“E não te esqueças de que a hora de partir chegou.
O vento levará para longe os teus olhos”.
Alexandre, o repórter (O Passo Suspenso da Cegonha).
Seis anos atrás, um grupo de professores de História Antiga e Medieval das regiões Norte e Nordeste do Brasil reunimo-nos e redigimos uma carta contra a ameaça de retirada dos conteúdos de História Antiga e Medieval do ensino escolar brasileiro, texto esse retomado na íntegra no epílogo da coletânea Antigas Leituras: Ensino de História (Recife: Edupe, 2020, organizada por mim mais os companheiros Guilherme Moerbeck e Renan Birro). Naquela carta, enfatizávamos a importância da presença curricular dos assuntos dessas temporalidades e denunciávamos a miopia de determinados segmentos que viam nesses estudos verdadeiros cavalos de Troia da história eurocentrada e colonizada que deveria ser extirpada (ou quando menos reduzida ao mínimo) das salas de aula em prol de outras narrativas, especialmente afro-ameríndias e contemporâneas. Mas por mais que discordemos dessa miopia, ela não surgiu do acaso.
Ao realizar-se a arqueologia dos saberes históricos escolares, a presença da Antiguidade não era acidental, ou natural como um cogumelo nascido depois de uma noite chuvosa, mas sim atendia a uma demanda:
Desde o século XIX, a “ocidentalização” de nossa História e de nossa memória foi um projeto consciente do Estado brasileiro e de nossas elites. A História Antiga ocupa, assim, uma parte importante em nossa identidade como pessoas e como nação. Pensar sobre História Antiga é uma maneira de pensarmos e repensarmos nosso lugar em mundo em rápida transformação (GUARINELLO, 2013, p. 7,8).
Foi, então, no século XIX que se estabeleceu a tradição do aprendizado da História Antiga e da História Medieval no Brasil, “não apenas dando sentido e unidade à História da nação brasileira, mas também inserindo-a no contexto bem mais amplo da História mundial” (GUARINELLO, 2013, p. 10). Sem discutir no momento as propostas mesmas desse currículo, o fato é que os dois campos de estudo se estabeleceram firmemente dentro do acervo de conhecimentos que deveriam ser aprendidos nas escolas brasileiras –especialmente para as elites, ser educado significou conhecer certos fatos e dados sobre os mundos Antigo e Medieval e considerá-los como seus.
Já tive a oportunidade de buscar entender tal estado de coisas a partir das metáforas visuais engendradas na obra do diretor grego Theo Angelopoulos, O passo suspenso da cegonha1, e agora elaboro um pouco mais meu pensamento. Neste filme, nas palavras do crítico Donato Totaro2,
(…) temos um tratamento poético de uma das imagens sociais e políticas mais importantes do século XX: a fronteira. (…) A “fronteira” aqui é aquela que separa a Albânia da Grécia, embora Angelopoulos também a trate no sentido figurado (a fronteira que separa o presente do passado, separa aspectos da própria identidade, como no caso da personagem de Marcello Mastroianni).
A cegonha dorme com uma perna encolhida e se sustenta na outra, e essa alegoria evoca imagens diversas. Primeira, a da potência: do que é capaz o animal? Permanecerá sempre equilibrado num único membro? Trocará de apoio? E se acordar, andará ou voará? A segunda é de precariedade: uma única canela sustenta-lhe o corpo inteiro, justo no momento mais frágil, o do sono. Ambas serão úteis para que entendamos a atual relação entre os estudos de Antiga e Medieval e o ensino de história no Brasil.
O currículo de história permaneceu relativamente intocado até pelo menos os anos 1970 (GUARINELLO, 2013, p. 10), quando então pontificava nas escolas uma “História “oficial”, que tendia a ser a dos grandes personagens, da formação do Estado nacional e das elites –não obstante esforços notáveis de mudança. Nessa mais que centenária herança repousava a cegonha do ensino de História Antiga e História Medieval, solidamente amparada em seu único, magro e tradicional cambito, sem se aperceber do mundo que se transformava a seu redor.
