Em busca do Povo Brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV | Marcelo Ridenti
A utopia de uma efetiva aproximação entre os intelectuais, os artistas e o povo brasileiro é o tema central desse livro de Marcelo Ridente, que, em última instância, trata da produção cultural inspirada no âmbito da então sonhada Revolução Brasileira. Apesar das especificidades de cada uma das áreas artísticas abordadas, é possível observar, através do estudo proposto, as diversas problemáticas que nortearam a produção cultural brasileira, em meados dos anos 60 e 70 – um período de intensos debates sobre a viabilidade do projeto de modernização do País. Nessa direção, o estudo privilegia a análise de obras, cuja proposta não escamoteia a intenção do artista em revelar ao espectador a história de sua gente, analisar o presente e projetar o futuro da sociedade brasileira.
A pesquisa de Ridente se insere no âmbito das preocupações que se aproximam dos pressupostos teóricos e metodológicos da chamada História Nova, capaz de reconhecer, em todas as marcas da inteligência humana, objetos de estudo para a disciplina. A história – asseguraria Jacques Le Goff, um dos expoentes da Escola dos Annales – deve perscrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação (1990, p. 107). Nesse sentido, os historiadores, no decorrer do século XX, propuseram a superação das premissas positivistas, responsáveis pelo confinamento das pesquisas aos documentos escritos, e muitas vezes, oficiais. A terceira geração dos Annales ampliou as possibilidades da escrita da história, propondo a utilização de tipos de fontes diferenciadas: documentos que abarcam formas de linguagem não escrita, depoimentos orais, registros judiciais, artísticos, literários, entre outros.
Nessa linha de abordagem, vale salientar que, talvez, a maior ousadia do volume se remeta ao fato de superar as armadilhas das avaliações simplórias cuja ênfase termina recaindo na infrutífera tentativa de detectar linhas evolutivas no desenvolvimento da literatura, da música, da dramaturgia, do cinema e das artes plásticas brasileiras. Assim, Ridente evita quantificar o alcance da almejada aproximação entre alguns artistas de esquerda e o “povo”, ocupando-se dos imaginários que circundaram as ações de tais agentes sociais. Ao propor um estudo das práticas políticas e culturais viabilizadas pelos meios artísticos e intelectuais de esquerda, detecta que, embora estes se pretendessem populares, terminaram por circunscrever-se à esfera de práxis socialmente embasada nos anseios das classes médias urbanas, e não propriamente, nos das camadas populares.
O estudo prima por mostrar como, nos anos 60 e início dos 70, os meios artísticos intelectualizados de esquerda ocuparam-se da questão da identidade nacional e política do povo brasileiro, procurando impulsionar a ruptura com o subdesenvolvimento e garantir a preservação das suas raízes populares. Por certo, essa tendência se manifestou num campo de florescimento cultural diversificado, que por sua vez, estabeleceu intenso diálogo com os movimentos que o antecederam, e não se limitou às fronteiras geográficas brasileiras, ocorrendo também em territórios internacionais.
Nessa direção, o trabalho se dispõe a observar a participação de diferenciadas correntes políticas e culturais de esquerda nesse debate, e dessa maneira, não se detém apenas ao âmbito das possíveis influências dos setores culturais do PCB (facilmente detectáveis na época), procurando açambarcar também as manifestações da esquerda católica e as propostas do nacionalismo trabalhista, chegando às dissidências guerrilheiras – empenhadas em propostas alternativas de desenvolvimento social intituladas pelo autor como romantismo revolucionário.
No primeiro capítulo são enfocados, justamente, os elementos constitutivos do chamado romantismo revolucionário – um conceito adotado pelo autor com o intuito de buscar um fio condutor para a compreensão das diversificações políticas equacionadas no cerne das classes médias brasileiras. O capítulo subseqüente ocupa-se do resgate das autênticas raízes brasileiras recorrentes nas propostas dos artistas militantes ou simpatizantes do PCB.
O terceiro aponta o debate cultural sugerido por dissidências armadas do PCB e trotskistas que, mediante variadas matizes, responsabilizavam os militares (apoiados pelos latifundiários e setores empresariais multinacionais) de impedirem o desenvolvimento nacional. Destarte, são tomados como parâmetros a produção e o pensamento de artistas balizados pela cultura política participativa do final dos anos 50 e de toda década de 60, como Vianinha e José Celso Martinez Corrêa (na dramaturgia), Antonio Callado (na literatura), Hélio Oiticica (nas artes plásticas), Edu Lobo (na música), Glauber Rocha (no cinema), entre outros. Todavia, não foram descartadas as produções de artistas integrados às organizações de esquerda, como por exemplo, Carlos Zílio e Sérgio Ferro, nem tampouco as daqueles que não se tornaram militantes, mas se manifestaram favoráveis à constituição de uma identidade para o povo brasileiro e à cultura política de superação do subdesenvolvimento e das influências maléficas do imperialismo norte-americano, como Chico Buarque de Hollanda e Caetano Veloso.
