O livro Ensinar História, da autoria de Maria Auxiliadora Schmidt (UFPR) e Marlene Cainelli (UEL), data, numa primeira versão, de 2004. A versão ora resenhada é de 2009. Em ambos os textos a apresentação diz “Esta obra é destinada a professores e alunos dos cursos superiores de magistério, alunos e professores das licenciaturas em história, professores do ensino fundamental e médio.” Pensamos que o livro se adequa prioritariamente ao último setor mencionado, também por ter um formato de manual (considerando que a obra procura sintetizar os principais avanços realizados nos últimos anos em várias temáticas como o ensino e a aprendizagem de história, de uma forma bastante esquemática, a melhor definição para caracterizá-la é a de manual).
Tal assertiva ganha mais força com o fato de a editora Scipione ter rebatizado a série à qual a obra pertence, Pensamento e Ação no Magistério, para Pensamento e Ação na Sala de Aula. Na sua versão de 2009, o livro também integra o PNBE (Programa Nacional Biblioteca Escola) e como tal faz parte das remessas de material que o Ministério da Educação envia para escolas de todo país. Isso confere à obra grande facilidade no acesso por parte dos profissionais da Educação Básica, outro fator que torna urgente a reflexão sobre alguns aspectos do manual.
Em 2004, o manual era composto por dez capítulos, em 2009 ganha mais dois, alguns capítulos anteriores são atualizados e é realizado um considerável incremento bibliográfico. Mencionamos acima que a obra é por demais esquemática. Pecha que dificilmente conseguirá se desvencilhar, considerando a quantidade de temas abordados e o fato de cada capítulo seguir um esquema rígido de cinco itens (teorizando sobre o tema, debatendo o tema, trabalhando atividades, ampliando o debate, comentando bibliografias).
Se, por um lado, tal formato visa tornar o livro atrativo para professores de Ensino Fundamental e Médio, por outro, torna o mesmo repelente para o Ensino Superior. Não que manuais não sejam eventualmente usados neste setor, ocorre que para tal seara o mercado editorial dispõe de obras mais adequadas para tal modalidade de ensino. Pensamos, a título de exemplo, em Bittencourt (2009) e Fonseca (2011). Vejamos o título dos capítulos do manual em questão:
Evidentemente para um manual de ensino de história ser destinado ao uso de professores da Educação Básica não é demérito. Nesse sentido, o mercado editorial age da mesma forma que com os livros didáticos. Trata-se de ofertar um produto para uma demanda existente. Para os profissionais do Usos e Interpretações do Ensino Fundamental e Médio que se sentem impelidos e incentivados a se atualizar, um manual de mais ou menos 200 páginas, com capítulos que podem variar de 15 a 20, tratando de temas tão amplos é uma opção razoável. Considerando ainda a pesada carga de trabalho desses profissionais, seus salários, e o preço dos livros no Brasil, materiais mais sucintos, como a obra ora resenhada, disponibilizados gratuitamente na biblioteca de sua escola, em muitos casos, podem ser a única possibilidade de alguma atualização. Esse último fator também reforça a importância de alguma reflexão crítica sobre o livro em questão.
Sobre as seções fixas contidas em cada capítulo, os itens teorizando sobre o tema, e debatendo o tema trazem uma explanação inicial sobre a temática de cada capítulo. Em ampliando o debate, as autoras trazem excertos das obras de autores de referência sobre cada tema abordado Já o item “trabalhando atividades” contribui com propostas concretas para utilização em sala de aula. Evidente que tal recurso também confere à obra um matiz de livro de receitas, entretanto para quem sentir a necessidade de se aprofundar mais sobre a temática de cada capítulo o item “comentando bibliografias” é bastante útil na medida em que descreve sucintamente as principais obras de referência sobre cada temática abordada.
Para além dos aspectos gerais, mencionados acima, algumas questões particulares merecem observação. No capítulo 4, incluso na segunda versão da obra, intitulado A aprendizagem histórica, no item teorizando sobre o tema, o trecho abaixo merece, ser citado e discutido:
Uma das principais finalidades da aprendizagem histórica é a formação da consciência histórica. Esse pressuposto põe em relevo o fato de que o ensino de história deve ter por objetivo a formação de uma consciência que supere formas tradicionais e exemplares da consciência histórica, responsáveis pela consolidação de narrativas baseadas em organizações lineares do tempo, bem como as visões de que a história é a mestra da vida. Ao mesmo tempo busca-se também evitar a formação de consciências críticas pautadas em narrativas que rompem com qualquer possibilidade de rever o passado. O objetivo é uma consciência crítico genética, cuja relação presente-passado seja fundamentada em narrativas mais complexas, que se prestem a uma orientação temporal para a vida presente, baseadas em alguns princípios, como liberdade, democracia e direitos humanos, fundamentos de uma formação para a cidadania (SCHIMIDT; CAINELLI, 2009, p. 69).
