Ensino de História e História Pública / História Hoje / 2019

Ensino de História e História Pública: um começo de conversa

Na última década, o debate em torno da história pública tem se estabelecido pelo mundo por caminhos diversos, articulados a uma crescente produção brasileira. Ainda que o desenvolvimento da ideia de história pública tenha se iniciado em meados da década de 1970, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, somente a partir do século XXI contornos mais precisos vêm sendo estabelecidos nas discussões, o que levou grupos interessados na temática a se organizarem de diferentes formas – como exemplificam a criação da International Federation for Public History (2012) e da Rede Brasileira de História Pública (2013).

Assim como tem ocorrido em âmbito internacional, a história pública no Brasil tem encontrado nas universidades seu principal espaço catalisador, especialmente por viabilizar encontros para debate sobre as ações em diversos campos da sociedade e por estimular publicações. Mas, embora pareça paradoxal o fato de o espaço acadêmico ser o núcleo central de promoção dessa discussão, não vemos dessa maneira. Afinal, se uma das balizas da história pública é a valorização da produção do conhecimento histórico, para além da realizada pelos historiadores de ofício, fomentar esses debates é uma forma de a Universidade exercer seu papel sociocultural: promover e estimular reflexões sobre procedimentos metodológicos, conceitos e concepções teóricas relacionadas à pesquisa e à elaboração do saber; encontrar formas de colocar o conhecimento produzido em diálogo com as demandas e as possibilidades de existência na sociedade.

É nessa perspectiva que a Rede Brasileira de História Pública (RBHP), constituída por maioria de acadêmicos e com predominância de historiadores, tem encontrado nos cursos de graduação e pós-graduação excelentes parcerias para promover encontros. Por exemplo, a RBHP realiza seu simpósio internacional bianualmente desde 2012. Com muitos participantes que não pertencem às comunidades acadêmicas, as atividades desses eventos – entre palestras, oficinas, painéis e simpósios temáticos – dão a dimensão da variedade de temas e ações que têm se articulado em interface com a história pública.

Não obstante essa pluralidade, é notável o crescimento no interesse nas possibilidades de encontro entre a história pública e o ensino de História, tanto no nível superior como no nível básico. Nesse movimento de expansão dessas interfaces, a publicação de livros e periódicos1 também é um bom indicador para mapear as temáticas de interesse e as formas como a história pública tem sido compreendida no país. Em especial, constata-se um crescimento de abordagens de fronteira com a educação escolar. Ainda que a maioria dos artigos e capítulos de livro não explicite a relação entre ensino e história pública diretamente nos títulos, o teor dos trabalhos muitas vezes permite inferir esse potencial. Além disso, constata-se uma tendência de acentuação desse diálogo, sobretudo com base nos dossiês de periódicos mais recentes (Ferreira, 2018).

Nesse sentido, o Dossiê “Ensino de História e História Pública”, apresentado nesta edição da Revista História Hoje – vinculada à Associação Brasileira de História (Anpuh) – chega em momento oportuno, com a ressalva de ser, ao que nos consta, um dos primeiros – senão o primeiro – Dossiê temático brasileiro com essa ênfase. Em consonância à linha editorial da Revista, que explora questões referentes ao ensino da História, os textos que compõem este Dossiê buscam estimular reflexões sobre as possibilidades de se trabalhar a partir do diálogo entre as pesquisas acadêmicas e os modos de circularidade do saber histórico. Eis a perspectiva preponderante dos textos das autoras e dos autores que colaboraram neste volume: em favor de um viés cuja docência é mais uma mediação didática e uma forma de reconstrução coletiva de conhecimentos do que mera transposição ou adaptação do saber acadêmico à sala de aula.

Nem sempre o leitor encontrará explícita a relação entre ensino e história pública nos artigos que se seguem, o que indica, ao menos, três perspectivas: a) perdura, nos debates atuais, uma imprecisão da compreensão do que vem a ser história pública, o que parece gerar relativa insegurança em associá-la às práticas didáticas; b) anuncia-se uma concepção do ensino de história como algo que transcende o espaço escolar e considera outros modos de circulação do conhecimento histórico como fundamentais, sem uma presença imprescindível de professor / professora; c) concebe-se a formação continuada de professores como campo de amplo escopo, que não deve restringir-se aos temas e às questões da educação stricto sensu.