Vamos então à metáfora da fronteira, proposta por Angelopoulos: dos anos 1970 em diante vivemos uma sequência dramática de transformações. À redemocratização (imperfeita, bem o sabemos hoje), seguiram-se décadas de desarranjo econômico, até o Plano Real nos anos 1990 e os programas de inclusão social dos anos 2000. Culturalmente, talvez o elemento mais importante tenha sido a ascensão de grupos sociais até então excluídos: mulheres e negros, sem dúvida, mas também indígenas e os LGBTQIA+, estes últimos forçando e conquistando um espaço de expressão jamais visto, ou sequer esperado, antes. Os segmentos sociais demandaram, e demandam, visibilidade em todos os setores da sociedade, e o ensino de história não é exceção –e tivesse eu de escolher um marco para essa história, seriam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, de 2004, que embora tratassem especificamente da história e cultura afro-brasileira e africana, estabeleceram as bases para todo um repensar completo do ensino de história:
trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática. É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e européia. (MINISTÉRIO da Educação, 2004, p. 18).
A abrangência e a generosidade desse documento precisam ser reafirmadas. As linhas mestras nele traçadas permanecem como um ideal e um desafio para a construção de um ensino de história verdadeiramente inclusivo e plural.
Acredito não ser ofensivo afirmar que os professores de História Antiga e História Medieval demoramos a responder a esse desafio. Nossos campos de estudo são frutos de um desenho europeu branco imperialista, que punha a história europeia como bússola e ápice de toda a experiência humana. Nesse sentido, podiam até ter existido civilizações3 importantes fora da Europa –no Egito, na Mesopotâmia, ou mesmo na China –mas sua importância se limitava à produção de um legado que deveria, aí sim, ser plenamente desenvolvido por europeus, como se fora uma prova de revezamento, em que um atleta passa para o outro o bastão.
Enquanto a sociedade exigia, mais e mais, uma história inclusiva, em que mulheres, negros, indígenas LGBTQIA+ e populações neurodiversas, dentre outros, estivessem representados, não soubemos repensar nossos objetos e integrar esse movimento. Como o passo suspenso da cegonha, mantivemo-nos equilibrados em nosso membro ímpar, a tradição:“não se pode estudar história sem o mundo antigo ou o medievo. Sempre foi assim e sempre terá de ser assim”.
Será mesmo? Talvez devêssemos inverter o sentido da pergunta: é possível ensinar história conforme os moldes tradicionais em pleno século XXI? Ou continuar a pensar nossa disciplina segundo os padrões esboçados, grosso modo, na virada do século XVIII para o XIX? Quem melhor que Hegel para representar esse momento histórico?
Hegel primeiramente descarta os africanos como um povo “não histórico”, declaração essa fundamentada nos relatos de missionários a respeito do canibalismo dos africanos e de sua escravização mútua, de onde conclui que todos os africanos apresentam um “perfeito desprezo pela humanidade”, e são, em essência, irremissíveis. (MOLAND, 2021, p. 169-70).
Não surpreende, portanto, que nossos saberes tenham sido considerados dispensáveis. Não obstante, os próprios textos que compõem este presente número da Brathair demonstram que o passo suspenso da cegonha não é só estabilidade: é igualmente potência. Os autores mostram que, em todos os cantos do país, historiadores da Antiguidade e do Medievo estão, sim, refletindo sobre o ensino de seus campos de estudo, observando-os à luz da realidade brasileira, articulando-os às necessidades urgentes do ensino de história. E não, a pura e simples exclusão não seria uma resposta.
Um outro elemento fundamental: nosso tempo vivido demonstrou que os campos da Antiguidade e do Medievo falam à contemporaneidade. A onda revisionista que ora engolfa o Brasil lançou suas águas sobre as temporalidades mais recuadas: grupos filofascistas vão à internet fantasiados de cavaleiros medievais e gritam Deus vult!, o brado das Cruzadas, e situam nesses movimentos a origem mítica de seus ideais4. Novelas bíblicas como Os Dez Mandamentos e séries como Os Vikings (dentre tantos outros produtos audiovisuais) impactam a compreensão do passado e são campos interessantíssimos de pesquisa e de prática pedagógica.