A noção de consciência histórica que tenta ser trazida no texto é a de Jörn Rusen e a formulação inicial “Uma das principais finalidades da aprendizagem histórica é a formação da consciência histórica” possibilita as seguintes questões: é possível conscientizar historicamente as pessoas? A aprendizagem histórica é de fato capaz de fazer com que as pessoas superem as formas tradicionais, exemplares e críticas da consciência histórica atingindo por final a consciência histórica genética ou uma consciência histórica crítico-genética? Algumas reflexões e pesquisas realizadas no âmbito do Grupo de Estudos em Didática da História (GEDHI) sediado na UEPG podem jogar alguma luz sobre as questões levantadas acima.
No conceito de consciência histórica de Rüsen existem os tipos ou formas de geração de sentido, usadas por Schimidt e Cainelli, que são aqui explicadas por Pacievitch: a) Tradicional. Nessa, a tradição é o modo de orientação predominante. A identidade e as normas já estão pré-dadas e o tempo é eternizado; b) Exemplar. Onde o presente é normatizado por exemplos do passado; c) Crítica. A tônica é a negação do passado e a história rompe com as normas atuais; d) Genética. Focaliza-se na passagem do tempo, nessa o estranho é apropriado e se transforma em conhecido. A autora também frisa que essas formas de geração de sentido não se devem entender como estanques ou isoladas. Um indivíduo pode utilizar a forma exemplar num setor de sua vida e a forma genética em outro (PACIEVITCH, 2007, p. 50).
Uma definição do conceito de consciência histórica, formulada por Luís Fernando Cerri, pode vir a calhar nesse momento:
A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não – ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens. A consciência histórica enraizase, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática. Essa historicidade consiste no fato de que os homens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo, têm metas que vão além do que é o caso (CERRI, 2007, p. 100).
O conceito de consciência histórica proposto por Cerri considera esta como algo que não pode ser dado, é intrínseca ao ser humano. É uma leitura mais fiel do conceito de Rüsen e melhor opção à noção etapista trazida por Shimidt e Cainelli. Ora, se os alunos têm de ser conscientizados a abrir mão de formas de geração de sentido tradicionais e exemplares, quer dizer que num dado aspecto da vida não poderiam pensar e agir com uma forma de geração de sentido tradicional e em outro aspecto com uma forma de tradição de sentido genética. Com um discurso mais rebuscado, podemos dizer, o texto de Shimidt e Cainelli propõe que o papel da aprendizagem histórica é trazer a luz da história para o mundo de trevas dos alunos.
Finalizando, “Ensinar História” traz um amplo painel do ensino e da aprendizagem de história e dos avanços obtidos com as pesquisas dos últimos anos. Evidente que não pretendemos esgotar a reflexão de obra tão difundida nas escolas públicas brasileiras. Justamente por tal difusão, esperamos que outros professores de história, no fazer de seu ofício e em caso de utilização da presente obra, também levantem questões que mereçam ser debatidas. Isso posto e considerando que uma das dimensões da aprendizagem histórica, utilizadas pelas autoras, é a interpretação:
Trata-se de uma dimensão […] que contribui para o desenvolvimento da capacidade de dar significados aos fatos históricos e integrar diferentes tipos de conhecimentos e experiências do passado humano em totalidades compreensíveis. […] também pode tornar possível a superação de dogmatismos, tais como ‘a verdade histórica do manual didático’, ‘a verdade histórica do professor’ ou ‘a verdade histórica do aluno’, em direção a uma perspectiva do conhecimento histórico que pode ser mudada por meio da argumentação (SCHIMIDT; CAINELLI, 2009, p.71).
Partindo deste princípio, livros, professores e alunos, não sendo portadores de verdades dadas como absolutas, nada mais justo considerar que o presente manual para professores também não é portador de verdades do mesmo gênero.
Referências
BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.
CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da Didática da História. Revista de História Regional. Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 93– 112, 2001.
FONSECA, Selva G. Didática e Prática de Ensino de História. 12ª ed. Campinas: Papirus, 2011.
PACIEVITCH, Caroline. Consciência Histórica e Identidade de Professores de História. Ponta Grossa, 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Resenhista
José Alexandre Silva – Mestrando em Educação pela UEPG, Ponta Grossa/PR, Brasil. E-mail: sjosealexandre@ymail.com
Referências desta Resenha
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2009. Resenha de: SILVA, José Alexandre. Usos e Interpretações do Conceito de Consciência Histórica. Diálogos. Maringá, v.16, supl. Espec., p. 331-336, dez.2012. Acessar publicação original [DR]
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