Elites e instituições no Brasil colonial | Escrita da História | 2016
A nova edição da Revista Escrita da História – REH, de número cinco, é composta pelo dossiê Elites e instituições no Brasil colonial, que reúne quatro trabalhos de jovens que buscam, cada qual a seu modo, relacionar as trajetórias de setores das elites coloniais às transformações políticas e econômicas da sociedade colonial. Percorrem-se os espaços mais diversos da colônia, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, para mostrar como, em cada contexto, respeitadas as devidas particularidades, as elites locais se articulavam, se apropriavam das prerrogativas das câmaras municipais, e se relacionavam com as autoridades régias, defendendo seus interesses e integrando-se ao Império português.
O artigo que inaugura o dossiê recebe o título O papel das elites locais na criação de vilas na porção meridional da América portuguesa (séc. XVI-XVIII): o caso da capitania de São Vicente. Trata-se de uma síntese da pesquisa de doutorado do autor, Fernando V. Aguiar Ribeiro, defendida recentemente junto ao Programa de PósGraduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. Ao longo do texto, é feita uma análise do papel das elites políticas paulistas no processo de criação de vilas no planalto da capitania de São Paulo ao longo dos séculos XVI, XVII e grande parte do século XVIII. Procura-se demonstrar que, ao contrário do que ocorria em outras regiões, grande parte das vilas paulistas coloniais foram criadas por iniciativa de setores específicos das próprias elites locais, normalmente por aqueles indivíduos que ocupavam postos periféricos na Câmara Municipal de São Paulo. O estudo evidencia que o acesso à cúpula dessa instituição era condição essencial para garantir a posse da terra na região, e por isso os ocupantes de postos periféricos na administração local acabavam edificando, ao longo do planalto, outras estruturas político-administrativas, onde poderiam ocupar postos centrais e, a partir deles, garantir seu acesso a terra, gozar de maior prestígio e controlar todas as prerrogativas inerentes às câmaras municipais coloniais.
O segundo artigo recebe o título Dos conflitos internos às guerras nos sertões: a restituição do colégio jesuítico em São Paulo e a entrada paulista na Guerra dos Bárbaros (1653-1660). O autor Luiz Pedro Dario Filho, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense, procura demonstrar como a guerra contra os índios tapuia, no sertão da Bahia, em meados do século XVII, provocou uma redução dos atritos internos entre as duas facções das elites locais de São Paulo, então polarizadas pelos Pires e pelo Camargos, propiciando certo alinhamento desses grupos com os agentes régios na colônia. O retorno dos jesuítas à localidade teria reduzido o poder da Câmara Municipal – e, portanto, das elites locais que a controlavam – sobre a mão de obra indígena. Diante desse problema, as facções rivais teriam identificado, no conflito contra os tapuia, no sertão da Bahia, uma oportunidade de obter mão de obra indígena e melhorar sua imagem junto aos agentes régios da colônia. Assim, o autor procura demonstrar que a participação dos paulistas no conflito não foi o resultado de uma cooptação empreendida pelos agentes régios, mas uma iniciativa dos próprios bandeirantes.
O terceiro artigo, da autora Michelle Samuel da Silva, mestra em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, recebe o título Governança e práticas políticas: as relações entre Governo-Geral e governadores da capitania de Pernambuco (1657-1667). Ao longo do texto, a autora aborda os conflitos de jurisdição entre o governo da capitania de Pernambuco e Governo-Geral, consequência, em certa medida, de dois acontecimentos que marcaram o século XVII: a dissolução da União Ibérica, que afetou todo o Império português; e a expulsão dos holandeses da costa da colônia, empreendida pelas próprias elites locais pernambucanas. Para a autora, esse contexto é marcado pelo fortalecimento das elites locais e do próprio governador de Pernambuco, o que ia de encontro à política de centralização do poder, comandada, na colônia, pelos governadores-gerais. Para a autora, as tentativas de fortalecimento do Governo-Geral, em detrimento dos governos das capitanias e das próprias elites locais, geraram tensões e conflitos jurisdicionais, sendo flagrante, por vezes, a necessidade de o Governador-Geral recuar e contemporizar, conciliando os interesses locais com os do próprio monarca para manter-se no posto.
