El Argentino Despertar de las Faunas y de las Gentes Prehistóricas: Coleccionistas, estudiosos, museos y universidad en la creación del patrimonio paleontológico y arqueológico nacional (1875-1913) | Irina Podgorny

Recentemente, Martin Rudwick, historiador da Paleontologia, parafraseando Bruno Latour e Steve Woolgar, considerou que, comparadas à vida social dos laboratórios, as ciências de campo e os museus são terra semi-incógnita. A obra de Irina Podgorny, nos últimos anos, vem desbravando o terreno, pontuando os caminhos por que percorreram, na Argentina, a História Natural e a Arqueologia. Escritora prolífica, Podgorny dedica-se a uma variedade de temas: Arqueologia e Educação, recepção da New Archaeology na Argentina etc. Todos os temas relacionam-se, quase sempre, à compreensão da formação histórica de la argentinidad.

Sua obra comporta, pelo menos, duas vertentes teóricas. Primo, os estudos históricos, iniciados desde meados de 1970, sobre a função da Arqueologia e da cultura material em geral para a formulação de identidades sociais. De outro lado, ela partilha dos aportes da História social das ciências, definidos, nos anos 1980, na Europa, América do Norte e América Latina. Estuda como os enunciados científicos conformam habitus sociais e cognitivos, arranjos em permanente transformação, negociação e conflito. Examina as práticas científicas concretas abrigadas por instituições de pesquisa, os projetos políticos que as recobrem, a ação social, alianças e lutas entre cientistas. O ponto de partida, pois, é a interpretação de como as ciências, em articulação aos grupos sociais e contextos históricos, inventam uma ordem.

Em O Argentino Despertar das Faunas e Gentes Pré-históricas, Podgorny explora dois aspectos das coleções de fósseis e artefatos indígenas: as relações entre cientistas e colecionadores; os enlaces políticos entre cientistas e instituições, sobretudo os museus e universidades. A ênfase incide sobre as coleções de Florentino Ameghino (1853-1911), devido ao lugar central por ele ocupado nas instituições científicas argentinas, entre 1880 e 1911. Podgorny, no recorte destes objetos, mostra-nos como as coleções de Ameghino trilham um percurso paradigmático. Evidenciam as múltiplas redes de intercâmbio tecidas em torno de bens simbólicos (semióforos, diria Pomian) que adquiriram grande valor monetário no mercado internacional: os fósseis pampeanos e as antigüidades arqueológicas do noroeste argentino. O próprio Ameghino, voltando de sua viagem a Paris, onde exibira as relíquias argentinas nos salões da Exposição Universal, trouxera na bagagem não somente o seu La Antigüedad del Hombre en el Plata (1881), mas também os francos provenientes da venda de parte de suas coleções.

O focar-se neste duplo aspecto das coleções leva Podgorny a descrever, em finura de detalhes, a passagem, em solo Argentino, da atitude de colecionar como obsessão individual – cultivo específico do mundo burguês, nas palavras de W. Benjamin – para obsessão estatal. Estribada nos estudos históricos sobre a formação dos museus mundiais, Podgorny analisa, no caso argentino, como as coleções da elite e de políticos transformaram-se em preocupação de Estado. Oficializaram-se nos museus para inculcar novos hábitos civis ditados pelo nacionalismo. A institucionalização das Ciências Naturais e da Arqueologia, pois, acompanhou a institucionalização das coleções, tornando os colecionadores e viajantes naturalistas, que vendiam seus objetos a quem mais lhes oferecesse, em cientistas, Diretores de Museus e professores universitários.

Dentre a miríade de instituições analisadas, Podgorny destaca o Museu de La Plata, dirigido por Francisco P. Moreno (1852-1919); o Museu Nacional de História Natural de Buenos Aires, regido, entre 1902 e 1911, por Ameghino; o Museu Etnográfico da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Podgorny mostra-nos como esses museus, em compasso com outras associações científicas e universidades argentinas, foram criados para explorar o território e circunscrevê-lo geopoliticamente. Como armas de um Estado que assumiu o papel de “curador de coleções”, os museus internalizaram regras sociais e a idéia de Nação. Inventariaram e catalogaram os objetos da conquista científica do território, os despojos da dominação e etnocídio dos indígenas. Francisco Moreno bem exemplifica essa postura bélico-científica: doando suas coleções ao Museu de La Plata, ele mencionara, em carta ao Ministro de Governo, a utilidade prática dos estudos de Antropologia e Arqueologia: ancorar a argentinidad na Pré-História, submeter e “pacificar” os grupos indígenas.