Essa necessidade de repensar os conteúdos não é, sequer, novidade: já em 1997 a classicista Maria Wyke em seu livro Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History afirmava que um dos papeis dos estudos da recepção da Antiguidade era, precisamente, expor interesses ideológicos (elitismos, misoginias, etnocentrismos, imperialismos) tanto na própria Antiguidade quanto em suas apropriações subsequentes. Ainda assim, é inegável que a crise dos estudos clássicos se intensificou imensamente na última década, e não somente no Brasil: em texto recente, os autores espanhóis Lucía P. Romero Mariscal e F. Javier Campos Daroca, ao analisarem a crise em seu próprio país, afirmaram que o locus privilegiado que Grécia e Roma ocuparam historicamente, de “origem da civilização europeia”, significa hoje um ônus, na medida em que “esse privilégio lhes permitiu usurpar a atenção devida a outras culturas ou momentos da História”5 –um quadro não diverso do que vivemos nos últimos anos aqui no Brasil. Numa era pós-clássica (e pós-colonial, descolonial ou decolonial) por que os clássicos gregos e romanos seriam intocáveis? Numa sociedade majoritariamente negra e mestiça como a brasileira, com uma história indígena tão rica quanto subestimada, por qual razão deveriam ser mantidos? A resposta a esse desafio é apresentada pelos próprios autores espanhóis:
A estratégia compensatória de tantos quantos aceitem o desafio de descer Grécia e Roma do pedestal onde estão é, em geral, transformar a necessidade em virtude e fazer da antiguidade um poderoso operador da alteridade. Por intermédio de seu estudo e do desenrolar dos processos históricos que levaram à sua canonização como referentes inapeláveis da alta cultura tornam-se aparentes tanto sua condição histórica, ou seja, sua relatividade em relação a outras épocas ou culturas, como a transformação contínua a que o processo de recepção submeteu as obras clássicas. Da mesma forma, o legado da Antiguidade é criticamente avaliado, denunciando a instrumentalização dos clássicos ao serviço de determinadas ideologias, submetendo-os a um tipo de “descolonização” de que se beneficiam não apenas quem a sofreu bem como os próprios clássicos, libertados dos preconceitos classicistas que não somente lhes prestam um mau serviço como impedem o acesso a um saber que lhes faça justiça. (2018, p. 87).
Acredito que o caminho seja precisamente esse: os autores se referem especificamente ao legado clássico de Grécia e Roma, mas esse exercício pode se estender a todo estudo da Antiguidade e do Medievo. Não se trata de descaracterizar essas temporalidades, mas sim de reconhecer que a maneira como vêm sendo ensinadas traz embutida em si valores e conceitos que já não mais cabem (ou não devem mais caber) numa proposta de ensino de história do século XXI, que abre a disciplina “à construção de currículos ‘culturalmente inclusivos’, que incorporem tradições culturais e sociais de grupos específicos, características econômicas e culturais das realidades locais e regionais” (SILVA; GUIMARÃES, 2012, p. 47). Não poucas das experiências discutidas nessa edição da Brathair se aventuram por essa picada aberta no meio da selva.
A propósito, entre o final do ano passado e o começo deste, um grande debate público foi estabelecido nos Estados Unidos. A fagulha inicial se deu quando uma colunista do The Wall Street Journal, Meghan Cox Gurdon, criticou, em 27 de dezembro de 2020, a escolha de uma escola de Massachussetts em retirar a Odisseia do currículo escolar:
Um esforço contínuo está em andamento para negar às crianças o acesso à literatura. Sob o slogan #DisruptTexts, ideólogos da teoria crítica, professores e agitadores do Twitter estão expurgando e fazendo propaganda contra textos clássicos – de Homero a F. Scott Fitzgerald e o Dr. Seuss. Seu ethos sustenta que crianças não deveriam ser obrigadas a ler histórias escritas em outra coisa senão o vernáculo dos dias atuais – especialmente aqueles ‘em que o racismo, sexismo, capacitismo, anti-semitismo e outras formas de ódio são a norma’”6.
Claro, em tempos como os nossos, em que o atrito via redes sociais é o novo (e desgraçado) normal, não tardou para que tanto a opção da escola quanto as palavras da articulista ganhassem adeptos e detratores, e mais uma vez a Antiguidade se viu capturada pelo debate mais atual –algo que, afirmo, não deveria espantar ninguém, pois o currículo “não é um mero conjunto neutro de conhecimentos escolares (…) é sempre parte de uma tradição seletiva, um perfeito exemplo de invenção da tradição” (SILVA; GUIMARÃES, 2012, p. 44). E se mais não for, comprova claramente que o estudo dos clássicos não está morto, pois nada que esteja inerme é capaz de provocar tamanha celeuma.
