Qual será o lugar da História na vida dos humanos? Este era um dos questionamentos levantados por Marc Bloch na abertura do seu livro A sociedade feudal. Hoje talvez devêssemos pluralizar a questão, não apenas no sentido de incluir os lugares ocupados pela História na vida dos diferentes humanos, mas de considerar as múltiplas narrativas históricas produzidas por diversos sujeitos sociais no presente. Sem deixar de reconhecer essa difusão de pluralidades de sentidos atribuídos ao passado – chamado por Le Goff já nos anos 1970 de “cultura histórica” – e do papel reflexivo colocado ao historiador e ao professor de História sobre a dinâmica dos usos e das utilizações políticas desse passado, cabe destacar que a profissionalização está longe de pretender consolidar discursos de verdade por parte dos historiadores – aliás, há muito superado – mas de possibilitar que tais profissionais atuem, com o devido reconhecimento da especificidade do seu saber, em diferentes espaços.
Reflexões que conjugam escrita da História, ensino de História, Educação e o papel do professor de História com profissionalização do historiador e do professor de História têm sido bastante discutidas nos últimos anos, especialmente em função do Projeto de Regulamentação da Profissão de Historiador, cuja última versão foi aprovada na Câmara dos Deputados em 2015, ainda aguardando tramitação no Senado Federal. Todavia, a crise política que vigora atualmente, demonstra que, talvez, faltem interesses políticos na regulamentação. Mas, na roda viva tudo pode mudar, embora o foco dos próprios historiadores nos parece estar mais voltado para outras discussões atuais em função dos diferentes projetos conservadores para a Educação, que afetam diretamente o Ensino de História no Brasil, como o “Escola sem Partido” e a Reforma do Ensino Médio.
Em geral, historiadores e professores de História têm estado atentos às reflexões sobrea função social da História e do ensino de História, mas também sobre os usos do passado e da História verificados na academia, na escola e nas mais diversas instâncias sociais – com aproximações e distanciamentos entre eles – que são marcados, queira-se ou não, por posturas teóricas e políticas determinadas, acionadas por aqueles que fazem, dizem, escrevem e ensinam História.
Diversos estudos apontam para as dúvidas, especialmente de alguns segmentos sociais e políticos, que pairam sobre a História e sobre o ensino de História, ora reafirmando o valor, a função e o significado do conhecimento histórico (e histórico escolar), ora oferecendo explicações para o suposto paradoxo entre o descaso com a História e a atração pelo passado na contemporaneidade.
O dossiê Ensino de História e profissionalização do professor / historiador no Brasil buscou reunir textos que abordassem esses temas, destacando a relação entre a formação profissional do professor de História e do historiador, as considerações sobre suas atribuições e as possíveis implicações para o ensino de História. Os textos que compõem este dossiê trazem, em seu conjunto, um panorama possível sobre o lugar ocupado pela disciplina História, pelo ensino de História, pelo professor de História e pela formação desse profissional, nas discussões acadêmicas, sociais e políticas, com suas distintas valorizações e atribuições de sentidos. São relevantes contribuições – não apenas pelas especificidades temáticas – as quais refletem muito bem a dimensão política da profissionalização e formação do historiador / professor de História e que contemplam temas como projetos estatais de educação e de formação de professores, produção de bibliografia especializada, organizações curriculares, práticas pedagógicas dos docentes, escolhas pessoais e (auto)reflexão sobre a formação.
Os artigos aqui reunidos discutem como a academia tem contribuído e / ou pode / deve contribuir para a formação do historiador / professor de História, com domínio das atribuições esperadas (e questionadas) para atuação docente na Educação básica ou em outras instâncias profissionais.
A reflexão proposta pelo dossiê, evidentemente cara à grande parte dos historiadores e professores de História brasileiros, proporcionou uma necessária e relevante reflexão por parte dos colaboradores – de acordo, é claro, com os objetivos dos seus artigos –, que além de demonstrarem as análises resultantes de suas pesquisas, assumiram claramente, e com ênfase, o seu lugar acadêmico, social e político.
Nesse sentido, abrimos o dossiê com o texto de Durval Muniz Albuquerque Júnior, que busca compreender o significado do “espaço escolar” e dos motivos pelos quais a História permanece nos currículos escolares. Albuquerque Jr aponta para a desconfiança e desprestígio que a História enquanto disciplina suporta atualmente, elemento que, de algum modo, faz compreender a ausência da regulamentação da profissão no país. Além disso, considera que a luta pela regulamentação é uma luta política e as resistências dos conservadores demonstram o medo das elites em relação à disciplina História, pois “a grande ilusão vivida, por todo conservador, é que ele será capaz de evitar as inevitáveis mudanças, conjurar as surpresas da vida e da história”. Mas alerta: “nenhum conservador será capaz de evitar que as mudanças ocorram no e com o tempo […], de controlar e prever, completamente, as consequências do ensino escolar para seus filhos ou descendentes”.