Podemos mirar nessas três direções com as mesmas lentes. A preocupação em conceituar a história pública no Brasil não é recente, percebe-se desde os primeiros encontros realizados e nos esforços dos primeiros textos produzidos. Porém, certamente em decorrência da intensificação dos debates na área, cada vez mais se estabelece o entendimento de que não é possível defini-la em limites rígidos.

No âmbito da RBHP – ao qual está vinculada a concepção deste Dossiê –, há o reconhecimento de que a história pública, ao menos no Brasil, não reivindica o lugar de um novo campo da História, tampouco pretende estabelecer metodologias próprias para o fazer da pesquisa histórica. Tem predominado, entre nós, a ponderação da historiadora inglesa Jill Liddington:

A história pública é menos sobre “quem” ou “o que”, e muito mais sobre “como”. Nem tanto um substantivo, principalmente um verbo. A história pública tem importância real e urgente, dada a crescente popularidade das representações do passado nos dias de hoje. Em um contexto de segmentação acadêmica e profissionalização restrita, os agentes da história pública podem fornecer uma mediação necessária, inspiradora e revigorante entre o passado e seus públicos. (Liddington, 2011, p. 50)

Nessa plataforma de observação do processo de elaboração e difusão do conhecimento histórico algumas balizas têm servido de referência para o estabelecimento de trabalhos, muitos dos quais em parceria. De início, sobressai a preocupação pela ampliação dos públicos entre os quais deve circular o conhecimento histórico, para além dos espaços onde tradicionalmente essa discussão se estabelece – como universidades e escolas.

Articulado à ampliação dos públicos, outro marco da história pública têm sido as maneiras de divulgação do conhecimento histórico, considerando, para tanto, suportes que permitam a circulação de narrativas que não se restrinjam à forma preferencial e tradicional da comunicação histórica, qual seja, a escrita (transmitida em suportes como livros, revistas científicas e relatórios de pesquisa como dissertações e teses).

Essas duas balizas têm se destacado no entendimento do que vem a ser a história pública no Brasil, ao ponto de, muitas vezes, parecerem suas únicas definidoras. É certo que ampliar as possibilidades de divulgação da história é preocupação essencial da área, porém não se pode reduzi-la a esse ponto de pauta, haja vista existirem outros igualmente relevantes.

Nos trabalhos de história pública, realizados por historiadores ou não, há uma atenção sobre o processo de elaboração do conhecimento histórico. Por exemplo, questiona-se como as fontes disponíveis para pensar um problema de História podem ser mobilizadas e articuladas para a produção de significado histórico. Nesse sentido, na plataforma da história pública – interdisciplinar por natureza – busca-se considerar a multiplicidade de áreas, com seus saberes e características específicos, em trabalhos que favoreçam reflexões a partir das narrativas apresentadas, nos mais diversos formatos e linguagens. Essa baliza é o chamamento para os diálogos, trabalhos em parcerias. Nessa direção, a perspectiva de uma autoridade compartilhada, proposta por Michael Frisch (1990) ao analisar as questões sobre a história oral, tornou-se importante inspiração. Ao compartilhar autoridade na produção, falamos de fazeres diferentes e com diferentes públicos – mas não concorrentes, senão complementares.

O reconhecimento da legitimidade de saberes históricos para além daqueles produzidos com base na pesquisa acadêmica – como, por exemplo, narrativas fílmicas da história, exposições temáticas, telenovelas e seriados, tradições orais – é outra característica. De fato, trata-se de uma baliza que se estrutura com a mobilização daquelas anteriormente comentadas, pois considera suportes e trabalhos de outras áreas como configuradores de um conhecimento histórico circulante. Mesmo que nem toda produção sobre História realizada por áreas diferentes do ofício do historiador seja efetivamente compartilhada com esse profissional, não se pode negligenciar o recorrente impacto que esse tipo de produção provoca no saber histórico, na memória social e nos usos sociais do passado. No âmbito de uma história pública responsável, a produção e a circulação desses saberes é um processo que se estabelece, geralmente, por meio de debates, levantamento de questões e confrontação com outros saberes, com especial importância o diálogo com a historiografia e novas pesquisas acadêmicas. Além de sua chegada nas escolas, dependendo da natureza da produção e suas temáticas.

