Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819) | Fernanda Pinheiro Domingos
Desde a década de 1980, o estudo das chamadas “ações de liberdade” se consolidou na historiografia da escravidão brasileira. Muitos foram os trabalhos publicados sobre a luta judicial pela liberdade e também foram recorrentes estudos sobre crime, família escrava, tráfico e outras questões que se valeram desses processos judiciais como fontes fundamentais para a análise do cotidiano e da agência de escravos, libertos e pessoas livres de cor. O livro de Fernanda Domingos Pinheiro, Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819), insere-se nesse campo já consolidado da história da escravidão, apresentando inúmeras informações que ainda não eram de amplo conhecimento dos pesquisadores do campo e levantando novas questões e perspectivas de análise sobre as relações entre direito, liberdade e escravidão. O livro apresenta uma pesquisa rigorosa e minuciosa sobre os significados e a precarização da liberdade no Império português, baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais ajuizados em Mariana e Lisboa. Nessa análise, a autora não deixa de lado nem os argumentos e formas jurídicas específicas que constituíram esses documentos, nem o debate acerca da vivência das pessoas de cor em sociedades escravistas em um sentido mais amplo.
Na introdução, Pinheiro explica o método de seleção dos casos e as opções metodológicas adotadas na pesquisa. Foram analisados 157 processos cíveis arquivados no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana e 47, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Os processos oriundos das diversas localidades, no entanto, não foram analisados separadamente. A autora preferiu fazer uma análise integrada ao longo dos capítulos, que seguem uma divisão temática e não geográfica. Essa escolha é bastante acertada, pois, como diz a autora, tanto a sociedade marianense quanto a lisboeta “participavam de um processo historicamente integrado” (p. 27) de expansão da escravidão no Império português. Além da justificativa dada pela autora, acrescento que essa abordagem permite colocar, lado a lado, duas instâncias de produção normativa – uma metropolitana e outra colonial -, mostrando como os mesmos institutos e categorias jurídicas adquiriam significados concretos e eram mobilizados de maneiras específicas em distintos contextos.
Em relação ao recorte temporal, o livro de Pinheiro também representa uma grande novidade no campo da historiografia do direito e escravidão. Grande parte dos trabalhos que analisam processos judiciais envolvendo escravos, libertos e pessoas livres de cor, no Brasil, focam-se, sobretudo, no século XIX. Ainda não são tão recorrentes trabalhos que utilizam processos judiciais para a análise das experiências de escravidão e liberdade durante o período colonial. Nesse aspecto, o livro de Pinheiro é pioneiro. Ademais, o estudo das chamadas “ações de liberdade” ainda não é um campo consolidado na historiografia sobre a escravidão em território metropolitano português. Assim, o livro preenche uma lacuna importantíssima tanto da historiografia brasileira quanto da portuguesa.
No primeiro capítulo, a autora apresenta um dos principais argumentos do livro: nas jurisdições portuguesas, havia uma diferença entre estatuto jurídico e condição social das pessoas. O estatuto jurídico seria a categoria na qual o direito enquadrava determinada pessoa, enquanto a condição social era a experiência efetiva de liberdade ou de escravidão. Por meio da análise de diversos processos judiciais, a autora identifica casos em que havia dissociação entre o estatuto jurídico e a condição social, como os coartados, alforriados condicionalmente, forros assoldados, libertados em parte, libertos que se endividaram para comprar a alforria. Por exemplo, havia casos em que as pessoas tinham título legítimo sobre sua liberdade (estatuto jurídico de livre), mas viviam em condições de dependência e submissão muito próximas àquelas da escravidão (condição social de restrição de liberdade). Ou seja, de acordo com Pinheiro, deter um título de liberdade não necessariamente implicava viver como livre. Ao seguir desenvolvendo esse argumento, ela identifica o estatuto jurídico com o título de domínio e a condição social com a posse e o usufruto da liberdade.
