O livro Ensaios de História Medieval: temas que se renovam é um exemplo, junto a outros publicados nos últimos anos1, da consolidação dos estudos universitários brasileiros sobre a Idade Média. Desde meados da década de 1990 o medievalismo no Brasil vem crescendo influenciado por diversos fatores2. A fundação da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), em 1996, foi um marco desse sucesso. Nesse processo, grupos de estudos, periódicos especializados e eventos regulares na área também se estabeleceram nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Em Goiânia, por exemplo, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Área II, foi realizado nos dias 20 e 21 de maio de 2019 o Colóquio de Estudos Medievais & Curso de Atualização: “Ensaios de História Medieval: temas que se renovam”. Nesse evento, foi lançado a obra aqui resenhada, organizada pelos professores doutores Renata Cristina de Sousa Nascimento (UEG/ UFG/PUC-GO) e Paulo Duarte Silva (UFRJ).
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (2005), Renata Cristina tem ampla atividade no medievalismo brasileiro. É professora nas universidades Federal e Estadual de Goiás e na Pontifícia Universidade Católica, também em Goiás. É pesquisadora no Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED/UFPR) e coordenadora do Grupo de Estudos Ibéricos (CNPq). Nos últimos anos, Renata Cristina também tem se destacado como organizadora de eventos acadêmicos e de livros relacionados ao Medievo.
Paulo Duarte também tem ampla atuação no ensino e na pesquisa. É Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005) e atualmente é Professor Adjunto de História Medieval na mesma instituição. Atualmente divide a coordenação do Programa de Estudos Medievais (PEM-UFRJ) com as professoras Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva, ambas também pesquisadoras de renome.
Ensaios de História Medieval: temas que se renovam é uma obra composta por onze capítulos que abordam, cada um, temas tradicionais da Idade Média analisados sob a perspectiva dos mais recentes debates historiográficos. Destinados ao grande público e, principalmente, aos estudantes universitários em formação desde a graduação, a leitura desses capítulos colabora para o conhecimento das atuais discussões sobre temas consagrados na área, como o fim do Império Romano, e também acerca de assuntos que a cada ano vem ganhando mais desenvolvimento no país, como a expansão árabe-islâmica.
Os onze autores do livro – incluindo os dois coordenadores – são nomes de destaque na área. Todos são doutoras e doutores formados em um período de doze anos, entre 2004 e 2016, representando assim uma verdadeira geração de medievalistas brasileiros extremamente qualificados.
Como já mencionado, o livro em questão foi lançado no Colóquio de Estudos Medievais & Curso de Atualização: “Ensaios de História Medieval: temas que se renovam, que contou com a presença de 10 dos 11 autores e da professora Maria Filomena Coelho3, autora do prefácio da obra, que sintetizou com excelência os temas centrais dos textos que compõem o livro. No evento mencionado, cada autor apresentou seu capítulo oralmente em formato de conferência, com duração média de uma hora, durante os dois dias de atividade, abrindo espaço para perguntas e debates e convidando a comunidade acadêmica ao aprofundamento das discussões a partir da leitura de Ensaios de História Medieval.
O primeiro capítulo do livro, intitulado O Fim do Império Romano, as Migrações e a Formação dos Reinos Bárbaros, é de autoria do professor Doutor Paulo Duarte Silva e apresenta uma síntese das interpretações sobre o fim do Império Romano. O autor identificou sete grandes paradigmas interpretativos sobre o tema produzidos desde o século XVI 4. Obviamente, nenhum desses modelos interpretativos é absoluto. Todos são relativos devido às suas próprias épocas de produção historiográficas, ao enfoque analítico de cada um e à variedade de fatores explicativos para um evento tão complexo.