A prática da história pública no Brasil tem sido marcada, também, por considerar questões socialmente vivas. Quase sempre, são temas delicados e urgentes. Colada à dimensão da História do Tempo Presente, essa abordagem se debruça sobre permanências e alterações do processo histórico, configurando-se como uma baliza de sentido social da produção histórica. Os trabalhos de história pública, nessa perspectiva, carregam potencial para impactar a esfera pública. Não é incomum que sejam produções realizadas com e por grupos sociais diretamente atingidos e favoreçam, por exemplo, mobilizações em torno de suas questões sociais, de par com objetivos de fundamentar o estabelecimento de políticas públicas e / ou reivindicar direitos e atos reparatórios.

Ao considerar esse mapeamento, esboçado de forma generalizadora e também reducionista, o leitor certamente reconhecerá essas balizas na metodologia científica da pesquisa em História. Mas já anunciamos: não consideramos a história pública um novo campo, com nova metodologia ou novo objeto a ser disputado na produção histórica. Com essas balizas, procuramos destacar algumas ênfases quanto à abordagem de um trabalho na plataforma da história pública, compreendida, no âmbito da RBHP, muito mais como um movimento. Ou seja, há intensa preocupação com quem vai acessar essa pesquisa histórica, considerando suportes, formatos e linguagens narrativas variadas, bem como com a valorização de outras áreas na elaboração da reflexão histórica e com a abordagem das questões socialmente vivas.

Como se vê, não se trata de desvalorizar o trabalho acadêmico em favor de produções realizadas por não historiadores. Isso seria somente inverter uma espécie de hierarquia relativa à autoridade do produtor do conhecimento histórico centrada na Universidade. Seria, como diria Durval Muniz Albuquerque Júnior (2011), “inverter o sinal do estereótipo”, o que não nos permitiria desconstruí-lo ou compreender a sua historicidade. De que estereótipo estamos tratando? O de uma história encastelada, produzida por e para intelectuais, com potencial desvelador de um mundo não acessível às pessoas da sociedade que não partilham dos signos dessa linguagem – aliás, uma maioria. E o que significaria “inverter o sinal”, meramente? Reconhecer qualquer tipo de representação do passado, produzida de qualquer forma e com quaisquer objetivos, como narrativa histórica legítima. Não é disso que se trata o movimento da história pública, e esperamos que, nesta altura da reflexão proposta aqui, o leitor já tenha desfeito essa possível impressão.

Sim, a história pública procura ampliar, por meio de diálogos e trocas entre fazeres distintos, as possibilidades de se produzir história para além da academia. No entanto, se, por um lado, é indesejável permanecer na chave que muitas vezes atribui à historiografia o monopólio da História, por outro, não se trata de supervalorizar narrativas realizadas por agentes produtores do conhecimento histórico que não são formados no ofício do historiador. Tampouco de abrir mão de princípios teóricos, metodológicos e éticos na produção do conhecimento histórico, aceitando que História é “versão”.

Considerar múltiplos agentes como produtores de narrativas históricas não implica reconhecer como válidas quaisquer produções – preocupação que a professora Marieta de Moraes Ferreira levantou, com pertinência, na entrevista que nos concedeu para este Dossiê. As narrativas históricas produzidas fora da Universidade e / ou por áreas distintas da História devem ser consideradas com base em alguns princípios, como suas fronteiras com outros saberes de referência, a pertinência das fontes utilizadas e um compromisso ético ao apresentar os resultados. Algo, portanto, similar ao já estabelecido para a pesquisa realizada dentro do rigor acadêmico. A preocupação com a produção e o significado do conhecimento histórico – seja realizado pela pesquisa acadêmica, seja produzido por outros agentes – é primordial para se elaborar narrativas e sentidos históricos legítimos.

Não há dúvidas de que a oxigenação da história pública no século XXI deve-se, em parte, à expansão da rede mundial de computadores, suas redes sociais e a ampliação que promoveram na circulação de informações. Mas, embora repletos de possibilidades para a produção do conhecimento, os meios digitais são também espaços escorregadios, pois o franqueamento na produção de conteúdos e sua ampla divulgação podem favorecer – como tem acontecido em escala internacional – uma crescente onda chamada de “revisão da História” com fins político-ideológicos. O resultado disso é a criação de procedimentos de investigação bastante questionáveis, que produzem releituras do passado por vezes opostas a pesquisas já consolidadas na historiografia, sem embasamento documental e / ou conceitual e com vistas a atender objetivos políticos do presente. Não se trata, nesses casos, da revisão necessária do conhecimento, do movimento dinâmico de construção do saber histórico, referendado por princípios próprios da epistemologia da História. Trata-se da produção de versões opinativas sobre fatos e eventos, com base em impressões de indivíduos ou grupos que pretendem fazer valer seus interesses nas disputas políticas e nas guerras de memória em curso.

