Em defesa de Constantino: o crepúsculo de um império e a aurora da cristandade | Peter Leithart

Nascido em 1959, Peter Leithart é bacharel em Inglês e História (1981) pelo Hillsdale College (Michigan, EUA), mestre em Artes e Religião (1986), mestre em Teologia (1987) pelo Westminster Theological Seminary (Philadelphia, EUA), e doutor em Teologia (1998) pela University of Cambridge (Inglaterra). Autor de diversos livros e artigos, é presidente do Theopolis Institute e atua como professor na Trinity Presbyberian Church (Birmingham).3

Autor de diversos comentários bíblicos em diálogo com a historiografia, nesta obra Leithart enfrenta o debate em torno da figura ambígua e até certo ponto enigmática do imperador Flávio Valério Constantino (imperador de 306 a 337). O prefácio, redigido pelo próprio autor, apresenta com clareza o tema de sua investigação: se Constantino é realmente o tirano hipócrita associado a antissemitismo, apostasia e heresia como costuma ser retratado tanto na cultura popular como entre alguns historiadores e teólogos (p. 11). Como Leithart nos recorda, Constantino foi inovador em muitos sentidos:

Constantino foi o primeiro imperador abertamente cristão, o primeiro imperador a apoiar a igreja, o primeiro imperador a convocar e participar de um concílio eclesiástico, o fundador de Constantinopla e, portanto, do Império Bizantino, que durou por mais de um milênio (p. 12).

Leithart não esconde que seus objetivos são polemistas, levantando uma querela contra a ideia de “constantinianismo” cunhada pelo teólogo menonita John Howard Yoder,4 cujas afirmações são analisadas e contrapostas em boa parte do livro. Segundo Leithart, Yoder compreende mal o século IV, o que o leva a minimizar a importância teológica de Constantino e a distorcer suas realizações, cristalizando a ideia de que a igreja cristã “caiu” naquele século e nunca mais se recuperou (p. 13). Ao final do prefácio fica evidente a intenção política para além da teológica: tratar de Constantino é importante porque os cristãos americanos estão envolvidos na discussão sobre o império americano e o autor, como líder evangélico, está preocupado em levantar respostas na Antiguidade para questões do presente como as guerras no Iraque e no Afeganistão (p. 13-14).

Vejamos como Leithart desenvolve seu argumento. No primeiro capítulo, Éditos sanguinários, o autor contextualiza o Império Romano a partir de Diocleciano (imperador entre 285 e 305), demonstrando o aspecto profundamente religioso de sua percepção de mundo e de seu entendimento de governança do império. Diocleciano acreditava que Roma era produto de uma pax deorum, a paz dos deuses, e o sacrifício era o centro litúrgico da manutenção dessa paz. Sacrificar era o principal ato religioso por meio do qual os romanos se relacionavam com os deuses e garantiam a estabilidade do Império e a felicidade do povo (p. 18). Esta seria, portanto, a razão principal da perseguição aos cristãos: eles estariam prejudicando tal relacionamento por se recusarem a sacrificar, levando o Império a perder sua preferência diante dos deuses (p. 27). Assim, o ponto central da reflexão do capítulo inicial está em demonstrar que a perseguição aos cristãos não aconteceu por motivos de Estado, como defendido por historiadores como Pollock, Gibbon e Burckhardt, mas por motivos absolutamente religiosos, uma vez que os romanos praticavam uma forma de teologia política (p. 30).

O segundo capítulo, Júpiter no trono, apresenta a tentativa do imperador Diocleciano de superar a decadência econômica do Império. Entre suas ações estaria o enfrentamento do problema do cristianismo, uma religião cuja natureza era caracterizada pela ausência do sacrifício. Como tal crença não poderia ser assimilada ao sistema romano, e ao mesmo tempo não poderia ser ignorada, a solução seria eliminá-la (p. 44). Aqui Leithart retoma a ênfase no caráter religioso de seu Estado: imaginando ser um reformador da antiga ordem de Roma, Diocleciano assegurou uma ideologia religiosa com intensa propaganda imperial, associando a Tetrarquia com divindades romanas, além de incrementar o protocolo imperial com as exaltações monárquicas típicas do helenismo, tornando o imperador um deus a ser adorado e venerado (p. 52), um verdadeiro “filho unigênito de Júpiter” (p. 54).