Por influência principalmente das leituras produzidas no âmbito da Escola dos Annales – que consideram as dinâmicas processuais em temporalidades de curta, média e longa duração – chegou-se ao consenso de que o fim de Roma não foi uma grande ruptura civilizacional que levou à morte da Antiguidade e ao nascimento do Medievo, mas sim um longo processo de transformações no decorrer dos séculos III e V. Nesse processo, reinos germânicos se formaram no interior das antigas fronteiras romanas e a Igreja aumentou seu patrimônio e seu poder, tornando-se uma instituição “recém-alçada ao protagonismo político e cultural na virada antiguidade à Idade Média” (SILVA, 2019, p. 19).
Nesse capítulo é destacado não só o equívoco de considerar o fim de Roma como um rompimento radical que levou ao fim de uma civilização como também a semântica de termos referentes aos povos nomeados como “bárbaros”. O autor salienta que os termos “bárbaros” e “reinos bárbaros” estão em desuso. A maioria dos pesquisadores utiliza a expressão “reinos romano-germânicos” não só para desvincular as conotações negativas de palavras como “trevas” e “barbáries” aos povos germânicos, mas também para considerar o legado cultural romano, em termos jurídicos e institucionais, no processo de formação de cada reino romano-germânico.
O capítulo dois do livro também abordou os povos germânicos, em específico, os visigodos. De autoria de Rodrigo dos Santos Rainha5, A Organização do Reino Visigodo: perspectivas historiográficas tem como objetivo investigar a formação desse reino germânico, analisando também a historiografia sobre o tema. De modo franco, o professor Rodrigo Santos informa logo no início do capítulo que os visigodos já foram mais trabalhados no passado em compêndios e edições com valiosas análises documentais. Os visigodos perderam espaço para outras discussões no âmbito do Medievo de modo que recentes produções historiográficas sobre esse povo estão mais raras. Contudo, ainda há trabalhos importantes sobre o tema, dentre os quais, o capítulo agora analisado, segundo o autor desta resenha.
Rainha (2019) entende a formação dos godos dentro do período identificado como Primeira Idade Média e a partir do conceito de regna. O termo “Primeira Idade Média” destaca as transformações sociais e política da Europa Ocidental nos primeiros tempos “medievais” como caracterizações distintas do contexto sócio-político atrelado à leitura de “Antiguidade”. Assim, sua análise não se foca nas permanências, mas no contexto social diverso relacionado aos godos no Medievo. Quanto ao conceito de regna, embora seja muitas vezes traduzido literalmente como “reino”, Rainha (2019) enfatiza o seu entendimento como “autoridade”, “reconhecimento de grupo” ou “reconhecimento de poder”. Essa postura conceitual permite compreender algo em transformação contínua cuja força está relacionada ao reconhecimento do poder do grupo representado. Assim, Rainha (2019) apresenta e concorda com uma historiografia defensora de termos como “francos”, “visigodos” e “ostrogodos” em vez de “bárbaros” ou “germanos” para destacar numa nova identidade desses povos, identidade essa frágil, fluída e coletiva.
O capítulo terceiro de Ensaios de História Medieval aborda um dos temas medievais de maior destaque: o papado. De autoria de Leandro Duarte Rust6, O Papado na Idade Média nos os diversos matizes dessa instituições demonstrando assim a diversidade dessa forma de poder no decorrer do Medievo. Seu autor identifica pelo menos três tipos, classificações ou trajetórias desse poder: o Papado Bizantino (entre as décadas de 460 e 730), o Papado Republicano (entre as décadas de 730 e 1040) e o Papado Corporativo (entre as décadas de 1040 e 1300).
Desse modo, Rust (2019) problematiza as principais interpretações que se tem sobre o complexo e multifacetado poder papal, cuja ideia de supremacia política desse poder é uma visão contemporânea – principalmente entre 1870 e 1950 com o tema “papado” sendo trabalhado em várias mídias – que enxerga a Idade Média como um paraíso perdido dos papas, como afirma o autor em brilhante metáfora. Seu estudo mostra que o papa era poderoso não por ser tirânico ou por monopolizar o poder, mas porque agia como mediador de conflitos e intercessor em favor da justiça.