No interior dos museus argentinos, Podgorny rastreia, baseando-se em documentação oficial, periódicos, publicações dos Museus e correspondências privadas, as relações entre Ciência/cientistas/Estado e a apresentação pública da Ciência. Demonstra-nos, no conjunto destas relações, que a doação de coleções para o Estado, como o fez Moreno, nem sempre implicava em abrir-se mão delas. No mesmo ato público em que se desprendeu de suas coleções, Francisco Moreno, sendo Diretor do Museu de La Plata, uniu-se a elas definitivamente, amparado por decreto de governo. De outro lado, Ameghino, enquanto trabalhou como Subdiretor do Museu de La Plata, entre 1886 e1887, vendeu, para a instituição, suas coleções paleontológicas e arqueológicas. Em razão de sua contenda com Moreno, que se alastrou por vinte anos, findou alienando-se de suas coleções. Foi exonerado do Museu de La Plata e Moreno proibiu-o de pesquisar os materiais que ele angariara, ao lado de seu irmão Carlos Ameghino, em diversas expedições patrocinadas pelo Estado.

A lei 9080 de 1913, contudo, nacionalizou definitivamente os fósseis e antiguidades indígenas, integrando o passado do território à História da Argentina. Após a morte de Ameghino, em 1911, suas preciosas coleções, herdadas por seus familiares, foram tomadas pelo Estado. Deste modo, argumenta Podgorny, neste contexto conduzido pelos ditames da Restauração Nacionalista, o patrimônio arqueológico e paleontológico, sob o domínio de colecionadores particulares e do voluntarismo de Diretores de museus, foi normalizado por uma lei que cooptou as coleções e os cientistas, submetendo-os ao braço instrumental das instituições de pesquisa e do Ministério da Instrução Pública. O espírito mercantil que animava as coleções foi substituído por um triunfalista espírito nacional. A História, a Arqueologia e a Paleontologia conjugaram-se para declinar os verbos de inspiração patriótica, da tradição, do pertencimento, da coletividade. A divulgação científica e a extensão universitária aparecem, lembra-nos Podgorny, como objetivos patentes das Universidades de La Plata e de Buenos Aires. A palavra dos cientistas, através de conferências públicas, publicações especializadas e manuais didáticos, guiava, juntamente com os acervos dos Museus, o processo educativo argentino.

Podgorny, em suma, acorda a memória nacional Argentina para o que está diante dela, na paisagem plena de seus monumentos científicos, ainda vivos, erigidos como espaços públicos, os Museus e as Universidades Nacionais de La Plata e de Buenos Aires. Somando-se a outros trabalhos em História da Arqueologia argentina, como os de Gustavo Politis e Alejandro Haber, o livro de Irina Podgorny desperta para os debates do presente aquilo que, apenas na aparência, repousava, adormecia na memória das instituições nacionais. A conquista científica do território nacional, a constituição da Nação pelas Ciências, pode ainda ser vislumbrada por entre as paredes de lugares públicos, na materialização palpável de fósseis e artefatos pacientemente colecionados e estudados por próceres cientistas.

O livro, pois, oferece elementos comparativos para se escrever outras Histórias das Ciências e dos Museus: a nacionalização do patrimônio que se deu na Argentina ocorreu – e ainda ocorre – em todo o mundo; na América Latina e no Brasil, em especial, vêem-se processos similares, a História, a Arqueologia e as Ciências Naturais promovendo ativamente, nos contextos pós-independência política, a construção dos Estados Nacionais. O que está em jogo na compreensão dos significados políticos desses processos, os quais Podgorny nos ajuda a interpretar, é a questão, intensamente perturbada e perturbadora, de nossa relação com os embates do presente latinoamericano, ainda marcado, internamente, por extrema desigualdade social, e externamente, por uma nova versão de Império. Compreender a História, como já anunciara Marc Bloch, não é compreender o passado, mas o presente. No nosso caso, um presente herdeiro de regimes ditatoriais; e cindido pelas alternativas do Universalismo e do Multiculturalismo.


Resenhista

Lúcio Menezes Ferreira – Doutorando em História pela Unicamp. Membro do Núcleo de Estudos Estratégicos/Unicamp. Bolsista Fapesp.


Referências desta Resenha

PODGORNY, Irina. El Argentino Despertar de las Faunas y de las Gentes Prehistóricas: Coleccionistas, estudiosos, museos y universidad en la creación del patrimonio paleontológico y arqueológico nacional (1875-1913). Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires; Libros del Rojas, 2002. Resenha de: FERREIRA, Lúcio Menezes. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 1, n. 2, jul./dez. 2007. Acessar publicação original [DR]

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