista, especial para este número da História Hoje, Gersem Baniwa fala de sua trajetória de estudante, professor e gestor em escolas e em políticas educacionais indígenas, traçando um panorama nacional acerca da educação escolar específica e diferenciada. Discorre sobre a presença de estudantes indígenas no ensino superior e faz ponderações importantes acerca da implementação da Lei Federal 11.645 / 2008, apontando possíveis caminhos para processos interculturais no ensino da História e para a escola em geral.
Por parte dos historiadores houve uma ampliação de estudos sobre a temática indígena, embora pouco numerosos considerando a diversidade de grupos em todo o território brasileiro. Com base nos recentes estudos históricos tem havido uma renovação de materiais didáticos com iniciativas promissoras em obras, sobretudo paradidáticas, inseridas em concepções de história local ou regional. Tais concepções tornam-se condição fundamental para ultrapassar estudos que concebem genericamente os índios, sem considerar a diversidade étnica, cultural e histórica dos povos indígenas de diferentes lugares e sobre os conhecimentos que possuem sobre esses espaços historicamente ocupados. Afinal, existem atualmente cerca de 230 povos indígenas, com 180 línguas faladas que pertencem a mais de trinta famílias linguísticas, sem esquecer o grande número de sociedades indígenas exterminadas ao longo da história de contato. Os recentes estudos sobre a história dos povos indígenas no Brasil, é importante destacar, tiveram um importante referencial na obra organizada por Manuela Carneiro da Cunha, a História dos Índios no Brasil, de 1992, obra esta que marca, definitivamente, o rompimento com a ideia de que os indígenas são ‘povos sem história’. A partir desse momento, tem sido possível situar os indígenas em suas especificidades étnicas e culturais mas, principalmente, como sujeitos históricos e não apenas grupos resistentes às mais diversas frentes de colonização do século XVI ao XX. A concepção de que os indígenas também foram protagonistas da sua própria história, que participaram e ainda participam da história denominada nacional, não só na condição de trabalhadores escravos mas também como participantes da constituição das fronteiras da nação ou ainda como comunidades que lutam para manter sua própria forma de organização social e cultural, tem marcado a nova produção historiográfica que retoma um importante debate sobre as fontes para estudos de ‘povos sem escrita’. As pesquisas têm enfrentado os desafios de novos procedimentos metodológicos na análise das fontes escritas deixadas por religiosos, administradores e viajantes, dentre outros, além de uma complexa iconografia produzida pelos próprios indígenas e pelos não indígenas e por vestígios arqueológicos. Além disso, os historiadores deparam com uma nova concepção sobre o trabalho, graças à memória oral de povos cuja história se perpetua pelas narrativas de uma tradição oral.
Nessa dimensão dos estudos históricos, o artigo “Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo”, da historiadora Maria Regina Celestino de Almeida, apresenta uma reflexão que nos permite compreender e pensar sobre o lugar dos índios na história do Brasil, considerando sua invisibilidade enquanto sujeitos históricos no século XIX e o protagonismo crescente revelado pela historiografia atual. A autora analisa como os discursos e imagens sobre os índios, que contribuíam para lhes retirar o papel de sujeitos históricos no decorrer dos séculos XIX e XX, vão sendo lentamente desmontados em nossos dias, passando da invisibilidade para o protagonismo conquistado e restituído por movimentos políticos e intelectuais, nos quais eles próprios têm tido intensa participação, principalmente a partir da década de 1990.
No enfrentamento de revisão da história da catequese colonial em que predomina com exclusividade a ação dos missionários mesmo que analisada sob uma vertente em que se critica o processo de destruição cultural por eles promovido, apresenta-se o artigo de Fernando Torres-Londoño “Outra redução: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos, nas missões jesuíticas do Marañon no século XVII”. Nesse artigo o historiador Torres-Londoño, com base nas cartas jesuíticas, percorre a atuação do povo indígena Jebero em uma missão jesuítica na Amazônia do século XVII e suas formas de enfrentamento com os missionários. O autor indaga como os diversos povos indígenas que interagiram com os missionários entendiam as missões, e até que ponto compartilhavam da visão dos brancos. Nessa perspectiva há uma análise com inversão de olhares e de consideração de expectativas, deslocando a ênfase da ação dos missionários para a dos índios. E, ao realizar esse deslocamento – do olhar dos índios em relação aos missionários – torna possível um entendimento mais complexo das missões religiosas como lugares de redefinição das relações interétnicas e se percebe a dinâmica de negociações constantes entre jesuítas e lideranças indígenas que atinge também as ações dos colonizadores em suas guerras de conquista e ocupação territorial.