Continuando com o tema religioso em específico, o capítulo quarto – Relíquias e Peregrinações na Idade Média -, de Renata Nascimento, trabalha os dois maiores fenômenos históricos da religiosidade medieval: as relíquias e as peregrinações, cuja principal referência espiritual é a Terra Santa, local associado às revelações dos primeiros profetas bíblicos e à vida e à paixão de Cristo. Nesse sentido, é bastante proveitosa a opção da autora pelo modelo interpretativo do estudioso francês Maurice Halbwachs, que considera a topografia dos lugares santos uma memória afetiva de um grupo social, portanto, uma construção coletiva. Assim, o passado relacionada à Terra Santa é reatualizado na memória coletiva sempre que os ritos e objetos disseminam lembranças de narrativas divinas, narrativas essas que são essenciais para criar elos com os fiéis.
No âmbito representativo e simbólico da Terra Santa, Jerusalém está no centro, sendo a maior manifestação da geografia espiritual cristã e modelo de cidade-relíquia. Os processos de sacralização cristã da cidade envolveram não só a delimitação de espaços sacros específicos, mas também a criação de uma arquitetura condizente com a fé cristã. Assim, a ascensão política gradativa de Constantino – primeiro imperador romano convertido ao Cristianismo – foi acompanhada pela demolição de símbolos do passado pagão romano. “Ganhando projeção política, a religião cristã necessitava de uma identidade palpável, concreta, garantindo seu pertencimento a uma história épica” (NASCIMENTO, 2019, p. 74).
A peregrinação no Medievo foi um aspecto bastante característico do período. A peregrinação de homens e mulheres, enquanto deslocamento rumo ao sagrado, pode ser entendida como um ato de fé e de superação tanto física e espacial quanto espiritual. Com a peregrinação, os fiéis buscam purificação dos pecados e, portanto, a redenção. Apesar de ser um fenômeno universal presente em diversas temporalidades de distintas culturas, as peregrinações medievais se associavam não só a lugares, mas também a relíquias, atraindo fiéis de diferentes localidades que queriam ver e tocar o sobrenatural. No campo das relíquias, os objetos sagrados de maior prestígio eram aqueles associados a Jesus Cristo, como fragmentos da Santa Cruz, pregos da crucificação, a Coroa de Espinhos, dentre outros.
Em seu capítulo, Nascimento (2019) apresenta reflexões mais aprofundadas sobre o tema e, claro, mais episódios sobre cidades e relíquias em específico, sempre traçando os paralelos entre religião e política. Esses paralelos e/ou associações entre campos aparentemente distintos são fundamentais para uma adequada compreensão sobre todos os períodos históricos e, principalmente, do Medievo.
Carolina Gual da Silva7 assina o capítulo seguinte, intitulado As Universidades e o Conhecimento na Idade Média. Nesse texto, a autora introduz algumas discussões atuais sobre a história e as funções sociais e políticas das universidades medievais na virada do século XII para o XIII. Apesar de apontar que civilizações mais antigas e exteriores à Europa Ocidental tenham reconhecido formas de ensino superior, Silva (2019) afirma que a universidade, em sentido mais específico, é uma instituição essencialmente medieval e europeia.
Como a autora explica, é difícil dar uma datação precisa ao surgimento das universidades ditas “ocidentais” porque essas instituições são resultado de uma transformação progressiva, no contexto urbano e com influência intelectual da Igreja Católica desde o século XI. Assim, no século XIII houve uma organização dos saberes tradicionais que eram cultivados desde os séculos XI e XII e essa organização levou ao surgimento das universidades. As primeiras instituições ocidentais desse tipo surgiram em Paris, em 1208, e na Bolonha e em Oxford em 1215.
Defendendo o pressuposto de que a universidade medieval deve ser pensada dentro da sociedade que a produziu, Carolina Gual da Silva (2019) entende que a existência da universidade se assenta não somente em sua estrutura interna, mas também nas limitações externas do seu contexto. Assim, a universidade medieval foi fruto de uma realidade múltipla: institucional, intelectual, social e política.