A teologia política de Diocleciano, dissertada no capítulo anterior, é contrastada com o capítulo terceiro, Instinctu divinatus, no qual Leithart apresenta um resumo do contexto de ascensão de Constantino na Tetrarquia e o próprio final do sistema. Segundo o autor, Constantino teria dado início a uma nova teologia política ao recusar-se a oferecer sacrifício a Júpiter após a vitória diante de Maxêncio, o que contrariou frontalmente a tradição romana pregressa (p. 72). Com sua vitória na batalha e a nova postura diante de Júpiter, Constantino teria inaugurado uma teologia política sem sacrifício que marcaria toda a sua carreira (p. 73).

O quarto capítulo, intitulado Por este sinal, continua a desenvolver a biografia de Constantino, retroagindo para o controverso episódio da sua conversão ao cristianismo nas versões dos cristãos Eusébio de Cesareia (c. 265-339) e Lactâncio (c. 250-325), e do pagão Zósimo (c. 460-520). Aqui é reforçado o argumento da religiosidade dos antigos romanos, o que não era diferente com Constantino. Tanto ele quanto os outros membros da Tetrarquia faziam propaganda de sua piedade e acreditavam nela. O Senado romano, inclusive, publicou inscrições elogiando o imperador pela sua mente divina (p. 82-83). Leithart percebe um desenvolvimento na iconografia religiosa de Constantino, mantendo símbolos pagãos suficientemente ambíguos para serem aceitos tanto por cristãos quanto por pagãos, acrescentando lentamente elementos exclusivos do cristianismo como o Chi-Rho e a cruz (p. 84). Ou seja, ao analisar o evento da conversão de Constantino, o autor acredita que o imperador, acostumado a experiências místicas no passado, teria de fato visto algo, e interpretou a visão como um sinal divino (p. 86).

Finalmente, partindo de pesquisas em torno dos escritos de Constantino, o autor insiste que o imperador: 1) acreditava que Deus julgaria quem destruísse os cristãos, o templo vivo de Deus (p. 90); 2) pensava que Deus não se agradava das divisões da igreja (p. 92); 3) desejava uma atitude missionária da igreja aos outros povos (p. 94); 4) orava regularmente a Cristo (p. 98); e 5) teria escrito a oração à Assembleia dos Santos (p. 99), na qual afirmava ter recusado o sacrifício no Capitolino por ter entrado na fé que proclamava o fim do sacrifício (p. 102). É relevante ainda o fato de que Constantino foi enterrado em Constantinopla, na Igreja dos Apóstolos, sendo considerado um 13º apóstolo. Na opinião do autor, é provável que Constantino visse a si mesmo como um prelúdio do Segundo Advento de Cristo, o que não seria nada modesto (p. 102). Entretanto, para Leithart, Constantino era de fato um cristão. Falho, inconsistente na ética, mas um cristão (p. 105).

O capítulo quinto, Liberator ecclesiae, analisa o conteúdo das políticas de tolerância que viriam a ser publicadas em 313 e conhecidas como “Edito de Milão”. Segundo Leithart, essas políticas não foram nada mais do que a confirmação daquilo que já era uma tendência entre autores cristãos antigos – a defesa da liberdade de culto no Império. Isso significa que Constantino tornou-se um cristão “lactanciano” (p. 121), ou seja, adepto do argumento de Lactâncio a favor da liberdade de culto e de consciência religiosa. Constantino, nessa perspectiva, teria oferecido a todas as religiões “as mesmas chances” (p. 123). Tal política resultou em intensa ambiguidade de representações religiosas, tanto com elementos pagãos como cristãos, mas fundamentalmente na gradativa substituição dos deuses e símbolos pagãos por uma nova divindade (p. 130). Entretanto, há um fato ressaltado por Leithart que não deixa espaço para ambiguidades: Constantino foi grande construtor de igrejas e batistérios cristãos (p. 132). As basílicas por ele construídas eram denominadas “salas do trono do Imperador do Céu”, o que pode evidenciar que Constantino arrastava Cristo para o serviço do culto imperial; mas Leithart prefere interpretar a expressão como uma “confissão de subordinação ao Senhor maior”. Assim, “ele havia batizado o espaço público” (p. 138). A metáfora do batismo será importante para o autor, como se verá adiante.