O movimento de avanços e recuos dos interesses centrais sobre os interesses locais, apresentado no texto anterior, também pode ser observado – guardadas as devidas especificidades – nas primeiras décadas do século XVIII nas vilas da capitania de Minas Gerais. É este o contexto do quarto e último artigo do dossiê, intitulado Elites e justiça em primeira instância: os juízes ordinários da Câmara de Vila do Carmo, Minas Gerais (1711-1731), escrito por Mariane Alves Simoes, mestra em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. O texto traça o perfil dos 33 indivíduos que ocuparam a função de juiz ordinário na Câmara Municipal de Vila do Carmo (atual cidade de Mariana), nas duas primeiras décadas de funcionamento da instituição (1711 até 1731), antes da criação do posto de juiz de fora, que extinguiu a função de juiz ordinário. A descrição desse grupo – responsável por presidir a instituição local nos anos em que esta gozava de considerável jurisdição –, mostra que eram, em sua maioria, de origem portuguesa, casados, proprietários de considerável plantel de indivíduos escravizados, detentores de patentes militares e, ao fim da vida, de grande volume de riquezas, como evidenciam os inventários post mortem. Além disso, uma parcela desses indivíduos conseguiu o hábito da Ordem de Cristo, importante distinção dentro do Império português, concedida a um número muito reduzido de colonos.
Além dos artigos do dossiê, essa quinta edição trás também a seção de artigos livres, composta por cinco textos que tratam de temas diversos. O primeiro deles foi escrito por Juliana Sayuri Ogassawara, jornalista e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Intitulado Pós-11 de Setembro: críticas ao imperialismo nas páginas de Le Monde Diplomatique, o artigo apresenta uma análise dos editoriais do referido periódico em torno do trágico acontecimento do dia 11 de setembro de 2011, e procura destacar as origens e influências das posições anti-neoliberais e anti-imperialistas que marcam a fonte.
Da análise dos discursos anti-imperialistas, passamos ao estudo da pintura e do cinema soviéticos, no artigo que recebe o título Sobrevivências do realismo, naturalismo e romantismo na pintura e no cinema soviéticos, cuja autoria é de Moisés Wagner Franciscon, mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá. Ao longo do texto, busca-se demonstrar que a renovação artística ocorrida no cinema soviético nas décadas de 1950 e 1960 não fez desaparecer o realismo socialista, apesar de o ter deslocado cada vez mais para o chamado cinema histórico. Ao analisar as raízes desse realismo, chega-se a uma origem mais profunda, que remete, segundo o autor, ao nada revolucionário naturalismo do século XIX.
O terceiro texto que compõe a seção de artigos livres recebe o título O juiz da colônia: usos e abusos do poder judiciário na dinâmica coronelista de poder na região de colonização italiana do Rio Grande do Sul, e foi escrito por Giovani Balbinot, mestre em História pela Universidade de Passo Fundo. Ao longo do artigo, revelam-se as peculiaridades do funcionamento do poder judiciário em uma região marcada pela grande presença de imigrantes italianos, no Rio Grande do Sul, durante a Primeira República no Brasil. Para o autor, o judiciário foi um instrumento importante no processo de cooptação empreendido por Borges de Medeiros e por membros das elites locais e regionais, os chamados coronéis.
Em seguida, o leitor encontrará o artigo de Paula Carolina de Andrade Carvalho, mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo, intitulado Fundamentalismo budista: história e caso do grupo 969 em Mianmar. O texto aborda um tema atual, a perseguição aos muçulmanos, mas em um espaço pouco divulgado, o sul da Ásia, onde predomina o budismo, e onde tem se observado o chamado “fundamentalismo budista”. A autora procura investigar as origens desse fenômeno, priorizando Mianmar (ou Birmânia) – antiga colônia britânica governada por militares até 2011, e que assiste agora uma transição democrática – e o grupo radical 969, formado por monges budistas anti-islâmicos, que tem ganhado muito espaço em toda a região.
O último artigo de nosso número é de autoria de Anderson Vargas Torres, mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e recebe o título Canoas e o trabalhismo durante a experiência democrática brasileira (1945-1964): o PTB, os eleitores e as eleições. O autor tenta elucidar a aparente contradição presente nos pleitos eleitorais da cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Nesse período, a população da localidade era composta, em grande parte, por operários. Era de se esperar que os ideais do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) se difundissem com facilidade entre os moradores, e que o partido alcançasse bons resultados eleitorais. Contudo, como demonstra o autor, isso nem sempre ocorreu, devido, em parte, às fragmentações e disputas dentro do próprio partido, e pela força de outros movimentos locais.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Organizador
Luiz Alberto Ornellas Rezende
Referências desta apresentação
REZENDE, Luiz Alberto Ornellas. Apresentação. Escrita da História, v.3, n.5, p.10-13, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]