Esse cenário, muitas vezes, tem tensionado as aulas de História de maneira pouco construtiva, pois discussões ancoradas nesse tipo de produção frágil e simplesmente opinativa permitem questionamentos sem embasamento historiográfico – por exemplo, associar o nazismo à esquerda política, relativizar a existência da escravidão no Brasil ou, até mesmo, condenar qualquer discussão sobre direitos humanos. Esses exemplos, correspondentes às fake news para a matéria da História, são riscos preocupantes numa seara que visa ampliar os públicos produtores e consumidores do conhecimento histórico. Exatamente por isso, parte essencial do movimento da história pública tem sido refletir sobre os métodos, as fontes e as interpretações históricas, interrogando sua legitimidade.

Reside nesse ponto boa parte da importância atribuída aos professores e professoras, na sala de aula, nos debates sobre história pública. Em tempos nos quais a internet alterou substancialmente a forma de acesso à informação, docentes precisam assumir a responsabilidade de contribuir para o aprendizado dos modos de usar a internet para fins educativos, levando os estudantes a compreenderem que as volumosas informações, disponíveis a um clique do computador ou do celular, não podem ser confundidas com conhecimento. Como observa Jorge Larrosa Bondiá (2002), é preciso almejar uma pedagogia da experiência para ressignificar o ato e a vontade de estudar e aprender.

A aula de História, portanto, pode ser considerada um momento muito favorável para se pensar a história pública e produzir saberes nessa interface. Isso porque reconhecemos os variados saberes e os modos como eles circulam quando um tema histórico é estudado. Na sala de aula, aquela recorrente pergunta de sondagem antes de iniciar um conteúdo – “quem já ouviu falar sobre esse assunto?” – traz geralmente uma variedade de pistas históricas, e a maioria  das suas referências não é historiográfica. Nem por isso as narrativas históricas do audiovisual ou dos quadrinhos, por exemplo, são menos relevantes para se produzir reflexões sobre a História no ensino básico – ainda que seja para repensar os sentidos ali atribuídos aos fatos, partindo de outras abordagens.

Na aula de História, saberes históricos diversos entram em contato: o saber acadêmico, produtor das pesquisas e divulgador científico por meio da produção historiográfica; o saber profissional dos docentes, construído tanto nas universidades quanto nas dinâmicas e contingências da sala de aula; os saberes prévios dos discentes, constituídos em suas vivências socioculturais, econômicas e escolares; e o saber histórico circulante, expresso numa pluralidade de narrativas e suportes, que podem contar ou não com a produção compartilhada com a História, podem ou não estar ancorados em pesquisas.

Os diálogos ali promovidos se estabelecem com finalidades pedagógicas e o / a professor / a, enquanto mediador didático, estimula a construção das reflexões. Um trabalho que envolve e gera um conhecimento histórico. Embora seja um conhecimento distinto daquele oriundo da pesquisa acadêmica, tem imenso valor, pois consiste no entendimento da História pelo estudante em nível básico de ensino – para a imensa maioria dos sujeitos, a principal forma de conhecimento da história e de reflexão sobre a memória social. A riqueza e a complexidade dessa operação, que exigem articulação teórica e prática, são pistas para entendermos por quê, em eventos e debates promovidos pela RBHP, tem sido comum que professores reconheçam em alguns dos seus trabalhos características do que tem sido delineado como história pública. Tal reconhecimento é real e inscreve-se, geralmente, no âmbito da mediação.

As reflexões propostas neste Dossiê permitem uma abordagem consideravelmente ampla sobre a história pública. Alguns autores debruçam-se especificamente sobre suas interfaces com o ensino de História, tanto em sua perspectiva escolar quanto na não escolar. Outros priorizam discussões que pensam o impacto dessas discussões sobre o conhecimento histórico e seus usos sociais.

