GODOY, Luciana Bertini. Ceifar, semear: a correspondência de Van Gogh. 2. ed. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. Resenha de: AFIUNE, Pepita de Souza Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 224-228, set/dez, 2014.
A autora Luciana Bertini Godoy é graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre em Psicologia Social e Doutora em Psicologia Social pela mesma universidade. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia da Arte do Instituto de Psicologia da USP, recebeu apoio da agência financiadora de pesquisas Fapesp.
Atua na área de Psicologia da Arte, realizando vastas pesquisas e desenvolvendo muitos frutos sobre a biografia e obras de Van Gogh.
Publicou outras obras como: “Espirais da criação: autoimagem e o artista moderno na correspondência de Van Gogh”, em 2006, e participou do livro Criatividade: expressão e desenvolvimento, de 1994, com o Capítulo “Criação trágica: Van Gogh”, obra que realizou juntamente com Frayze- Pereira. Godoy também organizou o simpósio “Van Gogh – mito e memória”, no Centro Cultural São Paulo, em 1990, dentre várias publicações em periódicos e eventos. Toda essa vasta experiência da autora mostra o seu intenso envolvimento com a história e as dimensões subjetivas de Van Gogh.
A começar pelo prefácio da obra de Godoy, muito bem-escrita por Frayze-Pereira, psicanalista com Doutorado e Livre-Docência no Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado em Estética na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É professor em cursos de Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da USP. Em seu prefácio, Frayze-Pereira analisa a obra de Godoy, ressaltando os seus aspectos positivos, no que se diferenciou das demais produções acerca das correspondências de Van Gogh. Conforme sua introdução, essa obra é um trabalho atual, com intenso envolvimento da autora com o artista.
Isso lembra Pierre Bordieu sobre a “Cumplicidade natural do biógrafo”. (BORDIEU, 2006, p. 185). “A decisão sobre se alguém é excepcional é do biógrafo. […] Ele só deve biografar alguém que admire, pelo bem ou pelo mal. Sem admiração, é impossível.” (VILAS BOAS, 2002, p. 155).
Godoy (1994) desenvolveu a obra como fruto de uma dissertação de mestrado e tese de doutorado, tendo, ao longo de sua caminhada, dez anos de pesquisa. Visitou o maior número possível de cidades que expõem obras de Van Gogh, estando em contato com várias das mais importantes obras. Visitou cidades em que o artista viveu e expôs, como: Paris, Arles, Amsterdã, dentre outras. Para esta pesquisa, utilizou como fonte mais de seiscentas correspondências de Van Gogh destinadas a seu irmão Theo.
Um trabalho original, que utiliza um índice remissivo, dividindo as cartas por temáticas. Dessa forma, ela não usa a linearidade na biografia, sendo uma forma de abordagem inovadora e que trouxe intensa discussão entre as formas de recepção da obra de arte pelo público. Busca, dessa maneira, articular a vida e a obra do artista.
A discussão se pauta na forma como o Van Gogh artista louco, morto em 1890, se tornou célebre em 1990. Foucault (1992) é citado em sua obra “A escrita de si” acerca da leitura da correspondência que possui uma clara relação no campo visual, porque é o olhar do remetente que se transmite ao destinatário. Um processo de “objetivação da alma”, ou seja, deve articular imagem e discurso. A autora relaciona várias obras de biógrafos acerca de outros artistas e do próprio Van Gogh, justamente para mostrar em que sua obra se diferencia das demais.
A origem desse interesse pelas biografias de artistas está nas obras de Giorgio Vasari, no século XVI, que desenvolveu o interesse pela individualidade artística, articulando vida e obra. São ideais advindos do Renascimento e que marcam um retorno aos valores humanistas.
Podemos citar Vasari pelas suas biografias de Michelangelo e Dante Alighieri. Para realizar uma busca por fontes que remetem à vida do artista, será necessário, como historiador, buscar outra fonte além das pinturas. Não há como analisar uma vida apenas pelas obras plásticas. É necessário buscar o íntimo desse artista, sua dimensão subjetiva, que, conforme a autora, está presente nas cartas.
A imagem de Van Gogh é uma das problemáticas apontadas nessa obra, que articula a sua imagem difundida popularmente com o mito do artista louco e genial. A capa do livro traz várias obras de Van Gogh, em seus autorretratos. A ideia é mostrar as suas diversas representações, que, em um momento, aparece como o homem do campo; em outros, Van Gogh é aquele homem introspectivo, louco ou intelectual.
A autora analisa o contexto histórico vivido pelo artista relacionando-o com o seu estilo artístico. Um período de desenvolvimento do Romantismo como forma de manifestação de uma estética que revolucionou o campo da arte. É uma arte que traz o contexto político em pauta, realizando protestos, ou até mesmo, relembrando fatos históricos da humanidade. Um momento de questionamento acerca dos valores tradicionais da arte, com os quais os artistas desenvolveram trabalhos inovadores que rompem com padrões estéticos. Por outro lado, tornam-se utópicos no sentido de expressão-livre de sentimentos, de busca por uma natureza idealizada, e, até mesmo, a mulher idealizada.
