Em defesa da honra: moralidade/ modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940) | Sueann Caulfield

Os leitores que já conheciam os artigos de Sueann Caulfield editados no Brasil certamente aguardavam com ansiedade a publicação completa do seu estudo, elaborado originalmente como uma tese de doutorado na New York University. No livro Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940), mais uma vez temos a expressão da sensibilidade da autora — que em antropologia poderíamos arriscar chamar de etnográfica — para tratar de temas como a honra e também de sua grande capacidade de articular inúmeras fontes e referências bibliográficas. Vale mencionar que o tipo de abordagem empreendido aproxima esse estudo de uma série de outros que nos últimos anos têm se caracterizado por privilegiar uma relação profícua entre história e antropologia. A natureza das questões propostas e a perspicácia na análise dos dados tornam a leitura do livro obrigatória não apenas para aqueles que se interessam pela história a partir da perspectiva das relações de gênero, mas para todos que querem compreender com mais profundidade o Brasil da primeira metade do século XX.

O estudo trata da honra sexual a partir do grande interesse que esse tema provocava na primeira metade do século XX no Brasil. Esse interesse aparecia expresso em diversos debates públicos e também, de uma forma mais particular, nas queixas que chegavam ao sistema jurídico-policial envolvendo vários tipos de delitos que contrariavam a moral sexual vigente. Para se ter uma idéia da magnitude do fenômeno, Caulfield revela que durante as décadas de 1920 e 1930, anualmente, cerca de quinhentas famílias procuravam a polícia da cidade do Rio de Janeiro para denunciar o defloramento de suas filhas e tentar algum tipo de reparação do mal. Os casos, sobretudo aqueles mais violentos, atraíam a atenção não apenas dos juristas, policiais, advogados, mas também da opinião pública em geral. E, se a importância da honra sexual parecia inquestionável, as concepções sobre o que ela de fato representava variavam bastante.

Sua análise, de várias maneiras, dá prosseguimento à pesquisa realizada por Martha de Abreu Esteves e publicada no livro Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989). Na verdade, o diálogo efetivo entre as duas obras e o fato de Caulfield analisar o período imediatamente posterior àquele investigado por Esteves fazem com que, por um lado, possamos contar com análises de crimes como defloramento, estupro e atentado ao pudor, que recobrem todo o período que vai da passagem do século até 1940. Por outro lado, temos dois trabalhos que, em vez de meramente se justaporem, aprofundam o estudo do tema em questão a partir de diferentes perspectivas.

O que mais se destaca no livro de Caulfield é a demonstração de como a noção de honra sexual, sujeita a múltiplas definições, impregnava e muitas vezes definia a vida cotidiana da população e também os debates públicos em torno da nação brasileira e sua modernização. A base das discussões empreendidas pelas autoridades políticas, religiosas, profissionais era a relação entre a importância da honra na manutenção da família e desta no futuro da nação. As grandes transformações decorrentes do processo de modernização em curso na época só seriam absorvidas de maneira positiva se houvesse garantias de algum tipo de estabilidade. A honra, baseada na honestidade sexual das mulheres, se constituía no pilar de sustentação desse sistema que, para todos os efeitos, se apresentava como fundamentado nas diferenças estabelecidas pela natureza e que prescreviam relações desiguais em termos de gênero, classe e raça.

Caulfield mostra que a partir de 1937, com Getúlio Vargas no poder, a relação entre honra sexual e intervenção do Estado em prol da manutenção de uma ordem social baseada nas diferenças se torna cada vez mais importante. Insiste-se em uma idéia de honra nacional, enraizada na moral pública e na família, que conformaria justamente o tecido social capaz de dar sustentação a um Estado que pressupunha uma homogeneidade a todo custo.

O capítulo 1 dá início ao empreendimento, realizado ao longo de todo o livro, de recuperação dos debates jurídicos em torno do conceito de honra. Caulfield mostra de forma exemplar como havia inúmeras variáveis que orientavam esses debates, desde a posição política de cada jurista, passando pelas suas concepções a respeito da evolução da sociedade, até chegar ao papel que caberia ao Estado na regulação dos comportamentos. A contextualização das discussões em relação às grandes mudanças que assolavam o país e, em particular, as disputas entre as diferentes correntes que orientavam o direito no Brasil certamente são alguns dos pontos mais relevantes. Contudo, em nenhum outro momento, o tom dos debates fica tão claro quanto no problema da definição da virgindade — tema que mobilizou de modo contundente juristas e médicos durante algumas décadas.