A expressão “senhor e possuidor” significava que um indivíduo tinha o domínio (título de propriedade) e a posse (usufruto) de um determinado bem, o qual, por vezes, poderia também constituir uma propriedade de alguém e ser desfrutado por outra pessoa. Deste outro modo, o coartado tinha a posse da sua liberdade porque dela poderia usufruir durante o período do seu corte, mas não detinha seu domínio, pois seu título (a alforria) somente seria alcançado com a total satisfação do seu preço. Por isso viviam “entre a escravidão e a liberdade” (como explicitado anteriormente), numa situação de ambiguidade – com estatuto jurídico de escravo e condição social de liberto. (PINHEIRO, 2018, p. 171)
A distinção analítica entre estatuto jurídico e condição social, estabelecida por Pinheiro, contribui para a compreensão de aspectos fundamentais da escravidão no Império português. Um deles diz respeito a situações ilegais de escravidão e reescravização. Os trabalhos sobre processos judiciais envolvendo escravos, libertos e pessoas livres de cor tiveram como tônica principal, em um primeiro momento, a busca pela liberdade e por direitos. É sintomático desse movimento a denominação que os historiadores deram a esses documentos: “ações de liberdade”. Porém, nos últimos anos, o foco da historiografia tem recaído sobre as inúmeras práticas de reescravização e a situação de precariedade da liberdade evidenciadas por aqueles mesmos documentos. Assim, ao defender que havia uma separação entre estatuto jurídico e condição social, Pinheiro chama atenção para esse debate e, acertadamente, argumenta que a experiência de liberdade, no Império português, era extremamente precária.
Por outro lado, essa separação pressupõe uma dicotomia entre direito (estatuto jurídico) e realidade (condição social) que vem sendo reconsiderada por distintas correntes historiográficas. Esses trabalhos convergem para uma compreensão de que direito e sociedade são mutuamente constitutivos. Isto é, além de ser um produto das relações sociais, o direito atua constituindo os termos em que se dão essas mesmas relações. As relações sociais, como as de trabalho e dependência, são constituídas por relações jurídicas, ainda que não oriundas, diretamente, de lugares solenes como, por exemplo, os títulos de propriedade. Essa concepção guarda mais proximidade com o direito português do Antigo Regime. O chamado ius commune (direito comum) privilegiava a manutenção da ordem e do status quo. No que diz respeito ao estado das pessoas, a manutenção do status quo significava privilegiar o “viver como”, ou seja, reconhecer judicialmente o modo efetivo em que a pessoa vivia. Daí a importância do reconhecimento social, comprovado por depoimentos testemunhais. Esse “viver como”, esse modo de vida, costumava ser o que prevalecia sobre títulos de escravidão e liberdade. Em outras palavras, o modo de vida (condição social) se constituía como direito (estatuto jurídico). Por isso, no ius commune, a posse não estava tão marcadamente separada do domínio, como ocorre no direito de propriedade liberal, mas era um dos fatores determinantes de sua constituição. Essa situação é identificada por Pinheiro em diversos dos casos analisados. Daí que, em seu texto, apareçam locais de produção normativa – os processos judiciais – em que o intricamento entre direito e realidade social fica evidente.
Já no segundo capítulo, a autora analisa “ações cíveis de redução ao cativeiro”. Nele, Pinheiro parte de uma crítica à historiografia, que, por muitos anos, focou-se na consecução da liberdade propiciada pelos processos judiciais, não dando tanto destaque ao considerável número dessas ações que, ao invés de libertar, procuravam escravizar e reescravizar. Daí adviria a necessidade de repensar a utilização do termo “ações de liberdade”. Ao longo desse e dos próximos capítulos, Pinheiro propõe uma nova classificação para esses processos judiciais.
Outra crítica importante levantada pela autora é a de que, durante muito tempo, parte da historiografia argumentou que a possibilidade de reescravização – por exemplo, por ingratidão – era suficiente para propagar temor e sustentar as relações de dependência na sociedade escravista. Porém, o que a autora mostra é que, mais do que uma ameaça, a reescravização e a revogação da alforria foram práticas largamente utilizadas pelos senhores, frequentemente, com a colaboração ou a complacência dos tribunais. Como Pinheiro evidencia ao longo do capítulo, as tentativas de ampliação do grau de autonomia dos libertos e o consequente enfraquecimento dos laços de dependência que ainda os ligavam aos antigos senhores estavam na origem de muitos processos judiciais. Contra essas tentativas, os senhores costumavam ajuizar ações mobilizando o argumento da ingratidão.
A autora analisa, ainda, o uso estratégico dos diferentes tipos processuais. Sob o rótulo de “ações de liberdade”, as especificidades de cada tipo processual acabaram sendo obscurecidas. Ao levar a sério essas especificidades, Pinheiro mostra que os conhecimentos jurídicos vernaculares sobre os procedimentos judiciais eram úteis para a formulação de estratégias que pudessem beneficiar as partes envolvidas em termos de custos, duração e exigência probatória.