O tema educacional apresenta-se como relevante para estudos sobre a história dos povos indígenas, concebendo o significado do processo de escolarização como fundamental na história da integração de grupos de ‘selvagens’ ao se transformarem em ‘civilizados’. Tal concepção sobre a importância da educação no processo de integração dos povos indígenas na comunidade nacional marcou parte dos estudos sobre as comunidades indígenas, notadamente no século XX, e as formas de atuação dos órgãos estatais que passaram a se responsabilizar oficialmente pelas comunidades indígenas – Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e depois Fundação Nacional do Índio (Funai) – em relação à criação de escolas nas áreas indígenas. A trajetória da educação proporcionada pelo Estado nacional às comunidades indígenas é o tema do artigo do historiador indígena Edson Machado de Brito, “Da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi à escola diferenciada entre os Karipuna: entrelaçamentos na história da educação escolar indígena”. O autor, com base na pesquisa de doutorado, situa a problemática da transformação de uma escola criada na década de 1930 em uma aldeia situada na Terra Indígena do povo Karipuna, na região do Oiapoque, fronteira com a Guiana Francesa, cuja meta era ‘abrasileirar’ a comunidade para transformá-la em trabalhadores a serviço do Estado nacional, em uma escola indígena diferenciada, conforme possibilita a Constituição de 1988. O tema se entrelaça com a história da educação escolar indígena no Brasil em confronto com a educação tradicional indígena no decorrer desse processo de contato, pontuando as mudanças ocorridas a partir dos anos 1980, principalmente em decorrência das conquistas constitucionais e da legislação subsequente, que aponta possibilidades para uma educação escolar diferenciada, voltada para a preservação cultural, incluindo o direito ao estudo da língua materna.
Com base nos princípios das escolas diferenciadas para as comunidades indígenas, a autora Juliana Schneider Medeiros, no artigo “Educação escolar indígena: a escola e os velhos no ensino da história kaingang”, relata, a partir de um estudo etnográfico na Terra Indígena Kaingang da Guarita, no Rio Grande do Sul, como ocorre a participação das narrativas tradicionais na escola e no ensino de História. Com base no acompanhamento das aulas de História e nas conversas com os velhos, a autora apresenta reflexões sobre a relação dos velhos com a escola, buscando compreender qual o papel desses ‘contadores de histórias’ na transmissão da história kaingang. Trata-se de referencial significativo para o entendimento da construção de currículos escolares diferenciados para as escolas das comunidades, o qual envolve reflexões sobre o processo de conhecimento histórico e suas formas de transmissão em uma perspectiva de educação voltada para o fortalecimento da vida em comunidade.
Complementando tal perspectiva, o historiador Giovani José da Silva, no artigo “Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu: narrativas, memórias e ensino de história indígena”, discute, com base nas categorias de entendimento do passado entre índios Kadiwéu do Mato Grosso do Sul, a articulação entre o ensino de História e culturas indígenas e a elaboração de memórias e narrativas. O autor, que atuou como professor em uma escola indígena Kadiwéu, coloca sua experiência como ponto importante para reflexões sobre as formas de conhecimento sobre o ‘outro’ em situações de diálogos e respeito mútuos. Diz o autor que, ao se conhecer como determinado grupo indígena reconstrói o passado e que categorias são utilizadas para narrar / rememorar tempos pretéritos, percebem-se outras formas de apreensão, compreensão e representação da história, o que enriquece sobremaneira o ensino da disciplina.
A seção História Hoje na Sala de Aula integra o tema do dossiê e apresenta o relato da experiência de ministrar, no ensino superior, a disciplina optativa “Ensino de história e a questão indígena”, oferecida aos alunos do Departamento de História da FFLCH da Universidade de São Paulo pela historiadora Antonia Terra de Calazans Fernandes. A disciplina foi criada com base na Lei 11.645 / 2008 que ao tornar obrigatório, no ensino fundamental e médio, o trabalho com conteúdos referentes à história dos povos indígenas brasileiros, estabelece igualmente compromissos nos cursos de formação de professores. O relato apresenta as escolhas dos temas para estudo, as atividades, os autores propostos para leituras bibliográficas e algumas reflexões sobre os trabalhos realizados com os estudantes. Destaca ser fundamental, para além dos debates historiográficos sobre o tema, o levantamento das representações dos futuros professores em relação aos povos indígenas, para servir como ponto inicial de reflexões sobre a identificação, entre eles, de valores arraigados historicamente na cultura brasileira. A proposta do curso se fez de maneira a priorizar atividades de contatos com aldeias, avaliações de abordagens da temática em materiais didáticos para que se pudesse refletir sobre alternativas pedagógicas para futuros trabalhos escolares.
Encerrando o dossiê, Antonio Simplicio de Almeida Neto apresenta uma resenha do livro Os índios na História do Brasil, de Maria Regina Celestino de Almeida, publicado em 2010 (coleção FGV de bolso, Série História), na perspectiva de oferecer outras possibilidades para o cumprimento do que diz a Lei 11.645 / 2008 em relação ao ensino da história. Como diz o autor da resenha, a obra apresenta importante e denso panorama da temática – dentro dos limites de um livro de bolso – elaborado com base na produção historiográfica mais recente, novas leituras decorrentes de documentos inéditos, abordagens fundamentadas em novos conceitos e teorias, bem como pesquisas interdisciplinares.
É nesse sentido que se insere o Dossiê que ora apresentamos, num contexto de poucos estudos à mão dos professores, sabendo do quanto ainda precisa ser feito diante de uma diversidade de povos originários e cada um justamente reivindicando sua singularidade, escondida na generalização histórica que a palavra ‘índios’ produziu.
Desejamos uma boa leitura!
Notas
1. BRASIL. Lei 11.645, de 10 mar. 2008. Grifo nosso.
2. OIT. Convenção no 169 sobre povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à ação da OIT sobre povos indígenas e tribais. 2.ed. Brasília, 2005. p.47-48.
Circe Maria Fernandes Bittencourt – Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: circe@usp.br.
Maria Aparecida Bergamaschi – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: cida.bergamaschi@gmail.com.
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