O livro de Manthia Diawara tece uma instigante investigação sobre algumas das tensões que explodem em países africanos após sua independência dos países europeus, remetendo-nos aos debates de ideias que motivavam, na segunda metade do século XX, algumas das principais querelas que então se produziam em torno do ideal de modernidade que ali se alçava, anelando a história pessoal do autor à do próprio continente:
Minha vida começou quando nasceram as novas nações da África, no final dos anos 50. Estávamos cheios de esperança, decididos a transformar a África, a alcançar rapidamente o mundo moderno, a mostrar que os povos negros podiam usar sua cultura e civilização, como faziam os outros povos para conduzi-los à modernidade (pp. 69-70).
Nascido em Mali, mas habitante da Guiné quando criança, Manthia Diawara, já então estabelecido em Nova York como professor universitário da New York University, volta à Guiné, em meados dos anos 90, para reencontrar amigos de infância e, principalmente, para reencontrar África. O retorno, do qual deriva uma poética do retorno, torna-se no livro um ponto fulcral do reencontro com uma pátria afetiva, a Guiné, depois de sua independência da França e dez anos após a morte de Ahmed Sékou Touré, o primeiro, e mais polêmico governante, pós- -domínio francês. Considerado por muitos um herói mas, por outros, um tirano sanguinário, dependendo do ponto de vista acionado, segundo a narrativa histórico-biográfica de Manthia. No prefácio à edição brasileira, o autor nos revela seus ideários nesta busca de África então pretendida e idealizada:
Escrevi Em busca da África para refletir de maneira séria sobre a posição da África, em termos poéticos, teóricos e sociais, na mente dos africanos contemporâneos e daqueles dos tempos da Diáspora. Minha intenção era tentar transpor a barreira de generalizações teóricas e estereótipos sobre o continente inventados inicialmente pelo Ocidente, com um casamento entre capitalismo e racismo, e depois interiorizados pelos africanos e afrodescendentes… Voltar à África, para mim, é abraçar a pretitude, em todas as suas diversas manifestações, retirando-a do espaço patológico que lhe foi reservado pelas culturas dominantes do esclarecimento e do eurocentrismo (pp 9-10).
Durante todo o livro, essa busca por África é metaforizada pela procura do melhor amigo de infância, Sidimé Laye, que parece estar sempre alhures, inalcançável, invisível, esquivo, como a própria Guiné que Manthia reencontra, mas que já não lhe parece familiar ou mesmo compreensível. Percorre toda a narrativa do desejado reencontro a tensão entre aquele que volta, já não mais o mesmo que saíra ainda criança de Guiné, expulso com a família; e os que ficaram e experimentaram, de perto, ou mesmo no exílio, as tentativas de mudanças e de criação de um Estado nacional, sob a égide de Touré, enfrentando, muitos deles, um regime político de exceção, violência e exclusão. Questões ligadas à identidade marcam o primeiro momento do desejado retorno, espelhado na busca e desejo de encontrar Sidimé Laye:
No final daquela tarde, gozando a brisa ao sair do hotel e andar pela rua, perguntei-me se o mundo de Sisimé Laye teria as mesmas complicações com as questões de identidade que eu sofria. Eu estava com a mesma sensação de entorpecimento que sentira tantas vezes em Nova York, uma solidão próxima ao não existir. Perguntava-me se Laye também tivera alguma vez esta sensação – a solidão de alguém cujas marcas na história haviam desaparecido, varridas pelos reinados de terror, pelas revoltas, conspirações e violências de africanos contra africanos. Não tenho história. Ou, dito de outra maneira, minha história, como a de Sékou Touré, é uma tragédia, e o que se conhece é apenas seu lado negativo – o lado dos derrotados, o lado feio (p. 69).
Erguer a nação, combatendo os dogmas do tribalismo, parece ter sido a práxis e ideologia de muitos governos africanos pós-independência, o que causou rupturas profundas no tecido social e cultural, deixando em aberto as discussões sobre que caminhos esses países deveriam traçar para se erguerem como nação independente, em um cenário de devastação imposto pelos colonizadores europeus, pelas guerras de libertação e pela Guerra Fria. Relações tensas entre tradição e modernização; ex-colonizados e antigos colonizadores, entre a ideia de nação moderna e as práticas sociais e culturais milenares; entre regimes políticos locais e a democratização; entre governantes e cidadãos; entre o local, o regional e mesmo o internacional; entre os sonhos de uma nacionalidade erguida sobre certos padrões ocidentais e a realidade da exploração do mercado. Erguem-se em torno dessas questões algumas das fricções que fomentam vários debates trazidos à cena pelo raciocínio arguto, amplo conhecimento e postura crítica dialética de Manthia, principalmente as derivadas da dicotomia modernidade versus tribalismo e entre o que o autor designa como culturalismo versus conversionismo.