A controvérsia se estendeu por meses, e embora esteja longe de estar encerrada ao menos perdeu um pouco do calor. Mas a pergunta permanece: é preciso retirar os estudos clássicos (e medievais) das salas de aula? Uma posição que parece muito interessante veio de Shadi Bartsch, Professora de Clássicos da Universidade de Chicago, que em um artigo oportunamente intitulado Não entreguem a história e a literatura antiga para a Alt-Right, escreveu7:
Alguns professores argumentam que os textos lidos pelas elites ou usados a serviço da opressão estão, por isso, moralmente maculados. Um estudioso tão sério como Dan-el Padilla Peralta (Professor de Clássicos em Princeton), sugeriu que a história dessas obras clássicas as condenou à ignomínia como instrumento para a invenção da branquitude. Mas penso que, se for esse o caminho a tomarmos, teremos problemas. A Alt-Right não tem escrúpulos de se apropriar da Antiguidade para seus próprios fins – como pôde ser visto nas imagens da invasão do Capitólio em 6 de janeiro, em que alguns manifestantes usavam capacetes gregos e carregavam bandeiras com a frase “molon labe” (“venha e tome nossas armas”). Essa referência distorcida à posição espartana contra os persas nas Termópilas em 480 a.C. reflete a crença supremacista de que os espartanos salvaram “a raça branca” dos bárbaros. Não quero lavar as mãos e entregar história e literatura antigas a este grupo. Claro, historicamente, muitos desses textos têm sido usados para justificar e apoiar ideologias e ações que condenamos hoje, desde a defesa da escravidão até a sugestão de que as mulheres são criaturas inferiores aos homens. Assim sendo, não seria melhor usarmos textos sem legados contaminados, sem nos arriscarmos a parecer tolerantes com o conteúdo das histórias, ou a história de como os textos foram usados? Essa abordagem ignora um fato básico: os tempos mudam e também a maneira como lemos.(…) Mas existe um meio-termo entre evitar totalmente essas obras e endossar um conjunto de valores racistas e sexistas: a interpretação. (…) O significado “correto” importa? Não, porque a literatura não opera sozinha. Nós criamos significado com um texto, não simplesmente o absorvemos ou de alguma forma ficamos manchados por ele.
Ao final, Bartsch articula um argumento que nos é bastante familiar:
Por isso, meio século atrás, em sua Pedagogia do Oprimido, o educador brasileiro Paulo Freire sugeria que os povos marginalizados deveriam reinterpretar os mesmos textos que seus opressores usavam e transformá-los a seu serviço. Desconectar os clássicos da educação de elite é perfeitamente possível hoje: esses textos estão disponíveis em tradução basicamente para qualquer pessoa com acesso à Internet ou a uma biblioteca.O que precisamos fazer é “retomar os clássicos”. Por milênios, eles foram lidos de forma diferente por diferentes culturas. Não há razão para que não possam resistir ao teste de nosso tempo também. Podemos salvar os clássicos, desde que acreditemos que os pecados do pai não devem incidir sobre seus filhos e filhas.
Quando enfrentamos as idiossincrasias, preconceitos e limitações dos textos antigos e medievais, não estamos traindo suas origens, ou adaptando-os ao sabor de supostos melindres contemporâneos (vulgo, mimimis); estamos, sim, retomando suas leituras, conscientes de que somos mais uma dentre as múltiplas que já foram feitas e que ainda o serão. Expomos os tais “interesses ideológicos” de que falou Maria Wyke. Corrigimos perspectivas errôneas8,descendo não apenas Grécia e Roma, mas toda Antiguidade e o Medievo do pedestal onde foram colocados e transformando-os em poderosos operadores da alteridade. Tornando o passo suspenso da cegonha de inércia em potência. É sobre os diversos avatares desta potência que compõem essa edição de que trataremos de agora em diante.
A primeira subdivisão da edição se dedica às Reflexões sobre o ensino de Antiga e Medieval, a repensar as disciplinas como um todo, recriando-as (amiúde não sem antes desmontá-las) com vistas à sua inserção no espectro de valores humanistas do século XXI.