O capítulo sexto, O fim do sacrifício, retoma a relação de Constantino com os cultos nos territórios do império: ao promulgar uma lei contra os sacrifícios, o imperador criou uma atmosfera que acabou por eliminá-los (p. 142), ao mesmo tempo em que atacava ideias consideradas heresia pelos Concílios cristãos, declarando-as ilegais. Com isso, produziu hostilidade tanto à heresia quanto ao paganismo (p. 144), produzindo uma sociedade marcadamente cristã com o passar do tempo. Para Leithart, todo espaço público é ocupado por algo – e esse algo não teria como ser religiosamente neutro. Constantino ocupou tal espaço com a fé cristã. Assim, a igreja foi tendo seu número ampliado por novos convertidos não pela coação, mas pelo exemplo e patrocínio da casa imperial (p. 158-159).

No capítulo sétimo, O bispo comum, Leithart explora a relação de Constantino com o Concílio de Niceia. Diferente da ideia de que ele teria “definido a ortodoxia”, comum em círculos teológicos e historiográficos, o autor apresenta os relatos de que ele teria tomado assento apenas após ter sido convidado pelos bispos (p. 167). Descreve ainda como Constantino foi implacável contra as heresias (especialmente o donatismo do norte da África). Na opinião do autor, ao convocar concílios e executar a coerção contra a heresia, Constantino não teria se tornado o chefe da igreja, mas apenas facilitado o trabalho dos bispos empenhados na mesma tarefa (p. 177).

O capítulo oitavo, Niceia e depois, é marcado pelo confronto mais direto com Yoder, para quem a igreja do século IV teria sido absorvida pela máquina de poder, perdendo seu senso crítico e profético (p. 192).5 Ao contrário das conclusões de Yoder, Leithart afirma que o Império é quem havia perdido a batalha contra a igreja: “a igreja não foi incorporada; foi vitoriosa” (p. 198). Defendendo a autonomia da igreja do tempo de Constantino, o autor lembra que muitos clérigos, como Atanásio – e mais tarde Ambrósio e Agostinho – foram muito críticos ao império, e que, mesmo entre os menos severos, a tentativa teria sido pela independência do trono de Roma (p. 199). Sustentando que os bispos cristãos não seriam tão facilmente cooptados, Leithart termina com uma metáfora: se Constantino beijou o rei Jesus, por que não deveria também honrar a noiva dele – a Rainha, a igreja cristã (p. 204)?

No capítulo nove, Sementes da lei evangélica, Leithart apresenta uma série de reformas legislativas promovidas por Constantino que teriam dado às leis romanas um direcionamento cristão, como a isenção fiscal às igrejas (comparável às concedidas a outras religiões), o uso de terminologia ambígua do Dia do Senhor (destacando o dies Solis como dia de descanso), e a abolição da crucificação (p. 217). Mas o argumento central está no endurecimento da legislação contra os espetáculos de gladiadores, iniciando um processo contínuo de desaprovação pública e contribuindo significativamente para a criação de um mundo sem sacrifícios. Leithart retoma a metáfora de que Constatino “batizou Roma” e então precisava desenvolver uma paideia, ensinando seu povo a viver a fé cristã (p. 220). O capítulo dez, Justiça para todos, continua a explorar o aspecto legislativo do Império, demonstrando um Constantino preocupado com os pobres, excluídos e até mesmo com os escravos. Mas o principal argumento: teria havido um gradativo aumento da influência cristã com a nomeação de cristãos para os cargos magistrados principais, favorecendo os bispos e tornando a igreja uma “classe governante cristã” (p. 244). Resumindo, Constantino teria iniciado a cristianização da lei romana (p. 250).

O capítulo onze, Um deus, um imperador, retoma a ideologia romana anterior a Constantino para demonstrar que houve de fato uma mudança após sua ascensão, mas em sentido diferente do que foi pretendido por Yoder e outros críticos. Leithart explora a retórica floreada dos panegiristas, que basicamente exaltavam com exagerados elogios os “feitos divinos” dos imperadores. Segundo ele, Constantino recebia o mesmo elogio antes de sua conversão. Mas algo teria mudado depois dela, o que começou a transparecer em 317, quando o panegirista Nazário evitou chamar o imperador de deus. Aqui o autor lembra que os panegiristas diziam apenas o que os imperadores esperavam ouvir (p. 256). Eusébio, por sua vez, lembrava Constantino de que ele era apenas um homem (p. 267). Outro indício de que o imperador passou por uma mudança comportamental depois de se tornar cristão foi o fato dele ter proibido a colocação de sua imagem em templos e não ter permitido que sacrifícios fossem feitos em sua honra (p. 268). Leithart conclui o capítulo defendendo a narrativa de Eusébio, normalmente tratado como alguém comprometido com o imperador: “ao invés de encaixar a igreja numa grandiosa narrativa romana de imperium, Eusébio estava tentando encontrar um lugar para o império dentro da história cristã” (p. 271).