Aos ideários dos jovens países recém independentes impõe-se, mais uma vez, na percepção do narrador, os interesses ocidentais, a Guerra Fria que dividiu os africanos, os isolou “uns dos outros” e, pior, fortaleceu a tirania em um quadro catastrófico de violências compartilhadas. A Guerra Fria, afirma ele,
criou insegurança e nos obrigou a pôr nossos sonhos e prioridades em segundo plano. O tipo de relação da Guerra Fria com a África tinha pouco a ver com nossa realidade e nossos sonhos. A Guerra Fria obedecia apenas aos interesses do Ocidente contra o bloco soviético, e nos últimos trinta anos nossas vidas tinham sido determinadas pela percepção estratégica da Guerra Fria, segundo Moscou ou Washington… A linha entre combater como aliado na Guerra Fria e combater pela independência se embaçara, e também se embaçaram os papéis de nossos líderes no teatro genocida encenado na África. Num dia eram heróis, no outro eram monstros. O tribalismo mostrava sua face feia por toda parte, e milhares de pessoas eram mutiladas e mortas em nome de seus líderes e em nome da revolução (p. 71).
Naquele momento e cenário, os desejos de modernização sucumbiram, foram adiados ou abstraídos, na medida em que as potências e forças colonialistas reorganizam-se promovendo seu próprio retorno, através do neocolonialismo. A crítica de Manthia a este complexo contexto prima pela contundência, talvez também motivada pela devastadora realidade que causa um certo sentimento de perda, quiçá pela nostalgia dos sonhos acalentados ou mesmo de longe desfeitos:
Em vez de nos organizarmos a partir de emoções nacionalistas, somos cativos do Estado nacional para que os outros possam nos explorar melhor. As nações passaram por uma inversão de papéis: deixaram de construir instituições modernas que emancipam a população e se tornaram postos avançados neocoloniais, servindo aos interesses de organizações estrangeiras; passaram de Estados revolucionários para enclaves tribalistas, de nações em construção para nações mendigas (p. 74).
Em seu percurso histórico-narrativo-existencial, o autor oferece um número extraordinário de asserções possantes, uma polifonia de vozes, agenciamentos e pensamentos, por meio das quais o panorama de ideias, às vezes conflitantes, de ações políticas e de proposições artísticas se distribuem, compondo quadros complexos sobre um continente per si também complexo e que não se deixa apreender facilmente por seus pensadores e pelos inúmeros intelectuais que sobre ele refletem, propõem, debatem.
Ao longo da narrativa, intelectuais, ativistas e artistas de várias áreas do conhecimento, nacionalidades, gerações e contextos, sejam de África ou da Diáspora negro-africana, são sagazmente acionados pelo autor, que os interroga, interpreta, revisa, estimulando debates e reflexões plurais daquele momento e contexto históricos. Relações de poder entre a vontade de Modernidade, traduzida pela urbanização e erguimento da nação, contrária à manutenção dos poderes e saberes da cultura autóctone local, manifesta-se muitas vezes em tensões irreconciliáveis que marcarão sobremaneira os jovens Estados nacionais pós-independência, oriundos de revoluções libertárias, influenciadas por ideários marxistas ou capitalistas. Posições adversas são então salientadas por meio de vozes influentes, como as de Richard Wright e Malcolm X, por exemplo, em que a ideia de um pan-africanismo é ora realçada, ora subvertida, instalando um permanente estado de conflito de ideários e de ações que problematizam a vontade dos governantes que se querem laicos e modernos, em contraposição à tradição e mesmo às culturas locais. História, mitologias, cinema, literatura, música, contos, fábulas, ideologias são alguns dos muitos prismas trazidos pelo enciclopedismo do narrador/escritor.
Como um narrador benjaminiano, voz da experiência pessoal e também de uma sofisticada reflexão, Manthia faz-se como um de seus principais personagens, e se posiciona, como narrador, em pelo menos três funções: em primeira pessoa é o que retorna, que relembra os amigos, os parentes, os lugares da infância bucólica; este “eu” é senhor da palavra que expressa a reminiscência, os afetos e saudades; há também aqui o pesquisador e intérprete, o Manthia professoral que evoca outros pensadores e ativistas, expondo seus pontos de vista e ideologias discordantes sobre África e a Modernidade, colocando-se como um mediador privilegiado que aborda e levanta contradições e conflitos entre motivações teóricas e ideológicas; e há o narrador em terceira pessoa, quase uma câmera objetiva, um observador mais impessoal e imparcial, que estende a narrativa a temporalidades milenares, habitando o universo narrativo e as cartografias revisitadas com imperadores, reis, heróis, griôs, perspectivas históricas, mitológicas e memorialistas, breves fábulas, relatos místicos, vivências e experiências as mais diversas, compondo um quadro social, cultural e político extremamente diverso e multifacetado, nos oferecendo uma percepção de África sui generis, em vários aspectos desconhecidos pelo leitor brasileiro. Uma África plural, ora atormentada, ora magnânima, guerreira, épica e poética, sempre na encruzilhada de inúmeros processos civilizatórios, sejam os internos, advindos de suas nativas práticas sociais, organizacionais e culturais, sejam os derivados dos sistemas de colonização europeus, cristãos, árabes e muçulmanos que ali transitam e se cruzam e incidem sobre toda a população e seus domínios, dentre eles diversos e mesmo opostos valores éticos e cognitivos.