Muito se questiona se Van Gogh seria considerado um artista romântico ou impressionista. O contexto artístico no qual o artista estava inserido refere-se à arte moderna e ao Impressionismo que se desenvolvem também no intenso século XIX, na França. Um momento de crescentes movimentos artísticos é o contexto vivido por Van Gogh, que teve contato com os outros grandes nomes da arte francesa, como Paul Gauguin, seu amigo com quem dividiu por um período uma residência em Arles, dentre outros, como Paul Cézanne e Monet. Todos eles, foram submetidos a condições sociais da época, sofrendo críticas e o não reconhecimento de sua arte durante sua vida.
Há também uma discussão acerca da relação entre a arte e a loucura. A autora discute o que é uma polêmica entre os psiquiatras e historiadores da arte, a contribuição da psicanálise no estudo das obras de arte, mostrando a dimensão subjetiva do artista. Muitos biógrafos analisam as obras de Van Gogh recorrendo exclusivamente a fatores psíquicos, como a impulsividade do artista e sua obsessão. A autora defende, dessa forma e com muita razão, que não se deve realizar uma análise reducionista, colocando com exclusividade a carga subjetiva das obras.
É necessário relacionar essa dimensão subjetiva com fontes reais que trazem à tona a vida do artista. Uma observação sobre a análise das correspondências articula intensamente a teoria com a temática proposta. Analisa a correspondência de Van Gogh e os usos da mesma nas interpretações sobre a vida e a obra do artista. A correspondência é uma fonte de pesquisa primária e espontânea sobre a vida do artista. Traz à luz a discussão refletida à vida e à obra do artista. A correspondência é um testemunho de sua época, mas também um de seus elementos formadores.
A contextualização do século XIX feita pela autora refere-se ao período no qual se popularizou o uso das correspondências entre as famílias, pela facilidade trazida pelas estradas de ferro e o avanço nos serviços de correios. As pessoas se correspondiam para contar novidades sobre aspectos da vida cotidiana. Quanto maior o grau de proximidade entre as pessoas, maior a frequência das cartas, ou seja, um caráter social. A carta, dessa forma, é o registro material das memórias familiares.
No caso, as cartas de Van Gogh não se incluem nessa regra. Ele escreve conforme um fluxo natural de seus pensamentos, de forma livre, de acordo com seus sentimentos no momento. É aleatório. Não há preocupação com protocolos. O artista registra suas impressões sobre o mundo e sobre si mesmo. O conteúdo das cartas revela sua subjetividade, as incertezas, as oscilações, e as preferências que se alternavam consoante o momento.
Há mais de setecentos estudos publicados sobre Van Gogh. Isso mostra um enorme interesse pelo artista, pois buscam encontrar os “segredos” de Van Gogh. Porém, essas obras acabam caindo em análises simplificadas, superficiais, transformando-a numa “superfície lisa, sem rugas, sem sombras, enfim, decretando, sua morte”. (FRAIZE-PEREIRA apud GODOY, 1994, p. 102).
Deve haver um contraponto entre as análises, considerando a subjetividade do artista, a questão psicológica, mas equilibrado ao mesmo tempo com a análise de suas obras, no sentido de se analisar a estética das pinturas e os aspectos de sua vivência, em seu contexto históricosocial.
Van Gogh amava o campo, sendo seu refúgio ou local onde buscava e renovava suas forças. Ele desejava mostrar a sua plena recuperação no período em que viveu no campo. As formas tortuosas e contrastantes entre as cores são os modos de enxergar a realidade e o mundo.
A cunhada de Van Gogh, após sua morte, pediu para que as cartas fossem tratadas com consideração, para que a vida dramática dele não obscurecesse a percepção sobre sua obra.
É interessante perceber como a própria família receia do que se poderia interpretar a partir da leitura dessas cartas. Van Gogh, de fato, teve uma vida muito difícil: solidão, rejeição, doenças mentais e físicas, mas tudo isso não enfraqueceu o seu talento nato.
Ao citar trechos das várias cartas de Van Gogh acerca de aspectos da sua vida, essa obra adentra ao seu interior. É muito interessante ler esses trechos, pois trazem ao leitor uma experiência de imersão no interior do psíquico desse artista. As cartas são divididas em vários temas, fases vividas pelo artista: relação com a família, relação específica com o irmão Theo, reflexões e valores, reconhecimento do trabalho, sacrifícios, opressão, isolamento, vida afetiva, cotidiano, relação com amigos, pensamento sobre a morte, opinião sobre a arte da época, reflexões sobre sua própria arte, sua relação com outros artistas, doenças, expectativas quanto ao futuro e experiências com médicos e sanatórios.
Essa obra nos leva a enxergar Van Gogh de outra forma, começando a ver o verdadeiro homem que está por trás do nome e das incríveis obras que valem milhões de euros na atualidade. O homem que existe atrás da arte, que também possuía suas limitações, mas que não deixou de viver a vida e ver a realidade com seus próprios olhos, da sua própria forma, exteriorizando-a em forma de pintura.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 183-191.
FOCAULT, Michael. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992.
VILAS BOAS, Sérgio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002. Submetido em 24 de julho de 2014. Aprovado em 19 de agosto de 2014.
Pepita de Souza Afiune – Mestrado pelo Programa de Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: pepita_af@hotmail.com
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