O capítulo doze, Igreja pacifista?, é um ataque direto ao pacifismo propagado por Yoder. A tese do teólogo menonita era de que a igreja cristã primitiva teria sido pacifista, proibindo a participação nas guerras de César e que isso mudou somente a partir de Constantino (p. 271-278). Aqui Leithart se empenha em provar o contrário levantando o histórico de mártires militares como São Sebastião, os relatos do uso de violência por monges cristãos e os argumentos de teólogos como Tertuliano, Orígenes e Lactâncio. Para ele, a questão da guerra não tinha posição unânime no cristianismo, cuja restrição estava muito mais relacionada às práticas litúrgicas religiosas do exército do que à violência em si (p. 294). A conclusão de Leithart é que a igreja foi ambígua em relação à guerra antes de Constantino assim como foi durante seu reinado e continua sendo até hoje (p. 299).

A questão do pacifismo ou não da igreja está relacionado justamente à possibilidade dela se associar ou não ao Império, para o qual a violência é uma base sem a qual não é possível sustentar o poder. Se não havia uma contrariedade explícita da igreja para o uso da violência em “causas justas”, logo não se poderia falar de uma “queda” do cristianismo após Constantino. Nesse sentido, o capítulo treze, Império cristão, missão cristã, dá continuidade ao argumento contra Yoder de que a igreja não “caiu” no século IV (p. 302). Seriam os cristãos antigos contrários ao poder estatal? Para Leithart, não. O Novo Testamento e teólogos antigos como Tertuliano e Eusébio defendem a honra às autoridades a despeito de seus erros, devendo os cristãos orarem pelo imperador e pela paz (p. 305). Mas o ponto principal do capítulo é atacar a ideia de Yoder de que a igreja ortodoxa, sob Constantino, teria cessado as missões. Segundo Leithart, muitas tribos pagãs se convertiam ao cristianismo ao ingressarem nas fronteiras do império – significando que o método evangelístico do século IV, se não foi o envio de missionários para outros povos, foi a fusão constantiniana da fé com o império (p. 313). Enfim, neste capítulo o autor busca argumentos teológicos para fundamentar uma resposta positiva da igreja ao apoio do Império. Ele os encontra nas narrativas bíblicas das respostas dos judeus ao beneficiamento de imperadores como o faraó, Nabucodonosor ou Ciro. Diante dessa inesperada simpatia, a pergunta de Leithart é: o que a igreja deve fazer se o imperador tiver uma visão e decidir ajudar a construir um templo em Jerusalém, como fez Ciro da Pérsia (p. 321)?

O último capítulo, intitulado Roma batizada, apresenta as conclusões de Leithart a respeito da trajetória de Constantino e da relação da igreja com a nova situação sob a tutela do Império. Inicia com um resumo das benfeitorias e do caráter de Constantino, bem como do resultado para o cristianismo: o desfrute de magníficas construções e o aumento de prestígio, que atraiu novos membros por motivos diversos (tanto de fé como por benefícios). Leithart concorda sobre a ambiguidade da situação: a igreja está sob influência do imperador, mas rejeita a ideia de que tenha sido dominada por ele, a despeito da tendência de acomodação (p. 329). Entretanto, a mudança ocorrida não teria sido uma “queda”, mas teve um significado teológico (p. 330). É sobre tal significado que o autor se debruça neste capítulo.