O estudo do hímen em virgens, prostitutas, mulheres casadas ocupou eminentes profissionais como Afrânio Peixoto, que publicou uma série de trabalhos sobre o assunto a partir da observação de 2.701 casos entre 1907 e 1915. Crítico severo da ‘himenolatria’ que assolava o país, sua preocupação era desmantelar as concepções errôneas sobre a relação entre a virgindade e a morfologia do hímen, que levavam a diagnósticos falsos por parte dos legistas nos exames médicos obrigatórios e prejudicavam a ação da Justiça. Peixoto estava do lado daqueles que defendiam que a fixação dos juristas na virgindade fisiológica (baseada na integridade do hímen) em vez da virgindade moral (fundada na honestidade do comportamento) era um sintoma do atraso nacional. Estava criticando autoridades como Francisco José Viveiros de Castro e vários de seus contemporâneos, que tinham elaborado as leis brasileiras no início do período republicano. Para estes, empenhados em reforçar as tradições católicas e patriarcais, a preocupação com a virgindade e a honra sexual, ao contrário, era um indicador do progresso moral da nação.

O capítulo 2 é reservado a uma espécie de panorama do período que tem como foco a honra nacional. Construindo uma contextualização interessada e, em função disso, original e eficaz, a autora toma como ponto de partida um evento que, a princípio, pareceria irrelevante para o tema em questão. Trata-se da visita dos reis da Bélgica à cidade do Rio de Janeiro em setembro de 1920. Considerando diversas fontes de informação sobre o evento, Caulfield nesse momento faz com que tenhamos acesso às imagens sobre a honra nacional de uma maneira mais refinada e concreta. Nos conflitos em torno de como a cidade — e também o país — deveria ser apresentada aos soberanos estrangeiros, ficava evidente, por um lado, que a honra nacional estava em jogo e, por outro, que havia grandes diferenças entre o pensamento das elites e o comportamento da grande maioria da população no que se refere às demonstrações concretas de afirmação da honra. Em termos práticos, tiveram destaque os esforços pela ‘civilização’ e ‘higienização’ da cidade, que colocavam em cena conflitos relacionados à ocupação do espaço público por indivíduos ‘indesejáveis’ e por um número cada vez maior de mulheres. Estas últimas já há algum tempo faziam da rua o seu espaço de trabalho e sociabilidade, o que parecia não ser percebido ou aceito pelas autoridades. Contudo, o mais fascinante naquilo que se produziu em torno da visita real certamente foi a explicitação de como as concepções, muitas vezes divergentes, de raça, de família e de relações de gênero conformavam as bases socioculturais de um projeto para a nação.

O capítulo 3 apresenta com maior riqueza de detalhes o debate jurídico em torno da honra a partir da década de 1920, considerando, dentro de um leque de transformações mais abrangentes, um relativo impulso nos movimentos de emancipação feminina. Cada vez mais o comportamento de mulheres tidas como modernas, liberais ou emancipadas preocupava os juristas que se detinham sobre a regulação da moral sexual. Aos seus olhos, as moças não se comportavam de maneira a cumprir com os padrões de honra e respeitabilidade vigentes. O argumento de Caulfield, porém, é o de que o descompasso entre as normas da elite e a vida cotidiana das classes trabalhadoras já estava em curso há muito tempo. Relações sexuais antes do casamento, uniões consensuais e famílias chefiadas por mulheres não eram fenômenos radicalmente novos. Mas, naquele momento, passavam a chamar mais a atenção em virtude das pressões demográficas, políticas, sociais e culturais que configuravam uma atmosfera de instabilidade, especialmente sensível às ameaças de dissolução da família e de rompimento do modelo de relações de gênero mais tradicional. Diante disso, restava aos juristas decidir se as noções de honra sexual que haviam herdado de seus antecessores ainda poderiam ser aplicadas às mulheres de seu tempo. Além disso, vinha à tona a questão de como ficaria a honra da nação, baseada na família e na moral sexual, se as normas a partir das quais esse sistema se sustentava estavam sendo desafiadas.