O trabalho de Mara Cristina de Matos Rodrigues e Benito Bisso Schmidt discute o ensino de História no ensino superior a partir de análises de suas próprias experiências enquanto professores de Teoria e Metodologia da História e Historiografia. Os autores buscam destacar a importância da mudança nas práticas pedagógicas dos docentes formadores de professores de História, especialmente no sentido de considerar “experiências do tempo não europeias ou não ‘ocidentalizadas’”. Para Rodrigues e Schmidt, “a mutação significativa que a composição social, étnica e de identidades de gênero” atualmente verificadas nas turmas e as diferentes experiências de tempo, devem ser consideradas quando se pensa os programas das disciplinas e as práticas pedagógicas adotadas. Tais programas, para os autores, devem fazer sentido nas vidas práticas dos graduandos. Assim, apresentam propostas instigantes para uma outra / nova formação dos / as profissionais de História, como por exemplo, docência compartilhada, para repensar a linguagem e as estratégias em sala de aula, e o repensar da nomenclatura de algumas disciplinas, como “Teorias e Metodologias Ocidentais da História”.
O texto de João Ernani Furtado Filho se propõe a analisar a finalidade da História em livros destinados à formação do historiador, notadamente em obras de “introdução aos estudos históricos” utilizados – no Brasil – entre os anos 1940 e 1990. O autor está interessado na historicidade dos estudos históricos, considerando suas variações filosóficas e políticas. Para tanto, suas fontes são obras de Ernst Bernheim, Wilhelm Bauer, Charles Langlois e Charles Seignobos, Marc Bloch, Louis Halphen, Joseph Hours, Henri-Irénée Marrou, Henri Steele Commager, Vavy Pacheco Borges e Ciro Flamarion Cardoso. Para Furtado Filho os “manuais de “Introdução aos Estudos Históricos” são testemunhos da historicidade da disciplina (e das táticas e tentativas de legitimação de sua cientificidade)”. Mas os argumentos utilizados pelos livros pesquisados para explicar as funções da História são plurais, diferenças estas pontuadas pelo autor, que também localiza semelhanças: “todos os manuais apresentam capítulo de ‘crítica do documento’ […] problematizando a constituição de acervos, as comemorações e mesmo visões ou produtos da prática historiadora”.
Fernando Perli analisa narrativas de graduandos em Licenciatura em História, a partir de memoriais descritivos realizados em relatórios de Estágio Supervisionado, com objetivos de compreender as representações e os usos do passado que perpassam a formação dos professores de História. Perli está preocupado em compreender “o que dizem os estudantes de História”, identificando “elementos que permitiram apropriações do conhecimento histórico” e diferentes leituras do tempo através da cultura histórica. Identifica a escola, o ambiente escolar e as aulas dos professores da Educação básica como fatores a partir dos quais “emergiram interesses pelo curso de Licenciatura em História” e apreenderam possibilidades para o “fazer e ensinar” História.
O texto que encerra o dossiê, de Claudia Cristina da Silva Fontineles e Marcelo de Sousa Neto, analisa os novos significados do lugar da docência durante a formação inicial a partir da implantação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no Piauí. Para a autora e o autor, este Programa configura- -se como “‘variação no enredo’ da história do ensino de História no Brasil”, aproximando academia e cotidiano escolar ao “acionar os saberes necessários à docência” e rompendo com a dicotomia pesquisa e ensino. Fontineles e Sousa Neto destacam que o PIBID foi fundamentalmente importante tanto para atenuar a distância entre conhecimento científico e saber escolar, sobretudo o saber construído pela disciplina História, quanto para às mudanças nos modos pelos quais as graduações passaram a encarar a docência durante a formação inicial.
Esperamos que os textos que integram este dossiê contribuam para discussões e reflexões acerca dos temas apresentados, uma vez que os artigos apontam para perspectivas sobre o que faz o professor / historiador, condição básica para a profissionalização. Cremos que o dossiê nos instiga a seguir pensando criticamente na condição e no lugar ocupado, hoje, pela História, pelo ensino de História e pelo historiador.
Mauro Dillmann
Francisco de Assis de Sousa Nascimento
Organizadores do Dossiê
DILLMANN, Mauro; NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.2., maio / agosto, 2017. Acessar publicação original [DR]
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