Primeiro, Leithart retoma os argumentos de Yoder contra Constantino. A questão estaria em torno do fato de que o imperador trouxe à igreja uma nova eclesiologia, pois desde então seria possível haver duas igrejas: uma visível, que não precisava ser sincera porque possuía muitos pagãos convertidos por conveniência; e outra verdadeira e invisível, composta pelos eleitos, uma minoria fiel na instituição (p. 335). O problema é que essa situação produziu uma ética dupla: os crentes seguiriam uma vida piedosa no privado, mas poderiam matar os inimigos no público se tivessem vocação para trabalhar no Estado (p. 336). Isso seria uma heresia escatológica para Yoder porque Cristo venceu as potestades na cruz, cabendo à igreja resistir às seduções do poder, o que teria sido destruído pelo constantinianismo ao deslocar o centro da história da igreja para o império (p. 336-337). Ou seja, Constantino teria ido além de Cristo, que é insuperável na forma da fraqueza da cruz (p. 339). A crítica de Leithart a Yoder é que seu estudo da história seria generalizante e “monológico”. Ele recorda que sempre houve múltiplas vozes no discurso das igrejas (p. 342), o que é desconsiderado por Yoder e pelos anabatistas, para os quais o passado da igreja cristã era puro – o que funcionaria apenas na retórica de uma “queda” a partir de Constantino (p. 344).

Então Leithart oferece um relato alternativo para interpretar a trajetória de Constantino e da igreja cristã. Segundo o autor, a igreja batizou Roma, o que significava que que algo aconteceu, um limite foi cruzado: o Império tornou-se cristão em alguns aspectos. A metáfora do “batismo infantil” funciona bem aqui: seria apenas começo de algo a ser desenvolvido depois. Então Leithart toma argumentos teológicos da escatologia: Cristo libertou as pessoas dos “rudimentos do mundo” (stoicheia tou kosmou), segundo Paulo aos Gálatas (capítulo 4). Para o autor, tal expressão estaria tratando da sujeição judaica às leis dietéticas e sacrificiais impostas pela Torá. Como Paulo iguala judeus e gentios, os sacrifícios de animais estariam extintos tanto em Jerusalém como entre os gentios (fato ainda mais ressaltado porque Jerusalém fora destruída e os sacrifícios interrompidos em 70). Ou seja, para Leithart, stoicheia significa o fim dos sacrifícios. Teria sido uma vitória conquistada por Cristo no século I mas aprendida por Constantino apenas no século IV. O fim do jugo da lei significaria o fim dos sacrifícios (p. 348-350).

Este é o argumento central do livro, cujos indicativos já vinham sendo apontados desde o capítulo seis. O fim do sacrifício significou a emergência de uma política sem sacrifícios, “libertando Roma de sua infância” (p. 351). Uma vez que o sacrifício era o centro vital de Roma, e ele acabou, a Cidade Eterna precisou achar outro centro cívico, que veio a ser a igreja. No cristianismo havia outro tipo de sacrifício: as obras de misericórdia, uma cidade baseada no mútuo amor e serviço. Ou seja, para Leithart a igreja não caiu no século IV, mas foi “reconhecida e honrada precisamente como a verdadeira cidade” (p. 355).

Então Leithart aprofunda a metáfora do batismo. Após batizar, a igreja começa a ensinar Roma a “guardar o que Jesus manda”, servindo de exemplo para a cidade terrena. Mas então vem os problemas de como conciliar o poder secular com a proposta piedosa da fé cristã. Se Jesus e o Sermão do Monte são centrais para a teologia política cristã, e em seu ensino há afirmações como “dar a outra face ao inimigo” (que são constrangedoras para o exercício do poder), então a política cristã não pode ser violenta e coercitiva, mas exclusivamente pacifista (p. 356)? Nesse ponto se percebe a intenção de Leithart com o capítulo sobre a ambiguidade do pacifismo da igreja ao longo dos séculos. Então ele busca apoio no Antigo Testamento, cujas metáforas apresentam um Javé guerreiro da mesma maneira como profetas eventualmente falam de um Messias conquistador. No Novo Testamento também há metáforas militares, como a armadura de Deus distribuída aos crentes. Ou seja, a Bíblia não seria pacifista, ao menos em sua linguagem metafórica. Além disso, o relato bíblico não seria da passividade de Deus, mas de crescente atividade divina. A conclusão de Leithart vem na forma de uma pergunta: se Deus deu aos cristãos as mais poderosas armas, as espirituais, por que não permitiria que eles usassem também as inferiores, as terrenas (p. 359-361)? Ou seja, Leithart sugere que as metáforas bíblicas sejam tornadas literais na prática da política cristã.