A Arte, como tema específico, entra em Ensaios de História Medieval a partir do capítulo sexto: As Transferências Artísticas na Europa Gótica, de Flávia Galli Tatsch8. O texto apresenta o modo como a transferência cultural – conceito interdisciplinar proposto na década de 1980 pelo francês Michel Espagne e pelo alemão Michaël Werner – se configurou como uma área de estudos das produções medievais. Investigações que utilizam esse conceito se opõem aos estudos em Humanidades que procuram formas artísticas/culturas homogêneas em certo espaço nacional a partir da ideia de centro-periferia ou da noção de história das influências, pressupostos esses que pensam uma cultura como submetida à influência de outra, colocando então a cultura influenciada em uma posição de inferioridade. Tais estudos defendem não somente à assimetria e hierarquização cultural, mas também a legitimação de uma identidade nacional. Em contrapartida, o conceito de Espagne e Werner envolve a investigação de deslocamentos humanos, de livros e de objetos de arte, destacando “as análises multilaterais e as ideias de conexões e cruzamentos, empréstimo, importação, reapropriação, hibridismo, tradução e transformação entre culturas e sociedades” (TATSCH, 2019, p. 64).
A autora entende que os debates acerca das transferências e deslocamentos culturais foram estimulados pelo Acordo de Schengen (1985), pelo fim do bloco soviético com a Queda do Muro de Berlim (1989), a reunificação da Alemanha (1990) e pelo Tratado de Maastricht (1992), eventos esses que influenciaram na construção de uma Europa sem fronteiras para a circulação de pessoas e objetos, estimulando assim a criação de uma identidade coletiva com valores comuns e legitimadores de uma estrutura supranacional.
Tal como outros textos do livro, o capítulo de Tatsch (2019) aponta para a estreita relação entre o presente e nosso olhar para o passado, evidenciando assim a constante necessidade de renovação de conceitos e perspectivas tradicionais para um melhor entendimento das experiências humanas na história.
Marcella Lopes Guimarães9 assina outro capítulo centralizado na Arte e também indispensável para se compreender o Medievo: A Literatura Medieval: entre a prosa e a poesia. A autora trabalha principalmente a obra de Chrétien de Troyes, escritor medieval do século XII que viveu na região que atualmente corresponde à França, conhecido pelas suas novelas de cavalaria, sendo autor de duas cantigas e de cinco romances (narrativas em verso): Eric e Enide, Cligès, O Cavaleiro do Leão (Yvain), O Cavaleiro da Carreta (Lancelot) e O Conto do Graal (Parsifal).
A autora destaca que desde os séculos XIII e XIV a prosa respondia a várias demandas das sociedades medievais do ocidente latino, embora a poesia não tenha desaparecido, mas se tornado uma concorrente da prosa. Inclusive romances de cavalaria famosos como Amadis de Gaula e Tirant lo Blanc foram escritos em boa prosa que se aproximava da poesia. Assim, a autora demonstra que os romances em versos não “evoluem” para a prosa. A própria obra de Chrétien de Troyes não é uma etapa de uma evolução, mas sim uma obra singular fruto de um contexto e de um autor que registra transformações que indicam para a prosa como solução literária, mas sem impedir a poesia, pelo contrário: apresenta continuidades entre essas duas manifestações artísticas.
Tal como Tatsch (2019) apontou em seu texto, Guimarães (2019) enfatiza que a aproximação do leitor com uma obra literária/artística se dá a partir do seu contexto, sempre com questões do seu presente. Mesmo assim o texto também questiona e elabora perguntas ao seu mundo. Nesse processo, observa-se que prosa e poesia não são manifestações com fórmulas rígidas, mas sim expressões que constroem alternativas, competem e colaboram entre si e com as línguas.