Uma passagem especialmente interessante desse capítulo consiste em uma associação entre as mulheres e ‘a massa’. Em decorrência do quadro de apreensões quanto ao futuro e do diagnóstico dos problemas mais significantes, empreende-se um grande movimento de regeneração do país. Profissionais de diversas áreas se juntam aos homens de Estado em um amplo projeto de saneamento e civilização. Os crimes passionais eram parte dos problemas estudados com afinco. Os autores que participaram de uma importante discussão ocorrida em 1933, recuperada por Caulfield, sobre sensacionalismo na imprensa em torno desses crimes, deixariam evidente como ‘a massa’ e também as mulheres precisavam de uma orientação moral que não eram capazes de ter por si mesmas. Assim como a mulher, a massa era descrita pelo predomínio da emoção, pela sujeição a influências externas e pela vulnerabilidade à degeneração, ao passo que os intelectuais apareciam como “homens racionais responsáveis pela ordem social” (Caulfield, 2000, p. 179). A estes caberia ditar regras, que iam desde a educação moral até a regulamentação dos casamentos pelo Estado, que levassem ao caminho seguro da civilização.

Nos dois últimos capítulos do livro, a autora se detém na análise de 450 inquéritos e processos envolvendo crimes ocorridos entre 1918 e 1940. Sem deixar de fazer as devidas ponderações ao uso desse tipo de fonte, demonstra como, por meio dos depoimentos de vítimas, réus e testemunhas, podemos vislumbrar como os indivíduos lidavam com a noção de honra no seu cotidiano. Caulfield recorre ao tratamento estatís-tico dos casos — o que permite chegar a importantes descobertas —, ao mesmo tempo que consegue pôr em relevo aspectos particulares, que nos dão indícios dos significados dos eventos para os envolvidos. Contudo, às vezes, a brevidade com que alguns casos são apresentados faz lamentar que não tenha se detido mais em análises individualizadas.

A autora esclarece que esses eventos envolvem pessoas das classes menos favorecidas da população. Com exceção de quatro casos, as demais moças envolvidas foram consideradas ‘miseráveis’, o que garantia, na prática, a intervenção do Ministério Público. Esse dado — ao lado das informações sobre a ocupação delas mesmas e dos pais, dos locais de moradia, do baixo índice de alfabetização e da cor — permite saber que se tratava de famílias de classes populares.

No capítulo 4 temos a descrição das diversas estratégias empreendidas pelos envolvidos nos casos analisados. É possível descobrir, por exemplo, como os acusados e vítimas lidavam com as noções de honestidade sexual feminina, de forma que, embora algumas vezes se aproximassem das concepções pregadas pelos juristas, na maioria dos eventos, apresentavam opiniões e comportamentos que não se coadunavam com o que era prescrito por eles. Segundo Caulfield:

Esses processos contêm valores que eram contraditórios segundo a lógica das autoridades jurídicas. A ‘himenolatria’ que, de acordo com os juristas, caracterizava a ‘moral média’ da sociedade brasileira aparecia nos processos lado a lado com a disposição dos acusados para aceitar uniões consensuais e para formar lar e família com mulheres que não fossem mais virgens, o que era considerado imoral aos olhos dos homens da lei (2000, pp. 218-9).

Por meio dos depoimentos das moças chegamos a saber que a procura pela Justiça era muitas vezes uma maneira de tentar resolver uma situação incômoda para a própria vítima ou para sua família. Isso implicava a necessidade de fazer o acusado cumprir as promessas de casamento que tinha feito e a reparação da situação publicamente, frente a parentes, vizinhos, amigos. Não é à toa que grande parte dos casos se resolvia com a efetivação do casamento. É de se notar também que o uso da força física raramente foi mencionado. De fato, o defloramento parecia acontecer mais freqüentemente em situações em que já havia um relacionamento precedente e a moça teria sido ‘seduzida’ pelo parceiro. Essa passividade, contudo, é contrastada com os depoimentos que descrevem as mulheres como sexualmente ativas e ‘liberadas’ — dado que as prejudicava no andamento do processo. Caulfield deixa claro também como muitas vezes eram as mães, e não os pais, as responsáveis pelas filhas e pela manutenção da honra da família. Esse é mais um elemento que contribui para mostrar como os modelos de família das classes trabalhadoras diferiam das concepções idealizadas pelas autoridades. Além disso, revela como, em muitas ocasiões, as disputas se davam não entre as moças e os acusados de defloramento, mas entre elas e seus pais. Ávidas por liberdade e autonomia, recorriam à perda da virgindade como uma forma de fugir do controle parental e iniciar uma nova etapa de suas vidas.