Na entrevista que nos concedeu, a historiadora Marieta de Moraes Ferreira – cuja trajetória profissional está intimamente relacionada a debates relevantes para a historiografia brasileira nas últimas três décadas, especialmente à História do Tempo Presente, à história política e à história oral – chamou atenção para tensões e riscos da história pública, anteriormente mencionados. Além disso, tratou de experiências importantes, que podemos pensar como afins às ações do movimento brasileiro de história pública, especialmente no que tange à formação continuada de professores, com a iniciativa do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória).

No artigo “História pública, ensino de história e educação antirracista”, as historiadoras Martha Abreu, Hebe Mattos e Keila Grinberg narram trabalhos com a memória negra no estado do Rio de Janeiro, em projetos que contam com a intensa participação da comunidade – produções que podem ser reconhecidas como de “autoridade compartilhada”. Além disso, por meio dessas experiências, o texto nos convida a pensar em práticas didáticas sob uma perspectiva antirracista, um imperativo na sociedade brasileira deste século XXI.

As temáticas da escravidão e do racismo são também abordadas no artigo de João Escosteguy, “Batalhas públicas pela história nas redes sociais: articulações para uma educação histórica em direitos humanos”. Nesse caso, a análise recai sobre a abordagem dos temas feitas em páginas autodeclaradas conservadoras no Facebook, investigando tanto seu caráter presentista quanto o revisionista. O autor discute os limites impostos por essas interpretações a uma educação histórica pautada pelos direitos humanos e por projetos emancipatórios de sociedade.

O revisionismo histórico de caráter político ideológico é também analisado em artigo sob o provocativo título “Uma história ensinada para Homer Simpson: negacionismos e os usos abusivos do passado em tempos de pós- -verdade”. Nesse texto, Sônia Meneses discute os desafios colocados para a produção de conhecimento histórico e a atuação de professores na educação básica, a partir das novidades que se apresentam para as relações entre história, mídia e ensino contemporaneamente. O debate coloca em perspectiva o consumo das narrativas históricas, bem como os usos e abusos do passado nos processos de difusão histórica em tempos de “pós-verdade”.

O compromisso do ensino de História com a sociedade democrática, sob os riscos do revisionismo e do negacionismo, é retomado, também, no artigo de Marta Rovai, “Ensino de história e a história pública: os testemunhos da Comissão Nacional da Verdade em sala de aula”. Concebendo a história pública como o comprometimento com a produção, divulgação e compartilhamento de passados vivos, a autora analisa as possibilidades dos usos de testemunhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), amplamente divulgados em redes sociais, como instrumentos didáticos, nas aulas de História, para a compreensão dos jogos de memória e poder contemporâneos.

Três artigos investigam as fronteiras entre os processos de formação profissional e a história pública, em diferentes perspectivas. Em “Cultura de história, história pública e ensino de história: investigação e formação de professores de história”, Marcelo Abreu e Nara Rúbia Cunha analisam como estudantes de História se relacionam com o que definem como uma cultura de história, a partir de narrativas curtas por eles produzidas em processos formativos durante a graduação. Baseando-se nas vozes dos estudantes, os autores defendem uma metodologia de formação investigativa, visando promover questionamentos sobre as relações (sensíveis e racionais) que os professores em formação desenvolvem com a história.

Em “Servir bem para servir sempre? Técnica, mercado e o ensino de história pública”, Ricardo Santhiago também se ocupa de reflexões sobre a formação de profissionais no ensino superior, em direção bastante diferente. Tomando como fontes programas de pós-graduação estadunidenses da década de 1970, especializados em história pública, o autor reflete sobre aproximações e distanciamentos entre concepções e práticas de história pública nos Estados Unidos de algumas décadas atrás e no Brasil contemporâneo. Para além da formação profissional, suas reflexões nos possibilitam a compreensão da historicidade mesma da história pública.

Partindo da constituição do acervo “Trajetórias Docentes”, composto por entrevistas públicas e memoriais de professores em contextos de formação, Everardo Paiva Andrade, Juniele Rabêlo de Almeida e Mariana Mizael Pinheiro da Silva se dedicam à análise dos processos de formação continuada de professores, compreendidos como sujeitos de seus próprios saberes e práticas, produtores de sua própria história. “Artes de ensinar, ofício de viver: das narrativas (auto)biográficas a uma história pública dos professores” é um exercício de interpretação de trajetórias e práticas docentes, bem como de proposição: que a aprendizagem narrativa seja um catalisador para a produção de uma história pública de professores.