Em seu artigo Por um currículo afrorreferenciado de História Antiga e Medieval, Silviana Fernandes Mariz nos ensina a como abordar a Antiguidade e o Medievo como tempos históricos plurais em suas diversidades e conexões étnicas, religiosas, políticas e culturais, não apenas como expressão particular da gênese de um único continente ou povo destinado à supremacia. A Antiguidade e o Medievo já não podem mais ser tomados nem como preâmbulo e nem como êmbolo para a supremacia branco-europeia, mesmo que para isso seja necessário borrar fronteiras conceituais e embotar precisões teóricas, revisitando cada lugar de (de)negação, de invisibilização e de silenciamento das histórias e as experiências realizadas desde o continente africano em períodos anteriores à chegada do europeu e a consequente instalação de seus projetos coloniais.
É bastante oportuno que os artigos de Gui Moerbeck, Em defesa do ensino da História Antiga nas escolas contemporâneas: Base Nacional Curricular Comum, usos do passado e pedagogia decolonial, e Ygor Klain Belchior, Por uma História Antiga que promova a dignidade humana: um ensaio/ provocação, estejam um após o outro, porque ambos os autores refletem eticamente sobre a disciplina, e dessa reflexão surgem inquietações que enriquecem os olhares sobre o mundo antigo. Moerbeck propõe uma História Antiga para as escolas, uma Antiguidade inextrincavelmente vinculada às preocupações do mundo contemporâneo, e para tanto refaz diversos caminhos, discutindo-os, confrontando-os, e ao fazê-lo aponta para novos amanhãs. Belchior provoca os educadores e as educadoras à promoção de uma História Antiga promotora da dignidade humana, que inclua a participação de todos os humanos daquele passado, sejam eles orientais, africanos, mulheres ou homossexuais, de modo que sejam colocados na mesma posição dos agentes da História Universal.
Em O mundo no medievo: experimentos em ensino história medieval no Brasil, Christine Dabat reconta o percurso de vinte e cinco anos como professora de História Medieval da Universidade Federal de Pernambuco, dos esforços e (principalmente) das dificuldades em modificar as perspectivas sobre o Medievo, tanto da própria instituição quanto dos alunos e pesquisadores formados, uma vereda descrita poeticamente como “despertar de curiosidades”, ao qual os discentes se lançam tão mais alegremente quando constatam que –mantidas as regras do rigor acadêmico –têm liberdade para interpretar e reinterpretar os diversos testemunhos deste passado tão maltratado e abusado –ou ignorado –que é o medievo.
A segunda subdivisão da edição se dedica às práticas e fontes do ensino de Antiga e Medieval. Além de estarmos numa era de efervescentes mudanças sociais, encontramo-nos igualmente num momento de transformação tecnológica como poucos da história humana. Principalmente nas grandes cidades, os celulares dos alunos chegam cada vez mais cedo às salas, criando assim toda sorte de novas oportunidades e desafios. Nesse contexto movediço, das bancas escolares às universitárias, é fundamental repensar as estratégias de ensino, incorporando as novidades tecnológicas sem perder, contudo, as linguagens cognitivas mais tradicionais (o livro, a escrita, a fala concatenada) e sem desprezar as questões éticas de que já tratamos anteriormente.
Em Ensino de história, quadrinhos e a mobilização social –um estudo de caso da HQ Democracia, Luís Felipe Bantim Assumpção trata de uma das fontes mais debatidas no ensino de história: as histórias em quadrinhos. A partir da análise do álbum Democracia (PAPADATOS; KAWA; DI DONNA, 2019), ele critica os métodos convencionais, voltados unicamente à acumulação de dados e informações do passado, e o ensino que tende à massificação dos seus conteúdos e à depreciação da importância do conhecimento e da consciência históricos, estimulando o uso de instrumentos que favoreçam o trabalho pedagógico e o processo de ensino-aprendizagem.
Letícia Schneider Ferreira traz Homero para as salas de aula em seu artigo O debate sobre o feminino por meio da personagem Helena de Troia: propostas para o espaço escolar, e propõe que o estudo da personagem é interessante por abordar junto aos jovens estudantes a construção de discursos sobre o feminino, evidenciando seu caráter histórico, e possibilitando-os a questionar a quem serve a opressão produzida por narrativas que inferiorizam os papéis atribuídos às mulheres.
Marcio Felipe Almeida da Silva traz em A sorte está lançada: um breve ensaio sobre as legiões romanas e sua reconstrução na educação básica a descrição de uma interessante experiência de recriação das legiões romanas com alunos do 6º ano de uma escola privada na Baixada Fluminense (Rio de Janeiro), um projeto de aprendizagem que tanto abriu espaço para as atividades lúdicas, que fortalecem o trabalho em equipe, quanto transformou as aulas expositivas, nas quais os livros didáticos foram submetidos a uma profunda reflexão.