Enquanto os juristas interpretavam a modernidade como uma ameaça à honra das jovens, elas próprias redefiniam constantemente a sua percepção sobre honra e moralidade, em função de um contexto de significativas transformações sociais. Mesmo assumindo comportamentos reprovados pelas autoridades, elas demonstravam que seguiam um código bem definido de respeitabilidade. A relação entre os valores tradicionais e as formas de lidar com as mudanças é resumida pela autora na seguinte passagem:

Com seu comportamento e senso de honra, essas jovens, ao mesmo tempo que reproduziam a vida de sua mãe e avós, respondiam às novas exigências da vida numa cidade em constante transformação.

Ou seja, essas mulheres buscaram novos espaços públicos de lazer, apoderaram-se de algumas das imagens disponíveis sobre a ‘mulher moderna’ e introduziram uma nova linguagem sobre liberdade e desejo em sua vida afetiva e suas relações sexuais. Ao mesmo tempo, elas mantiveram os padrões tradicionais de relações pré-nupciais, de uniões consensuais e de famílias chefiadas por mulheres, assim como das estratégias de sobrevivência e redes comunitárias centradas na ocupação dos espaços públicos pelas mulheres pobres (Caulfield, 2000, p. 247).

No capítulo 5 a autora se detém na importância da cor no andamento dos processos e revela que, ao mesmo tempo que ofendidas, acusados e testemunhas reconheciam a hierarquia racial vigente, tinham aversão a explicitar os preconceitos raciais. É notável também que nos registros quase sempre era atribuída uma caracterização de cor à vítima, o que, segundo Caulfield, só acontecia esporadicamente no que se refere aos réus e quase nunca em relação às testemunhas. Outro dado que merece destaque é a relativa endogamia racial que os documentos revelam. Computando 295 casos em que houve atribuição de cor a ambos os parceiros, em 60% deles a ofendida e o réu foram classificados na mesma categoria racial. No caso das moças brancas, 82% acusaram homens brancos e apenas 3% acusaram homens negros. Nos casos inter-raciais, 82% envolveram um parceiro pardo. No que diz respeito à importância da cor nos veredictos, a investigação revelou um percentual mais alto de homens ‘pretos’ nos julgamentos e de homens ‘brancos’ nas investigações policiais, o que sugere que a cor do réu influenciava na probabilidade da pronúncia. No que se refere às vítimas, quanto mais escura a sua cor, menores eram as probabilidades de pronúncia e de condenação do réu. A noção de honra sexual dava margem a que as autoridades judiciais mantivessem as distinções de cor e de classe.

Alguns outros aspectos também orientavam o desfecho dos casos. Quanto à alfabetização, as mulheres alfabetizadas tinham uma proba-bilidade maior de prosseguimento dos casos e mesmo de condenação do acusado. Da mesma forma, a profissão do homem era relevante. À medida que sua categoria profissional aumentava, a probabilidade de condenação diminuía. A autora afirma que:

Esses resultados sugerem que os preconceitos de cor das autoridades judiciais pesavam na decisão de punir os homens de cor mais escura que ofendessem a honra de uma mulher de cor mais clara, enquanto reforçavam o antigo padrão que permitia que os homens brancos tivessem, impunemente, relacionamentos sexuais com mulheres de cor mais escura e de condição social mais baixa. De qualquer modo, os resultados não demonstram a celebração ou o incentivo, por parte dos juristas, à miscigenação supostamente generalizada no Brasil (Caulfield, 2000, pp. 306-7).