À medida que os estudos acadêmicos sobre a Idade Média vêm se desenvolvendo, outros grupos étnicos e/ou religiosos vêm à baila das discussões, como os muçulmanos. Nesse sentido, Ensaios de História Medieval atesta mais uma vez sua relevância contemporânea ao abordar o Islãm e os muçulmanos nos seus capítulos oitavo e nono.
Em Da Expansão Árabe à Era Dourada, Aline Dias da Silveira10 apresenta uma síntese geral sobre a expansão árabe-islâmica no seu primeiro milênio, focando seu recorte temporal entre os séculos VII e XI. A autora defende a descolonização da História, que envolve um distanciamento cada vez maior do ponto de vista exclusivo europeu. Essa postura epistemológica implica na desconstrução do paradigma historiográfico hierárquico, centralista e colonizante que coloca a Europa como ápice civilizacional e modelo para as demais sociedades. Descentralizar narrativas históricas desse tipo é não só valorizar outras experiências históricas, mas também investigar as conexões entre as histórias dos diferentes continentes e, se possível, observar as sincronicidades entre elas. Tais premissas teórico-metodológicas são proveitosas para um estudo sobre o Islãm, pois a expansão da civilização baseada nessa religião transitou por rotas comerciais, como a Rota da Seda (ou Rotas da Seda), que colaborou consideravelmente para a conexão entre as histórias da África, Ásia e Europa, como a própria autora afirma.
Em seu capítulo, Silveira (2019) trabalha pontos centrais da expansão árabe-islâmica na Arábia, na África e na Península Ibérica, abordando esses eventos desde o contexto da sociedade árabe no século VI, em contato com grandes impérios como o Persa e o Bizantino, à riqueza cultural do Califado de Córdoba na Hispânia passando pelo trânsito de árabes e muçulmanos por diferentes regiões do continente africano. Em sua síntese, a autora defende que apesar da expansão árabe-islâmica ter elementos de coesão cultural – como a religião islâmica e a língua árabe – essa expansão não foi homogênea no mundo afro-euro-asiático e não contou apenas com conquistas bélicas, mas também por meio de relações políticas, comerciais e migratórias por meio das rotas comerciais, que já existiam antes do Islãm, como a Rota da Seda e as rotas africanas. Contudo, o sucesso político dos árabes e o posterior crescimento da religião islâmica intensificam as movimentações e dinâmicas nessas rotas.
Em Além da Guerra Entre Cristãos e Muçulmanos: a reconquista e dos duelos historiográficos, Bruno Gonçalves Alvaro11 se concentra no tradicionalmente discutido – e ainda de relevância contemporânea – conceito de Reconquista. Já no início do seu trabalho o autor informa que utilizará o termo no seu sentido operacional (e consensual), entendendo-o como o conjunto disputas – bélicas e estratégicas, incluindo diplomáticas – entre cristãos e muçulmanos na Hispânia medieval entre os séculos XI e XIII. Tais conflitos envolveram diversos grupos da aristocracia senhorial durante o processo de expansão dos reinos ibéricos.
Alvaro (2019) também aponta a base ideológica desse conceito, produzida pelos historiadores espanhóis do século XIX: a Batalha de Guadalete em 711, onde o rei visigodo Rodrigo foi derrotado pelo general Ṭāriq Ibn Ziyād, general a serviço do Califado Omíada. Daí o autor parte para reflexões sobre a guerra senhorial medieval e os usos políticos desse conceito, que serviram de fundamento da essência espanhola, no nacionalismo do século XIX, e até como recurso ideológico da ditadura franquista (1939-1976) em sua limpeza contra o comunismo.
Finalizando seu texto provocativo, Alvaro (2019) afirma que o conceito de Reconquista sobreviveu ao tempo histórico e continua sendo muito usado tanto no meio acadêmico quanto no senso comum por mais que ele não esteja presente em nenhuma fonte medieval. Todavia, isso não tira o mérito dos debates sobre esse conceito, pois no momento em que entendemos que historiografias passadas são fontes sobre sua origem, conquistamos ferramentas ideológicas e discursivas para melhor compreender nossos conceitos e perspectivas sobre o passado.