Em Ensino de história antiga a partir de fontes textuais: a experiência do projeto Vocabulário Político da Antiguidade, Priscilla Gontijo Leite descreve o projeto de ensino Vocabulário Político da Antiguidade: Reflexões para o Exercício da Cidadania, surgido em 2016 na Universidade Federal da Paraíba, cujo principal objetivo é a produção de materiais didáticos que estimulem o ensino de História Antiga numa perspectiva interdisciplinar oriunda das fontes textuais que abordam as formas de governo. O artigo salienta como a História Antiga pode contribuir positivamente para a formação dos sujeitos e é capaz de auxiliar na resolução de nossos dilemas e desafios.
Contribuindo para a perspectiva multicultural que o ensino de História Antiga e de História Medieval precisa exibir em nosso tempo, André Bueno analisa em Como ensinar a História? As histórias didáticas de Liu Xiang na Dinastia Han como uma das produções literárias do intelectual Liu Xiang, o Zhanguoce (uma história didática, voltada para a educação), alcançou grande sucesso na China, pôs em xeque teorias e formas de redação desse gênero e se tornou um importante manual de ensino de valores morais e ideias, sendo até hoje uma referência em temas éticos e de estratégia. Estendendo o debate –a partir dos chineses, e propondo analogias –Bueno questiona o quanto essa tensão entre uma história acadêmica e uma história mais ampla (didática, pública ou de divulgação) perpassa, igualmente, as dinâmicas de escrita histórica na atualidade.
Em O novo já nasce velho: a Idade Média pós-BNCCE a questão da mulher medieval nos livros didáticos de história do guia PNLD-2020, Douglas Mota Xavier de Lima apresenta apontamentos acerca da Idade Média nos manuais escolares, especificamente nas obras do Ensino Fundamental –anos finais aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e indicadas no Guia do Livro Didático 2020. Sua análise confirma uma dupla compreensão: que legislações e políticas públicas demandam tempo, por vezes décadas, para serem implementadas, e que há certa perenidade no conteúdo dos livros didáticos, os quais, ao longo dos anos, vão se alterando de maneira lenta e pontual, com mudanças mais relacionadas à forma do que ao conteúdo.
Finalmente, em Futuros de um passado presente: reflexões acerca do ensino de História Medieval e do Renascimento, Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior apresenta os resultados preliminares de dois projetos dedicados ao ensino de História Medieval e do Renascimento desenvolvidos pelo Virtù –Grupo de História Medieval e História do Renascimento –o Trivium & Quadrivium e o WikiMedieval –colaborações relevantes para o esforço de equipar docentes e discentes a refletir analiticamente acerca dos conteúdos atinentes à História Medieval e a Renascentista.
A seção dos artigos livres abre com o texto Histoire des femmes et du genre : Pénélope aussi a une histoire!, de Pauline Schmitt-Pantel que trata do desenvolvimento de um novo campo de estudos na historiografia a partir dos anos 70, analisando a figura da mulher. Isso foi decorrente principalmente da preocupação dos movimentos sociais de então por direitos sociais, e da busca por respostas que se queria dar à importância do feminino na sociedade, influenciadas pela eclosão do feminismo. Destacamos a relevante trajetória de Schmitt-Pantel no estabelecimento desses estudos, atuando como docente e pesquisadora na Universidade de Paris, participando desde então de um grupo de investigação interdisciplinar, composto por antropólogos, sociólogos e historiadores, de ambos os sexos, que inicialmente realizaram seminários e produziram artigos coletivos sobre o tema História das Mulheres. Esses artigos deram origem à coleção de cinco volumes, a História das mulheres no Ocidente (Histoire des femmes en Occident, publicada inicialmente em italiano, em 1989), traduzida em vários idiomas, da qual Schmitt-Pantel foi responsável pelo primeiro volume, relacionado à mulher na Antiguidade. A autora explica que inicialmente os estudos sobre o feminino visavam analisar a mulher em espaços privados, onde sua figura era “tolerada”. Mais tarde, as pesquisas apontaram para o papel da mulher na sociedade de forma mais ampla e as relações entre os sexos, bem como suas ambiguidades e estratégias de negociação, a História de Gênero. A autora aponta os avanços desses estudos até a atualidade, suas perspectivas recentes, voltadas ao estudo das identidades, bem como, tendências e principais temáticas dessa perspectiva historiográfica que é muito valorizada nos nossos dias, auxiliando-nos a compreender as relações construídas entre homens e mulheres no contexto global da sociedade.
