Eleições e competição política | Estudos Históricos | 2022
Eleições são a principal força motriz dos regimes representativos. Trata-se de um momento-chave para as elites políticas renegociarem o poder, incumbentes tentarem se reeleger e opositores buscarem inverter o jogo para vencer a disputa nas urnas. Historicamente, os estudos políticos privilegiaram a análise das eleições e da competição política em contextos democráticos por supor que a ampla participação eleitoral e as garantias à alternância de poder consistiam nas condições mínimas necessárias para se considerar um regime político, de fato, representativo (Dahl, 1971; Schumpeter, 1942).
Contudo, a retomada da análise das primeiras experiências de democracia direta nas antigas cidades-Estado revelou o caráter aristocrático das eleições em sua origem (Manin, 1995). Isso somado ao gradativo reconhecimento da complexidade por trás da construção do rito eleitoral nas primeiras experiências de governo representativo (Romanelli, 1998), sobretudo na invenção do cidadão-eleitor (Offerlé, 2005), abriu caminho para o resgate dos estudos eleitorais em contextos liberais mundo afora e que avança na historiografia política brasileira mais recente (Dolhnikoff, 2018; Ricci, 2019; Viscardi, 2012).
Este dossiê reúne justamente um conjunto de pesquisas que endossam novas leituras sobre as eleições e a competição política na Primeira República, na Era Vargas e na chamada “democracia ‘populista’” de 1946–1964, cuja própria alcunha se mostra sintomática da leitura pessimista estendida, em geral, a todo o pré-1988. Em conjunto, essas três primeiras fases do experimento republicano no Brasil foram sistematicamente muito mal avaliadas pelos especialistas, sobretudo, pelo frequente modo como as relações tradicionais de exercício do poder teriam contaminado os seus respectivos arranjos institucionais formais, para frustração das expectativas criadas pelas teorias normativas da representação política.
Contudo, todas as três fases têm potencial de ser ressignificadas dentro dos novos referenciais teóricos da literatura comparada. Os trabalhos disponíveis a seguir problematizam a forma como facções políticas e partidos se preparavam para concorrer às eleições, candidatos faziam campanha, e a certificação dos resultados eleitorais acontecia, além de retratar um cenário de competição muito mais acirrado frente ao predito.
O primeiro grupo de artigos resgata a memória política da Primeira República, que ficou estigmatizada, por muito tempo, como uma verdadeira farsa representativa em razão das amplas restrições ao sufrágio e dos constantes acordos oligárquicos forjados para impedir a alternância política. A questão da participação eleitoral é exatamente rediscutida pelo artigo de Felipe Souza e Aldrin Castellucci, que mostra como o movimento operário apelou para mandatos coletivos, tanto na Bahia como em Pernambuco, para representar os trabalhadores das capitais dos dois estados. Já os trabalhos de Monique Cittadino e Lucas Massimo reagem, de certo modo, ao segundo ponto, relativo ao congelamento da competição política no contexto oligárquico. O estudo realizado por Cittadino sobre o contencioso eleitoral na Paraíba durante três anos-chave de disputas à Câmara dos Deputados (1900, 1915 e 1930) apresenta, ao contrário, um retrato da competição política no estado, que perdurou mesmo depois do advento da política dos governadores. Seu texto recupera o esforço dos adversários dos governistas procurando se organizar para desafiar as candidaturas oficiais. Massimo, por sua vez, aponta como dois atributos (ser fundador de jornais e dirigente partidário) pareceram capitais para um político se consolidar à frente de um assento na Câmara Alta. É o que observa ao realizar a prosopografia de todos os senadores federais eleitos de 1890 até 1934 a partir da sistematização de fichas biográficas do Prodasen e de dados dos verbetes do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB).
A experiência eleitoral na Era Vargas teria contornos específicos ou representaria uma ruptura em relação à Primeira República? O segundo bloco de artigos ajuda a enfrentar exatamente essa questão. Do ponto de vista do comportamento dos eleitores, Paolo Ricci sugere uma resposta negativa. Examinando os resultados e a repercussão do pleito de 1934 na imprensa, seu artigo indica que, embora o Código Eleitoral de 1932 tenha instituído uma cabine de votação para o eleitor teoricamente poder decidir seu voto em segredo, o fato de partidos e candidatos continuarem responsáveis pela preparação e distribuição das cédulas lhes permitiu manter certo controle dos eleitores.
Na visão de Leonardo Barbosa, a grande diferença entre os dois regimes residiria no estabelecimento de uma oposição legítima. Seu texto discute as mudanças político-institucionais que se processaram no país a partir da Revolução de 1930, concluindo que a crise responsável pela queda da Primeira República aumentou irreversivelmente o custo de se reprimir a oposição, pelo menos em curto prazo.
A pesquisa desenvolvida por Luiz Mário Burity sobre a campanha presidencial de José Américo de Almeida, em 1937, registra, inclusive, como havia considerável incerteza eleitoral até às vésperas do golpe que institui o Estado Novo. Seu trabalho explora um conjunto variado de fontes que reflete a indefinição do quadro político àquele momento.