Ricardo Oriá propõe um olhar sobre as relações entre a história pública e a memória nacional de um ângulo bastante diferente dos demais artigos: os resultados dos dispositivos de memória previstos no ordenamento jurídico republicano. Em “História pública, comemorações e ensino de história: o centenário da República no Brasil (1889-1992)”, discute os usos políticos produzidos pelas atividades da Comissão Nacional do Centenário da República, que implicaram a consolidação de um imaginário povoado por heróis da pátria.

Fernando Nicolazzi estimula uma reflexão sobre “Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história e história pública”. Questionando a centralidade da leitura como forma de recepção da História, propõe o reposicionamento e a ampliação do papel de historiadores e historiadoras no espaço público, com base no exame e na compreensão de diferentes formas de recepção da História em diferentes regimes historiográficos.

O conjunto dos artigos que ora apresentamos leva-nos a constatar que o ensino de história – e a educação histórica não escolar – ganham muito com a plataforma da história pública. Não apenas pelas possibilidades de linguagens e suportes variados, algo que pode favorecer o interesse pelas temáticas históricas, mas, especialmente, por abrir portas e janelas para giros na abordagem das interpretações da História. Desejamos que aproveitem a leitura e que ela inspire novas reflexões e práticas em seus caminhos.

Notas

1. Destacamos: ALMEIDA; ROVAI (org.), 2011; ALMEIDA; MAUAD; SANTHIAGO (org.), 2016; ALMEIDA; MENESES (org.), 2016; BORGES; MAUAD; SANTHIAGO (org.), 2018, e os dossiês sobre História Pública lançados nos periódicos: ESTUDOS HISTÓRICOS (2014), RESGATE (2014), TEMPO E ARGUMENTO (2016), TRANSVERSOS (2016), OBSERVATÓRIO (2017) E NUPEM (2019).

Referências

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ALMEIDA, Juniele R. de; MENESES, Sônia (org.). História Pública em debate: patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

ALMEIDA, Juniele R. de; ROVAI, Marta G. de O. (org.). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

ALMEIDA, Juniele R. de; MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo (org.). História Pública no Brasil: itinerários e sentidos. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

BONDIÁ, Jorge L. Ensaio sobre experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n.19, jan. / abr. 2002.

BORGES, Viviane T.; MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo (org.). Que história pública queremos? What Public History do we Want? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

ESTUDOS HISTÓRICOS. Rio de Janeiro: Escola de Ciências Sociais (CPDOC), Fundação Getulio Vargas (FGV), v. 27, n. 54, 2014.

FERREIRA, Rodrigo de A. Quais as relações entre a história pública e o ensino de história? In: BORGES, Viviane T.; MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo (org.). Que história pública queremos? What Public History do we Want? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

FRISCH, Michael. A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and Public History. New York: Sunny Press, 1990.

LIDDINGTON, Jill. O que é História Pública: os públicos e seus passados. In: ALMEIDA, Juniele R. de; ROVAI, Marta G. de O. (org.). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

NUPEM. Campo Mourão: Universidade Estadual do Paraná (Unespar) / Campus de Campo Mourão, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento (PPGSeD), v. 11, n. 23, 2019. Dossiê: História Pública.

OBSERVATÓRIO. Palmas: Universidade Federal do Tocantins (UFT), Núcleo de Pesquisa e Extensão Observatório de Pesquisas Aplicadas ao Jornalismo e ao Ensino (Opaje-UFT), v. 3, n. 2, 2017. Dossiê: Por uma História Pública: comunicação e ensino.

RESGATE: Revista Interdisciplinar de Cultura. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Centro de Memória, v. 22, n. 2, 2014. Dossiê: História Pública.

TEMPO E ARGUMENTO: Revista de História do Tempo Presente. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Centro de Ciências Sociais e da Educação (Faed), v. 8, n. 19, 2016. Dossiê: História Pública.

TRANSVERSOS: Revista de História. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, v. 7, n. 7, 2016. Dossiê: História Pública: Escritas Contemporâneas de História.

Miriam Hermeto – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Integrante da Rede Brasileira de História Pública (RBHP). E-mail: miriamhermeto@gmail.com.

Rodrigo de Almeida Ferreira – Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. Integrante da Rede Brasileira de História Pública (RBHP). E-mail: rodrigoalmeidaferreira@id.uff.br.

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