Em As regras monásticas ocidentais (séculos IV-VII): características tipológicas, temas recorrentes e contextos de produção, Bruno Uchoa Borgongino apresenta uma caracterização das regras monásticas produzidas no Ocidente durante a Primeira Idade Média, definindo os elementos textuais constitutivos, os temas frequentemente abordados e os contextos em que eram produzidos.
Em Evidência de anglo-saxões nas fontes da Inglaterra anglo-saxônica? Termos e usos no medievo e contemporaneidade, Elton O. S. Medeiros e Isabela Albuquerque discutem as evidências históricas nas fontes documentais medievais referentes ao termo “anglo-saxão” e suas derivações. Com base nos termos utilizados na documentação em inglês antigo e língua latina, abordaram como esses vocábulos identitários foram utilizados para designar os governantes ingleses da ilha e, consequentemente, a quem eles governavam.
Por fim, em Corpos Corrompidos, Hóstias profanadas e Crianças crucificadas: os judeus em narrativas cristãs e a peste bubônica no Sacro Império Romano Germânico da Baixa Idade Média, Vinicius de Freitas Morais analisa os livros Die geschicht und legend von dem seyligen kind und marterer genannt Symon e Geschichte des zu Trient ermordeten Christenkindes, e relata as narrativas acusatórias contra os judeus durante a grande pandemia do século XIV.
Tiago Quintana e Daniele Gallindo Gonçalves publicam nesta edição a primeira tradução para o português brasileiro do poema Tegnér’s drapa, de Henry Wadsworth Longfellow, escrito em homenagem ao bispo e escritor sueco Esaias Tegnér (1782-1846), e propõem sua análise à luz das discussões propostas pelo campo da Recepção da Idade Média.
Na última seção desta revista, o historiador Fernando Mattiolli Vieira entrevista a arqueóloga mexicana Marcela Zapata-Meza e apresenta as alterações providas pela Arqueologia após o contraste com os registros escritos conhecidos da Antiguidade. A entrevista torna possível conhecer mais sobre os desafios encontrados em um trabalho de Arqueologia Bíblica e amplia o conhecimento sobre o contexto de formação do Judaísmo e do Cristianismo.
Encerro esta apresentação reafirmando que História é “inquietação, angústia existencial” (H. I. Marrou), “reencenação de pensamento passado” (R. G. Collingwood) e “arqueologia do indivíduo” (J. Cauvin). Nesse sentido, a contribuição que as histórias antigas e medievais têm a dar a todos esses processos não é, de modo algum, desprezível. Boa leitura.
Referências
FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo: Planeta, 2012.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.
MARISCAL, Lucía P. R.; DAROCA, F. Javier C. Tragedia antigua y educación literária de las emociones. In JUSTICIA, Lorena Jiménez; PUERTAS, Alberto J. Quiroga (orgs.). Ianus: innovación docente y reelaboraciones del legado clássico. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018.
MINISTÉRIO da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004.
MOLAND, Lydia L. Filosofia da História. In: BAUR, Michael (org.). G. W. F. Hegel: conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2021.
PAIVA, Viviane Aparecida da Silva. O Egito como componente curricular de história: desafios e possibilidades no ensino de história da África. Catalão, GO: Universidade Federal de Goiás: Programa de Pós-Graduação em História (profissional), 2016.
PERALTA, Dan-el Padilla. Epistemicide the Roman Case. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, Vol. 33, Nº. 2, 2020, págs. 151-186. https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7694681
SILVA, Marcos; GUIMARÃES, Selva. Ensinar história no século XXI: em busca do tempo entendido. Campinas: Papirus, 2012.
WYKE, Maria. Projecting the past: Ancient Rome New Ancient World. Psychology Press, 1997.
ARTIGOS DE OPINIÃO
BARTSCH, Shadi. Why I won’t surrender the classics to the far right. The Washington Post, 4 de fevereiro de 2021. https://www.washingtonpost.com/opinions/dont-yield-ancient-history-and-literature-to-the-alt-right/2021/02/03/3632ad7a-6635-11eb-886d-5264d4ceb46d_story.html.