No terceiro capítulo, Pinheiro trata das “ações cíveis de manutenção da liberdade” – que tinham como objetivo deter ameaças de reescravização, resguardando a posse e o domínio da liberdade – e “ações de restituição de liberdade” – que visavam ao reestabelecimento do estado de liberdade. Nesse capítulo, a autora também ressalta que a existência de documentos escritos que comprovassem a liberdade poderia ser determinante para uma decisão judicial favorável. Por isso, havia um esforço dos libertandos para conseguir tais documentos. Mais uma vez ressaltando a grande variedade de procedimentos judiciais mobilizados pelos libertandos, Pinheiro argumenta que, muitas vezes, o ajuizamento de processos tinha o objetivo de produzir documentos escritos que comprovassem e assegurassem a liberdade. Esses documentos poderiam ser, por exemplo, a sentença ou um mandado de manutenção na liberdade, que seriam utilizados em momentos em que a pessoa se sentisse ameaçada de reescravização.
Outro ponto de destaque desse capítulo é a questão do caráter ambíguo do depósito. Ao mesmo tempo em que ser colocado em depósito poderia significar o início da recondução do liberto ao cativeiro e uma dificuldade para seu autossustento, esse procedimento jurídico também poderia significar uma maneira de viver em liberdade enquanto o processo tramitava. Pinheiro ressalta, novamente, o uso estratégico de diferentes tipos processuais e mostra como eles foram mobilizados de distintas maneiras em Mariana e Lisboa. Para a autora, fazia parte da estratégia de seleção do tipo processual levar em consideração o “estilo do foro”. Já que não havia uma regulação legal explícita e sistemática dos procedimentos, as partes procuravam seguir as regulações jurisdicionais de cada localidade. Desse modo, as ações de definição de estatuto jurídico acabam por nos mostrar, concretamente, o funcionamento mais geral do direito português no Antigo Regime: existia um arcabouço normativo comum a todo o Império, mas que tinha uma grande capacidade de flexibilização e adaptação às condições locais de aplicação das normas.
No quarto e último capítulo, Pinheiro trata das “ações de extinção do cativeiro”, que objetivavam a declaração judicial da liberdade com base na legislação especial. Um dos destaques desse capítulo é uma análise detalhada dos processos ajuizados perante os tribunais de Lisboa. Parte essencial dessa análise é a discussão sobre a centralidade do contrabando e da escravização ilegal na metrópole, o que, argumenta a autora, prolongou a existência da escravidão para além do que se poderia esperar com a publicação, pelo governo pombalino, dos alvarás de 1761 e 1773. O primeiro dos alvarás proibia o transporte de escravos para o reino e declarava livres todos os que aí entrassem. Já o segundo determinou a liberdade dos escravos de quarta geração e daqueles nascidos após a publicação do alvará. Essa legislação, no entanto, foi burlada pelos mais diversos mecanismos. Na luta contra essas práticas de escravização ilegal, as Irmandades dos Homens Pretos de Lisboa foram fundamentais. Datando de pelo menos o século XVI, os pedidos judiciais de alforria encabeçados pelas Irmandades se referiam a práticas de “mau cativeiro”, como, por exemplo, maus tratos e castigos excessivos. Com a promulgação dos alvarás pombalinos e um fortalecimento de discursos jusnaturalistas, no final do século XVIII e início do século XIX, as Irmandades passaram a fundamentar seus pedidos não mais em noções de “mau cativeiro”, mas de “cativeiro injusto”. Para a autora, essa mudança no argumento e sua recepção pelos tribunais portugueses feriu, com golpe de morte, a legitimidade da escravidão em território metropolitano.
Já em Mariana, fundamentar processos judiciais com base em legislação especial era algo menos frequente. Houve, por exemplo, casos de libertandos que pleitearam a liberdade com base em sua ascendência materna indígena. Porém, tais processos não costumavam invocar, de maneira explícita, a legislação que libertou os indígenas na América portuguesa, em 1755. Nos processos de Mariana, tampouco foram explicitamente invocados os alvarás pombalinos de 1761 e 1773.
O uso estratégico de procedimentos judiciais também é tratado nesse capítulo, concedendo-se especial atenção aos diferentes resultados que poderiam advir da adoção de ritos sumários ou ordinários. Em Lisboa, no século XIX, houve um aumento considerável do número de ações sumárias ajuizadas pelas Irmandades. Esse aumento pode estar ligado às especificidades desse rito, já que as Irmandades foram exitosas em convencer os juízes de que, em ações sumárias, o ônus da prova do domínio deveria recair sobre os supostos senhores, o que as isentava de apresentar provas robustas em prol da liberdade. Já na América portuguesa, Pinheiro mostra que os ritos sumários eram, em geral, menos frequentes e costumavam ser precedidos de autorizações do governador. Por sua vez, essa menor frequência poderia estar relacionada a uma inclinação mais estrita dos juízes no sentido de discutir estatutos jurídicos em processos ordinários e, portanto, com ampla apresentação e debate de provas e argumentos.