Neste sentido, por meio de uma peregrinação, o livro de Manthia desdobra-se em um trânsito sígnico significativo por uma África violada de várias maneiras, pelos desterros e trânsitos migratórios, pelos efeitos das diásporas experimentadas por suas populações, pelos seus próprios rumos políticos e ideários, pelos seus impasses e também seus gestos de decolonização. A narrativa ora se torna vertiginosa, com número significativo de informações agregadas, ora se cadencia como um performático relato, às vezes sutilmente irônico, às vezes ácido, mas sempre recortada de um profundo sentimento de afeto e de afetação contínuos, humanizando as vozes que inquirem, as que rememoram, as que condenam, as que ruminam, as que agravam ou desagravam, as que suspiram e as que ainda destilam esperanças.
Especialmente para os leitores brasileiros, cuja memória de África em geral se dá por vias do Imaginário, conhecer a realidade histórica de países africanos no âmbito e contexto traçados por Manthia é pertinente e enriquecedor, na medida em que historicamente a formação social, cultural e civilizatória brasileira produz-se também com os saberes, epistemologias e valores civilizatórios africanos, reterritorializados nas Américas pelas diásporas oceânicas. Historicamente, África nos constitui e conhecer na contemporaneidade seus conflitos, dilemas, caminhos e escolhas, nos possibilita acrescer o conhecimento de nós mesmos, como sujeitos e como nação.
Para um imigrante, como Manthia, que experimentou a migração interna em África, e depois a externa, na Europa e nos Estados Unidos, a poética do retorno, problematizada e arguida pela retórica crítico-analítica que constrói uma atmosfera narrativa reflexiva, argumentativa e inquieta, fluida, dialética mesmo, realça também um outro tema complexo dali derivado, o da busca pelo pertencimento, principalmente desse sujeito desgarrado, desterritorializado, multilíngue, multicultural, constituído pelos seus próprios trânsitos e migrações, revestido pelos múltiplos saberes processados nas travessias do próprio saber, habitante de vários idiomas e matizes do conhecimento; uma face intelectual grafada pela textura dos outros ali também riscados, como os cosmogramas africanos, índices e signos de um complexo acervo de linguagens e de conhecimentos.
Em síntese, Em busca de África revela-se um livro potente, denso, relevante, e também desejante, e que desvela o extraordinário domínio de seu autor sobre os vários temas que perpassam a obra. Examinando ideias, ideários, informações teóricas, históricas e debates relativos, principalmente, às últimas décadas do século XX, a narrativa expõe um extraordinário repertório de informações que pode contribuir em muito para o conhecimento histórico e cultural de África, em toda a sua plural diversidade, seus desafios na contemporaneidade, as tensões que balizam o próprio conhecimento ali produzido, ou sobre África pensado.
Ainda no prefácio, Manthia Diawara relembra o desejo
de escrever um livro em que fosse possível ouvir todas as vozes da pretitude, todas as vozes da liberdade; um livro em que fosse possível ver as humanidades africanas como elementos essenciais para as defesas contra o totalitarismo, onde quer que ele mostrasse suas garras – inclusive no continente (pp. 10-11).
Dessa pujante narrativa de Manthia, produzida há mais de trinta anos, derivam questões que nos provocam: haveria alguma mudança significativa no status quo aqui relatado? Quais os impactos da globalização nos debates e motivações ali realçados? Que outros modi vivendi foram determinados pela e determinantes para a ascensão do mundo digital e pelas novas tensões, configurações e demandas econômicas, sociais, ideológicas e políticas enfrentadas pelos países e populações de África no século XXI? E pessoalmente? O que mudou ou se transformou naquele que produz o relato, o próprio Manthia, subjetivamente também experimentado e refletido neste seu belo e instigante livro?
Resenhista
Leda Maria Martins – Universidade Federal de Minas Gerais.
Referências desta Resenha
DIAWARA, Manthia. Em busca da África: pretitude e modernidade. São Paulo: Zahar, 2022. Resenha de: MARTINS, Leda Maria. Em busca da África, um livro para ser pensado. Afro-Ásia, 66, p. 713-719, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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