Notas
1 To Meteoro Vima Tou Pelargou. Dir. Theodoros Angelopoulos. FRA/ GRE/ SUI/ ITA, 1991.
2 https://offscreen.com/view/the-suspended-step-of-the-stork_theo-angelopoulos
3 Vale salientar que o próprio conceito de civilização, conforme o modelo europeu era, em si mesmo, extremamente excludente. Sem me alongar em demasiado no tema, recordo o comentário que Niall Ferguson (2012, p. 25-6) fez sobre uma conhecida série de TV dos anos 60, Civilização, de Kenneth Clark: “civilização eram os chateaux do Loire. Eram os palazzi de Florença. Era a Capela Sistina. Era Versalhes. Dos interiores sóbrios da República holandesa às fachadas exuberantes do Barroco (…) a essência da civilização de Clark era, claramente, a alta cultura visual”. Qualquer coisa fora desse catálogo seria intrinsecamente inferior.
4 Sobre este fato, é digno de nota o oportuno artigo de Paulo Pachá, Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia, publicado em inglês e português em 2019, logo após a posse do atual presidente. https://esquerdaonline.com.br/2019/04/08/por-que-a-extrema-direita-brasileira-ama-a-idade-media-europeia/
5 Nesse particular, uma leitura fundamental é o texto de Dan-el Padilla Peralta, de Princeton, intitulado Epistemicídio: o caso romano (https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7694681), no qual sustenta que “a República e o Império romanos engendraram uma perda impressionante de diversidade epistêmica em todo o Mediterrâneo antigo, rastreável ao longo de múltiplos vetores – da escravidão em massa ao desastre ecológico. Conclui-se com uma convocação para que haja reconhecimento sobre o escopo do epistemicídio da Roma antiga, abraçando a recalibração epistemológica e ética necessária para escrever sua história”.
6 https://www.wsj.com/articles/even-homer-gets-mobbed-11609095872
7 https://www.washingtonpost.com/opinions/dont-yield-ancient-history-and-literature-to-the-alt-right/2021/02/03/3632ad7a-6635-11eb-886d-5264d4ceb46d_story.html
8 Os exemplos são inúmeros, e enquadram-se na categoria de “decisão política com fortes repercussões pedagógicas” de que falam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Cito dois casos, um pertinente à Antiguidade, o outro ao Medievo. A dissertação de mestrado de Viviane Paiva, O Egito como componente curricular de história: desafios e possibilidades no ensino de história da África (Universidade Federal de Goiás, Catalão, 2016), demonstra como, apesar dos anos de vigência das Diretrizes, boa parte dos alunos ainda nem sequer compreende o Egito como uma civilização africana, composta por pessoas majoritariamente negras. Numa outra perspectiva, a da história pública, temos a página História Islâmica (https://historiaislamica.com/pt/) formada por jovens profissionais de história extremamente atuantes que vêm traduzindo e escrevendo artigos de divulgação científica sobre a importância do legado da Idade de Ouro do Islam nas ciências e na cultura ocidental. Seu impacto é atestado pelo combate que grupos supremacistas de inspiração medieval dão à página.
Referências
GURDON, Meghan Cox. Even Homer Gets Mobbed. A Massachusetts school has banned ‘The Odyssey. The Wall Street Journal, 27 de dezembro de 2020. https://www.wsj.com/articles/even-homer-gets-mobbed-11609095872
PACHÁ, Paulo. Por que a extrema-direita brasileira ama a Idade Média Europeia? Esquerda Online, 8 de abril de 2019. https://esquerdaonline.com.br/2019/04/08/por-que-a-extrema-direita-brasileira-ama-a-idade-media-europeia/
TOTARO, Donato. The Suspended Step of the Stork: Theo Angelopoulos among the Greats. Offscreen, volume 20, edição 2, fevereiro de 2016. https://offscreen.com/view/the-suspended-step-of-the-stork_theo-angelopoulos
Organizador
José Maria Gomes de Souza Neto. Docente da Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade de Pernambuco (UPE-MNORTE/Leitorado Antigo). E-mail: zemariat@uol.com.br
Referências desta apresentação
SOUZA NETO, José Maria Gomes de. Apresentação: Ensinando História Antiga e Medieval no Brasil: Da inércia à potência. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.21, n.1, 2021. Acessar publicação original [IF].
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