Na sequência, uma dupla de artigos concita o leitor a revisitar o processo de democratização do país e a experiência de 1946–1964. O texto de João Tavares Neto problematiza a efervescência política amazonense desde os momentos finais do Estado Novo, rumo à transição de 1945, a partir da análise da forma como o Movimento Queremista e os partidos políticos se organizam no Amazonas. Mapeia-se a disputa criada em torno da captura do braço local do PTB, cuja fundação do diretório estadual encaminhou um difícil processo de negociação entre dois grupos adversários. Da sua parte, Jairo Nicolau apresenta, em primeira mão, os resultados das eleições presidenciais de 1960, que escolheram Jânio Quadros, desagregados no nível dos municípios.
Partindo da tabulação manual dos dados publicados em 1963, pelo Departamento de Imprensa Nacional, o estudo desenvolve uma análise estatística que permite identificar os padrões de comparecimento e competição eleitoral Brasil adentro, para futuras pesquisas desbravarem as diferentes ordens de mobilização e disputas locais.
Duas entrevistas fecham este dossiê. Hilda Sabato, historiadora argentina reconhecida internacionalmente por seus estudos a respeito do exercício do governo representativo na América hispânica do séc. XIX, responde às minhas questões sobre as razões que a fizeram se deslocar dos temas clássicos do estruturalismo historiográfico rumo às ciências sociais, em geral, e à ciência política, em particular. Seu relato é uma verdadeira ode à curiosidade científica, conforme revela, primeiro, uma estudante e, depois, uma docente, no curso de uma busca inveterada pela aventura do conhecimento, que lhe cobra, constantemente, o abandono das próprias ideias.
Mônica Karawejczyk e Amy Westhrop entrevistam, por fim, Céli Regina Jardim Pinto — uma das maiores especialistas brasileiras em teoria política feminista e história das mulheres —, que compartilha detalhes da sua trajetória acadêmica e intelectual, também direcionada da história rumo à ciência política. Outro depoimento marcado pelo contínuo processo de autodescoberta e ressignificação, que nos faz desejar, um dia, ter condições de nos colocar sobre escrutínio, como pesquisador e objeto da própria pesquisa — e que, por ora, nos leva a questionar a ausência de mais estudos acerca da mobilização eleitoral e práticas políticas das mulheres a partir da adoção do voto feminino.
Cada qual à sua maneira, ambas as entrevistas facilitam a visualização dos desafios colocados diante de todos nós, historiadores, cientistas sociais e cientistas políticos, que nos arriscamos a enveredar pelo estudo das eleições e competição política nas primeiras experiências republicanas no Brasil. Não há como negar o paradoxo: nosso objeto é eminentemente interdisciplinar, embora nosso treinamento teórico-metodológico seja bastante diverso. Para citar apenas uma das muitas diferenças, basta lembrar que historiadores são treinados para desconfiar das fontes oficiais; cientistas políticos, ao contrário, para priorizá-las e desconfiar de todo o resto. Por conta disso, sempre que possível, todos os trabalhos que integram este dossiê foram distribuídos para um especialista de cada área. Como esperado, o consenso não prevaleceu em parte das avaliações. Quando um historiador destacava os méritos da pesquisa, um cientista político apontava os problemas da análise (e vice-versa). A unanimidade talvez seja uma abstração entre nós. Entretanto, como bem provoca Hilda Sabato ao longo da sua entrevista, quando nos sentimos desconfortáveis é que encontramos uma questão de pesquisa.
Espero que este dossiê desperte precisamente esse tipo de incômodo, a ponto de instigar réplicas e manter aceso o diálogo sobre as eleições e competição política no Brasil do pré-1964. Para tanto, que não falte teoria à história nem história à ciência política, como nos propõe Céli Pinto, e que não falte, a nenhum de nós, a curiosidade constante sobre o que poderemos encontrar, a resiliência para seguir firme em busca de uma atualização teórico-metodológica e a coragem para publicar o contraditório, como nos recomenda Sabato!
Referências
DAHL, R. A. Polyarchy: participation and opposition. New Haven: Yale University Press, 1971.
DOLHNIKOFF, M. Representação e participação das elites provinciais e locais nas instituições da monarquia brasileira. In: RAMOS, R.; CARVALHO, J. M.; SILVA, I. C. (orgs.). Dois países, um sistema. A monarquia constitucional dos Braganças em Portugal e no Brasil (1822–1910). 1. ed. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018. v. 1, p. 176-204.
MANIN, B. Principes du gouvernement représentatif. Paris: Calmann-Lévy, 1995.
OFFERLÉ, M. A nacionalização da cidadania cívica. In: CANÊDO, L. B. (org.). O sufrágio universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 343-362.
RICCI, P. (org). O autoritarismo eleitoral dos anos trinta e o Código Eleitoral de 1932. Curitiba: Appris, 2019.
ROMANELLI, R. Electoral systems and social structures. A comparative perspective. In: ROMANELLI, R. How did they become voters? The history of franchise in modern European representation, edited by Raffaele Romanelli. The Hague/London/Boston: Kluwer Law International, 1998. p. 1-36.
SCHUMPETER, J. Capitalism, socialism and democracy. New York: Harper & Brothers, 1942.
VISCARDI, C. M. R. O teatro das oligarquias. Uma revisão da política do Café com Leite. 2. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
Organizadora
Jaqueline Zulini – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo. E-mail: jaqueline.zulini@fgv.br https://orcid.org/0000-0001-6153-7328
Referências desta apresentação
ZULINI, Jaqueline. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.35, n.75, p.1-5, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]