Nas considerações finais do trabalho, Pinheiro retoma os argumentos dos capítulos anteriores e argumenta que as peculiaridades das ações em Mariana e Lisboa podem ser explicadas pelas formas que a escravidão adquiriu nessas diferentes localidades. Em Lisboa, havia uma pressão para a conversão da mão de obra escrava em trabalhadores livres. Ademais, havia uma disseminação de concepções jusnaturalistas segundo as quais a liberdade era a condição natural dos homens. O ambiente mais propício à contestação da utilização da mão de obra escrava teria, assim, refletido em uma maior tolerância dos tribunais a procedimentos sumários e a interpretações extensivas da legislação pombalina propostas pelas Irmandades. Em Mariana, por outro lado, a escravidão não estava sob ameaça, pelo contrário, era o esteio daquela sociedade. Assim, cada pleito pela liberdade deveria ser minuciosamente investigado e, daí, a predominância de processos ordinários. Também devido ao caráter estrutural que a escravidão assumia na América portuguesa, as autoridades judiciais eram mais cautelosas ao abordar temas como o cativeiro injusto e ilegal.
Assim, o livro de Pinheiro aborda questões importantíssimas para o avanço das discussões historiográficas sobre direito e escravidão no Império português e, mais tarde, no Brasil. Ele se insere na linha das produções mais recentes sobre o tema, que visam demonstrar a precariedade da liberdade, a disseminação de práticas de escravização e reescravização ilegais e o engajamento de agentes estatais nessas práticas. Além de todas essas contribuições historiográficas, há uma questão que emerge da análise da autora e que merece especial atenção.
Muitas vezes, o direito é visto como algo que se origina da legislação escrita, é explicitado pelos textos doutrinários e é aplicado pelos tribunais. Quando doutrina e jurisprudência não se adéquam à legislação, ou quando aplicam normas que não foram previstas em lei, costuma-se interpretar esse fenômeno a partir da categoria do “costume” ou, simplesmente, taxá-lo como contrário ao direito. O que o livro de Pinheiro nos mostra é que conceber o direito como uma criação exclusiva das leis, explicitada pela doutrina e meramente aplicada pelos tribunais tem pouca relação com a historicidade das normas. Normas não são fruto exclusivo da legislação. Há diversas outras instâncias de produção normativa e, como o livro evidencia, os processos judiciais são uma delas. A autora destaca a imensa variedade de categorias jurídicas e arranjos de trabalho e dependência que eram produzidos e disputados nos tribunais. Era nesses debates judiciais que ocorria a produção normativa, ou seja, era neles que institutos jurídicos eram criados e adquiriam significados concretos.
O livro nos diz muito sobre como a produção normativa se dava no Império português. Como ressalta a autora, havia um arcabouço normativo bastante extenso e variado, cujos pressupostos eram compartilhados nas jurisdições do Império. Porém, esse arcabouço normativo compartilhado estava sujeito às “circunstâncias particulares dos fatos ocorridos em cada caso ou localidade” (p. 233). Daí a importância de ampliarmos a perspectiva em relação aos lugares da produção normativa. A aquisição de significados específicos pelas normas jurídicas era uma característica própria do ius commune. Por isso, mais do que ficarmos amarrados à letra estrita da lei, em nossas análises, melhor seguirmos o exemplo de Pinheiro e tratar os processos ajuizados perante os tribunais portugueses e brasileiros não apenas como instâncias de aplicação da lei e arenas de disputas por direitos, mas também como locais de produção de normas, categorias e institutos jurídicos.
Referência
PINHEIRO, Fernanda Domingos. Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819) Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2018.
Resenhista
Mariana Armond Dias Paes – Doutora pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora no Max Planck Institute for European Legal History e no Cluster of Excellence “Beyond Slavery and Freedom”. E-mail: mdiaspaes@gmail.com
Referências desta Resenha
PINHEIRO, Fernanda Domingos. Em defesa da liberdade: libertos, coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720- 1819). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2018. Resenha de: PAES, Mariana Armond Dias. Produzindo liberdade, escravidão e normas no Império Português. Revista de História. São Paulo, n. 179, 2020. Acessar publicação original [DR]