Renato Viana Boy12, autor do décimo capítulo do livro, intitulado Constantinopla: poder e queda, discute alguns aspectos da história bizantina a partir de abordagens mais recentes, como a história de Constantinopla, a autocracia do poder imperial bizantino e questões entre essa poder e as instituições religiosas.
Boy (2019) apresenta um estudo que ressalta as estruturas religiosa, política e cultural específicas do Império Bizantino durante todo o Medievo, estruturas essas que o diferenciavam do mundo latino, questionando assim argumentos que veem esse império como uma sobrevivência débil do antigo Império Romano Ocidental. Um aspecto singular do Império Bizantino foi inclusive o governo autocrático cristão que, entre os séculos IV e XV, se fundamentou nos na obra Vita Constantini de Eusébio de Cesareia (265-339), que colocava a figura do autocrata como um vice-rei de Deus na Terra, porém, governando abaixo da lei e do cargo.
O autor desse capítulo entende que o crescimento de temas e abordagens para além do Ocidente Europeu – e de outros assuntos como o mundo anglo-saxão, árabe, nórdico e africano -, no medievalismo brasileiro se deve, dentre outros fatores, aos investimentos no ensino superior nos últimos anos com a criação de universidades, cursos e o consequente aumento de demandas em pesquisa.
Ensaios de História Medieval finaliza com “um pé” na História Moderna, assim tradicionalmente considerada, apesar de todos os textos dessa obra deixando claro a importância de se entender a história de forma processual (com continuidades e rupturas) em vez de datas rigidamente delimitadas. Esse capítulo final é denominado O Reino de Portugal: da reconquista ao início da expansão (1096-1450) e foi escrito por Fabiano Fernandes13. O texto trata sobre a formação e o desenvolvimento do Reino de Portugal como um processo onde convergiram diversos fatores, dentre os quais, a guerra, focando no contexto de fortalecimento do poder régio na primeira metade do século XIV.
Fernandes (2019) entende que, no amplo e complexo processo de formação do reino português, a relação próxima e peculiar entre guerra e religiosidades – expressas no sentido da ideologia de cruzada – foram o eixo da história desse reino de 1090 a 1450. As questões militares, portanto, foram cruciais para o Reino de Portugal se tornar uma potência marítima nos princípios da Idade Moderna, haja vista as proximidades entre as ordens militares e a monarquia, principalmente com a Ordem de Cristo.
Espera-se que o presente texto estimule a leitura de Ensaios de História Medieval: temas que se renovam, obra que apresenta o essencial do medievalismo brasileiro como está constituído hoje. Também se deseja que este texto evidencie a diversidade de perspectivas e a qualidade analítica dos estudos de docentes e pesquisadores brasileiros acerca de temas consagrados do período histórico entendido entre os séculos V e XV. Longe de ser um período de “trevas” ou de retrocessos inerentes, a Idade Média se mostra como uma época complexa e pertinente ao mundo contemporâneo e por isso demanda estudos comprometidos com a pesquisa e o ensino científicos. Tais procedimentos são magistralmente realizados pelos autores e autoras do livro, professores e professoras dos quais o autor desta resenha teve e tem o prazer de ser aluno de forma direta ou indireta.
Notas
1 Dentre os quais, trabalhados também organizados/coordenados por Renata Cristina de Sousa Nascimento em parceria com outros docentes e pesquisadores como Mundos Ibéricos: territórios, gênero e religiosidade (2017), Peregrinos e Peregrinação na Idade Média (2017), A Visibilidade do Sagrado: relíquias cristãs na Idade Média (2017), Cultura, Política e Poder na Idade Média: estudos em homenagem ao Doutor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza (2018) e Cultura, Palavra e Fé: narrativas e sacralidades no Mundo Ibérico (2019).