Outrossim, ao contemplar as trajetórias de inserção no mercado da indústria cultural, o quarto e o quinto capítulos propõem leituras diferenciadas das obras desses dois compositores e intérpretes. Ao destacar Benjamim, um romance assinado por Chico Buarque, Ridente tende a contemplar acirrada crítica social inserida na obra e as evidências de certa perplexidade da intelectualidade de esquerda às portas do século XXI – aspectos que, em última análise, implicariam, do ponto de vista do sociólogo, certo distanciamento do traço utópico predominante nas principais obras do escritor e compositor. Por seu turno, no capítulo seguinte, propõe um repensar sobre a idéia de que o movimento tropicalista tenha se constituído no campo das rupturas com a cultura política dos anos 50 e 60, sugerindo que o mesmo tenha se engendrado à luz das próprias relações que estabeleceu com o pensamento articulado à efervescência artística daqueles anos.
Por último, o sexto capítulo tende a contextualizar, na esfera do processo de globalização e de difusão do neoliberalismo, o curso dos referenciais artístico-revolucionários da sociedade brasileira (a partir da década de setenta), chegando ao resgate atualizado de noções tão caras aos intelectuais daqueles anos, tais como, povo, Estado-nação e raízes culturais. Do ponto de vista da análise efetuada, após o término da ditadura civil-militar, a aposta no desenvolvimento nacional fundado na intervenção do Estado adquiriu maior ímpeto. Entretanto, nos anos noventa, período no qual a mundialização da economia e da cultura atingiram diretamente a sociedade brasileira, percebe-se que outras questões relativas ao problema da identidade nacional do povo brasileiro voltaram à tona.
A par de outras obras do autor, esse volume não dissimula o compromisso participante e o anseio de contribuição do sociólogo e historiador com as questões mais candentes da sociedade brasileira2; no entanto, embora se proponha a abordar a arte socialmente envolvida com seu tempo, compromete um pouco a análise quando opta por não enveredar pelo debate estético. Ora, parece inócuo o estudo de aspectos da cultura brasileira contemporânea sem esse referencial.
Ridente, lançando mão dos argumentos de Janet Wolff, admite que a beleza ou o mérito artístico de uma obra não pode ser reduzível aos fatores econômicos e sociais. E mais, reconhece os limites das análises pautadas pelo reducionismo do campo estético ou pelo simplismo de pseudomarxismo (que condiciona a expressão artística aos ditames da infra-estrutura econômica). Assim, a saída encontrada pelo autor para esse impasse teórico metodológico inscreve-se na opção por uma abordagem que se ocupa da temporalidade da obra de arte e não do seu valor intrínseco. Com propriedade, sugere que a história de uma sociedade possa ser contada também pela produção artística.
Cabe lembrar, no entanto, que as dimensões do florescimento cultural observado nos anos 60 e 70 não podem ser observadas apenas a partir do vínculo entre os intelectuais, os artistas e a política. É justamente na esfera estética que se pode captar a complexidade do projeto artístico e a maneira como representou os desejos de seus produtores. A plasticidade e a poética de tais obras expõem as vísceras de seus idealizadores, expressam o efetivo diálogo interno dessa produção artística com os movimentos que a precederam e com os segmentos sociais que viabilizaram sua gestação.
Seguramente, se é possível inferir que a produção artística brasileira e internacional do período referido mergulhou nos problemas sociais do seu tempo, relegando a problemática relacionada à estética a um plano secundário, torna-se imperioso admitir que parte significativa de seus produtores procurou equacionar a questão da temática nacional e do subdesenvolvimento ao campo das experimentações estéticas enveredando por caminhos que buscavam novas linguagens plásticas e formas alternativas de expressão. Nesse sentido, o presente volume representa uma efetiva contribuição para todos os interessados no contexto histórico, social e a artístico da produção cultural brasileira, nas décadas e sessenta e setenta.
Nota
2. Refiro-me a publicação de O Fantasma da Revolução (1993), pela Editora da Unesp; Classes Sociais e Representação (1994) e Professores e Atividades da Esfera Pública (1995), ambos lançados pela Editora Cortez.
Resenhista
Sandra de Cássia Araújo Pelegrini – Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de História, da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: spelegrini@wnet.com.br
Referências desta Resenha
RIDENTI, Marcelo. Em busca do Povo Brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000. Resenha de: PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Diálogos. Maringá, v.6, n.1, 207-210, 2002. Acessar publicação original [DR]