Para Leithart, o ensino cristão teria muito a ensinar para os governantes, como a própria ética de Cristo no serviço às comunidades, razão pela qual ele termina com uma crítica à situação do Estado moderno, que: 1) não aceitou a igreja, renunciando ao modelo constantiniano; e 2) restaurou o modelo sacrificial exigindo o sacrifício dos seus cidadãos. Como não há mais Deus, o Estado se faz deus a si mesmo e o sangue do sacrifício, agora, é humano. A conclusão de tudo, segundo Leithart, se resume ao batismo. Para ele, é preciso que a atual civilização venha receber novamente o batismo para confessar que a cidade de Jesus é o seu modelo (p. 364-367).

A obra de Leithart é de cunho apologético. Sua ênfase está em uma política cristã com mais presença no Estado moderno, razão pela qual se debruça sobre a marcante experiência histórica da transição de uma igreja perseguida para uma igreja desejada no século IV. E a figura por trás de tal mudança é o imperador. O título da obra, portanto, é absolutamente adequado: em defesa de Constantino. Uma defesa que não foi imparcial: ao relativizar representações do imperador exageradamente “maquiavélicas”, o autor pende para certa idealização de sua figura, suavizando os aspectos sombrios de suas atitudes e caráter. Além disso, trata-se de uma apologia para o presente: em dados momentos Leithart não parece mais estar tratando de Roma, mas do imperialismo de Washington.

Tal viés, entretanto, não desmerece a obra. Termino com duas contribuições significativas de Leithart para a pesquisa da figura enigmática de Constantino. A primeira, sua atenção ao caráter do sacrifício na Roma antiga e a nova relação que surge a partir do cristianismo. É importante que se supere o anacronismo que eventualmente separa religião de política em análises dos fatos da Antiguidade. A pessoa na Antiguidade é, precisamente, um homo religiosus – para usar o termo cunhado por Mircea Eliade –, 6 o que é bem reforçado na obra de Leithart. A segunda, que a defesa de Constantino, por mais entusiasmada que seja, coloca um contraponto a visões igualmente estereotipadas, o que oportuniza sua exploração mais profunda e humanizada dessa figura emblemática da História Antiga, cujos atos repercutem até hoje. Enfim, é uma leitura válida.


Notas

3 Theopolis. Disponível em: https://theopolisinstitute.com/our-people/. Acesso em: 5 dez. 2022.

4 Segundo Leithart, o menonita Yoder foi o mais proeminente teólogo proponente do pacifismo. Estudou na Universidade da Basileia sob Karl Barth e Oscar Cullmann e ensinou no Associated Mennonite Biblical Seminary e na Universidade de Notre Dame. Ele teria sido o responsável “pela direção irrealista do pensamento cristão contemporâneo sobre política” (p. 13).

5 Uma das obras de Yoder referenciadas, e especificamente citada nesse capítulo, é YODER, John Howard. The Priestly Kingdom: social Ethics as Gospel. Notre Dame (EUA), University of Notre Dame Press, 1984.

6 Eliade cunhou o termo “homo religiosus” para se referir à pessoa das sociedades tradicionais, especialmente da Antiguidade, para a qual o mundo existe porque foi criado pelos deuses. Isso significa que a criação tem um propósito. O mundo não é opaco para o homo religiosus, pois ele faz sentido na perspectiva da ação divina. Homens e mulheres se concebem como parte da criação dos deuses, então o humano encontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos e sua existência é aberta para o mesmo – assim, ele nunca se percebe sozinho (ELIADE, 2008, p. 135-136).


Referências

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LEITHART, Peter. Em defesa de Constantino: o crepúsculo de um império e a aurora da cristandade. Brasília: Editora Monergismo, 2020.

Theopolis. Disponível em: https://theopolisinstitute.com/our-people/. Acesso em: 5 dez. 2022.

YODER, John Howard. The Priestly Kingdom: social Ethics as Gospel. Notre Dame (EUA), University of Notre Dame Press, 1984.


Resenhista

André Daniel Reinke – Doutor e mestre em Teologia (ênfase em História das Teologias e Religiões) pela Faculdades EST (São Leopoldo, RS). Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS). Bacharel em Desenho Industrial (habilitação em Programação Visual) pela Universidade Federal de Santa Maria (Santa Maria, RS). E-mail: andre.daniel.reinke@gmail.com


Referências desta Resenha

LEITHART, Peter. Em defesa de Constantino: o crepúsculo de um império e a aurora da cristandade. Trad. Natan Cerqueira. Brasília: Editora Monergismo, 2020. Resenha de: REINKE, André Daniel. Revista Historiador, n.15, p. 137-145, dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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