No epílogo temos uma passagem bastante ilustrativa de como se seguiriam os comportamentos das classes trabalhadoras e as atitudes das autoridades diante deles no que se refere à honra sexual no decorrer da década de 1940. Caulfield analisa a carta de uma mulher, enviada ao presidente Vargas, reclamando que o companheiro a tinha abandonado após seis anos de vida em comum. Por esse exemplo, percebemos como a imagem de um presidente paternalista e a inspiração do Estado na família se tornariam facetas cada vez mais visíveis e características do projeto nacionalista em curso naquele momento. Contudo, embora a honra sexual e a família representassem bases culturais importantes, a pressão das mudanças fez com que também ocorressem adaptações diante de fatos considerados irrevogáveis. Esse foi o caso, por exemplo, da restrição do acesso das mulheres ao mercado de trabalho, que seria revista na década de 1940.

A análise feita no epílogo, na verdade, reproduz a perspectiva utilizada em todo o livro, que se centra na articulação entre a noção de honra sexual e as reflexões da época em torno da nação. Caulfield consegue mostrar, de maneira sedutora e convincente, que uma configuração singular de idéias e valores em torno da honestidade sexual das mulheres e da reprodução dos modelos de família e de relações de gênero e de raça, tradicionalmente defendidos pelas elites, dava sustentação à expansão das ideologias nacionalistas. Não era sem propósito que durante o governo Vargas a evocação da família e da honra por parte dos homens públicos, juristas e médicos se tornaria uma constante. Essa faceta dos regimes autoritários tem felizmente, nos últimos anos, merecido a atenção dos pesquisadores, o que tem levado a uma compreensão mais refinada dos acontecimentos não só no Brasil. Um exemplo, que freqüentemente me veio à memória durante a leitura de Em defesa da honra, é o livro consagrado de Francine Muel-Dreyfus intitulado Vichy et l’éternel féminin: contribuition à une sociologie politique de l’ordre des corps (Paris, Seuil, 1996). Nesse estudo, Muel-Dreyfus sugere que o mito do eterno feminino — centrado na idéia de que a mulher encampa a garantia do patrimônio hereditário e moral da pátria por estar mais próxima da natureza e mais distante do mundo moderno corrompido — foi uma base de sustentação eficaz para as reformas empreendidas pelo Estado francês no regime de Vichy no início da década de 1940. E, mais do que isso, revela como a percepção em torno do masculino e do feminino estrutura todo o imaginário da vida social e, portanto, também da ordem política.

Contudo, talvez o aspecto mais difícil a ser enfrentado nesse tipo de investigação se refere a como lidar com a natureza fluida das categorias em jogo. A noção de honra, por exemplo, assim como a de ‘eterno feminino’, é uma categoria que às vezes parece ser tão abrangente que não conseguimos apreender o seu sentido, ficando a sensação de que ela pode tanto conter de tudo um pouco quanto parecer vazia. Esse comentário tem como objetivo chamar a atenção para a distância que pode haver entre a noção de honra tal como é definida nas leis e empregada pelos juristas na sua prática — o que muitas vezes já implica diferentes conteúdos — e a evocação da honra nos debates públicos sobre o futuro da pátria, por exemplo. Quando se está nesse segundo plano, fica mais complicado saber do que se trata. Caulfield é sensível para perceber essas distinções, mas talvez pudesse ter problematizado mais essas passagens, essas mudanças de nível no emprego da noção de honra. A sua obra certamente permite que se avance na reflexão sobre a forma com que esse tipo de conceito é utilizado pela sociedade, sobre as semelhanças e, sobretudo, diferenças que existem entre a honra de uma moça deflorada e a honra nacional.

O que sem dúvida o livro de Caulfield deixa claro é que a noção de honra é fundamental para se entender a história da cultura brasileira. Ao fazer isso, também, mais uma vez torna evidente como a perspectiva de gênero precisa estar presente quando se deseja empreender estudos que dêem conta dos processos sociais de um ponto de vista mais dinâmico e englobante.


Resenhista

Fabíola Rohden – Pesquisadora do Programa do Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: fabiola@ims.uerj.br


Referências desta Resenha

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000. Resenha de: ROHDEN, Fabíola. Honra no Brasil: da moral sexual à imagem da nação. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.8, n.3, set./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

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