2 No artigo Os Estudos Medievais no Brasil e o Diálogo Interdisciplinar (2013) a professora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ) apresenta detalhes desse desenvolvimento. Disponível em: http://medievalis.nielim.com/ojs/index.php/medievalis/article/view/24/23
3 Doutora em História Medieval pela Universidade Complutense de Madrid (1993). Atualmente é Professora Associada II no Departamento de História da Universidade de Brasília. Também compartilha a coordenação do Programa de Estudos Medievais (PEM) na mesma instituição.
4 Seguem os contextos de produção desses paradigmas conforme apresentados no capítulo: 1 – Interpretação Renascentista (XIV-XVI) com o surgimento da ideia de modernidade e a periodização tripartite da história; 2 – Interpretações nacionalistas europeias no século XIX; 3 – Interpretações influenciadas pelos estudos de Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) nas primeiras décadas do século XX; 4 – Interpretações catastrofistas no período europeu entreguerras (1919-1939); 5 – Interpretações influenciadas pelos pressupostos da Escola dos Annales desde 1929; 6 – Intepretações interdisciplinares pós-1945 com áreas como Antropologia, Sociologia e Literatura; 7 – Interpretações influenciadas pela noção cronológica de Antiguidade Tarda (surgida na década de 1960 e desenvolvida por autores como Henri-Irénée Marrou e Peter Brown) com o questionamento da ideia de “crise”, substituindo tal noção por “mudança” e/ou “transformação” (SILVA, 2019).
5 Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Professor Adjunto no Departamento de História Antiga e Medieval na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e docente e coordenador na área de Educação na Universidade Estácio de Sá.
6 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2010). Professor Associado II na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Também tem experiência como docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na Universidade de Brasília (UnB). Foi editor-chefe da Signum – Revista da ABREM (2009-2013) e da Revista Territórios & Fronteiras (2010-2015).
7 Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2016), com estágio doutoral pela Université Paris I/Sorbonne. Pesquisadora colaboradora da Unicamp e pesquisadora do LEME (Laboratório de Estudos Medievais). Também é Pesquisadora e Professora Colaboradora em História Medieval do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas.
8 Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (2011), professora no curso de graduação em História da Arte e no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenadora do Núcleo História da Arte do Laboratório de Estudos Medievais – LEME/UNIFESP.
9 Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (2004). Atualmente é Professora Associada II na mesma instituição. Foi editora gerente da Revista Diálogos Mediterrânicos (2013-2015), vice- -coordenadora do PPGHIS-UFPR (2016-2017) e coordenadora do mesmo programa de pós-graduação (2017-outubro de 2019). Também é pesquisadora do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED/UFPR) e do Laboratório de Didática da História (LADIH/FURB).
10 Doutora em História Medieval pela Universidade Humboldt de Berlim (2008). Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais – Meridianum.
11 Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Professor Associado I de História Medieval no Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. Foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em História na mesma instituição (março de 2016-março de 2018). Atualmente também é pesquisador-colaborador no Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEM-UFRJ).
12 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (2013). Professor na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Câmpus Chapecó – SC. Desde 2013 é coordenador do Núcleo UFFS do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). Também é membro da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais.
13 Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005). Atualmente é professor de História Medieval na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), membro do LEME-Unifesp e da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais. Também é coordenador do Laboratório de Estudos Mediterrânicos e Bizantinos (LAEMEB).
Resenhista
Thiago Damasceno Pinto Milhomem – Doutorando em História na Universidade Federal de Goiás. E-mail: thiagodamascenohistoria@gmail.com
Referências desta Resenha
NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa; SILVA, Paulo Duarte (Orgs.). Ensaios de História Medieval: temas que se renovam. Curitiba: CRV, 2019. Resenha de: MILHOMEM, Thiago Damasceno Pinto. O medievalismo brasileiro em onze textos essenciais. Revista Mosaico. Goiânia, v. 14, n.1, p. 209-215, 2021. Acessar publicação original [DR]
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