Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886) – MARIANO (S-RH)

MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, 305 p. Resenha de: XAVIER, Wilson José Félix. Por gerações sãs e fortes: nos rastros de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [33] jul./dez. 2015.

Como preâmbulo a esta resenha, apresentamos um livro de leitura prazerosa, resultado da tese de doutoramento da autora, defendida em fevereiro de 2015, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. O texto, que mantém a estrutura original da tese, é enriquecedor pelas informações reunidas na interpretação da autora, bem como por sua amarração com as perspectivas de outros autores, neste caso, sobretudo, Michel Foucault e o professor José Gonçalves Gondra. A obra, organizada em quatro capítulos, trata basicamente da análise instigante (e até certo ponto corajosa) da construção de um modelo hígido de educação escolar durante o século XIX na Parahyba do Norte, a partir das prescrições higiênicas do e no espaço escolar.

Sendo assim, no primeiro capítulo, “Breve História de uma Pesquisa”, são apresentadas as escolhas teórico-metodológicas que viabilizaram a realização da pesquisa, tomando-se como fio condutor da narrativa a vida do professor primário e político Graciliano Fontino Lordão (1844-1906) e as epidemias do cólera-morbo na Parahyba do Norte (momentos em que o discurso médico aparecia com mais evidência). Neste capítulo, a autora relata como partiu da análise, principalmente, de regulamentos gerais da instrução pública parahybana do período imperial – os de 1849, 1860, 1884 e 18862 –, mas também de relatórios de Presidentes de Província, Códigos de Postura, revistas, jornais, manuais, compêndios e livros de leitura escolar; para desvelar as profundas relações entre medicina e educação, e dessa forma, tecer uma convincente trama histórica que leva o leitor ou a leitora a perceber como os preceitos de ordem médica foram adentrando o universo escolar para a invenção do referido modelo – invenção essa apresentada não como algo ficcional, mas no sentido de designar uma fabricação, uma construção de concepção de educação escolar. Assim, o sentido de tal pretensão, i.e., de tal construção, ganha contornos teóricos mais precisos a partir da categoria “biopolítica”, pensada por Foucault como procedimento institucional de administração da coletividade3.

Sob esse aparato teórico, a autora aponta como no Oitocentos, a medicina se posicionou como detentora de conhecimentos vitais, que, por meio de uma elite dirigente, se infiltra no incipiente mundo escolar das “casas de escola”, local de funcionamento da maioria das cadeiras isoladas.

No segundo capítulo, “Saberes da Medicina; Higienismo e Educação Escolar”, a autora detém-se nos aspectos relativos à arte de curar e às relações entre higienismo e educação. Dentre várias das reflexões feitas pela autora, talvez o grande leitmotiv que perpassa todos os subitens é o insight foucaultiano que leva o “olhar” da autora para o horizonte do que é “menor, marginal, periférico”4, conduzindo-a a questões relacionadas com a medicina, o corpo, e a sexualidade, permitindo que a categoria “biopolítica” jogue luz sobre certos aspectos do saber médico como parte constitutiva do processo de escolarização da Parahyba do Norte. É nesse sentido que a autora transita por caminhos ainda pouco trilhados no que tange a questão da escolarização, tais como os saberes e práticas sociais das parteiras, barbeiros, benzedeiras e boticários, bem como a atuação de médicos de formação acadêmica ou práticos (sem formação acadêmica) na Parahyba do Norte na segunda metade do século XIX. Não menos importante são as incursões da autora, analisando as habitações do século XIX e as Posturas Municipais, destacando a influência do ideário higienista na reorganização dos espaços urbanos.

Segundo a autora, tanto a disseminação da instrução pública quanto o avanço dos saberes médico-higienistas na ordenação do cotidiano fazem parte de um projeto maior de construção do Estado moderno brasileiro – formar as novas gerações passou a ser a tarefa fundamental no amplo projeto de construção e consolidação da nação. Os conhecimentos advindos da educação e da medicina propiciariam condições de governabilidade, e, para a autora, acompanhando Gondra, a Higiene foi a área da medicina que mais ajudou na organização da educação escolar. É, portanto, no final deste segundo capítulo que a autora defende o pioneirismo do Regulamento Geral de Instrução Pública de 1849, a partir do qual se começa a pensar e a debater na Parahyba do Norte, um modelo hígido de educação escolar, ou seja, esse documento foi precursor nas prescrições de natureza médica, abrindo caminhos para a invenção de uma educação escolar higiênica e higienizadora.

Dando continuidade à tentativa de mostrar como se deu a constituição dos dispositivos regulamentadores e disciplinares que foram criados para ordenar o mundo urbano e a educação de sua população, no capítulo três, “A Construção do Modelo Hígido de Educação Escolar na Parahyba do Norte”, a autora destaca como as escolas começam a ser pensadas como um lugar limpo e sadio. A partir da norma médica, tentava-se produzir um espaço interno escolar calmo, confortável, iluminado e mobiliado, enfim, higiênico, que cada vez mais se distanciava do “desordenado”, “conturbado” e “promíscuo” ambiente doméstico. Nesse sentido, sob a influência do higienismo, educadores, engenheiros, médicos e políticos defendiam a separação entre as residências dos professores e as “casas de escolas”, ganhando força entre certos grupos sociais, a ideia da necessidade de espaços próprios para o funcionamento das escolas. Sua análise é significativa, pois compreende desde a abordagem minuciosa dos Regulamentos Gerais de Instrução dos anos de 1849, 1860 e 1886, passando pelas reproduções imagéticas da educação ocorrida em ambientes domésticos (como foi muito comum nas escolas isoladas no Brasil imperial), e pelas imagens de mobílias escolares consideradas higiênicas. Eis mais um dos tantos méritos do livro: saber utilizar as imagens visuais para a investigação histórica e suas possibilidades de uso para a compreensão da construção de uma sociedade de normalização e, consequentemente, da elaboração de um espaço escolar diferente de outros espaços sociais como a igreja e a família.

Destaque também neste capítulo, para a boa discussão acerca da ordenação do espaço público e privado na província da Parahyba do Norte e das “casas de escola”. Não menos interessante são as incursões pelos preceitos higiênicos contidos no compêndio Livro do Povo (1865)5 e nos motivos que levaram à ausência da Parahyba do Norte na Exposição Internacional de Higiene e Educação em Londres, ocorrida em 1884. Todas essas circunstâncias são habilmente utilizadas para fortalecer o argumento central do livro.

No quarto e último capítulo, intitulado “O Gerenciamento da Vida pela Medicina:

O Colégio de Educandos Artífices”, a autora trata de vários aspectos desse tipo de instituição profissionalizante que, mesmo tendo vida efêmera, no caso da Parahyba do Norte – acolhendo, educando e instruindo crianças das chamadas “classes perigosas” entre os anos de 1865 a 18746 –, aponta em seu regulamento prescrições originárias do saber médico. Essas normatizações, que estavam de acordo com o Regulamento Geral da Instrução de 1849, indicavam a constante preocupação com as doenças e práticas sexuais dos educandos artífices, trazendo à tona a busca por um ambiente espaçoso, arejado e limpo, com alunos asseados e bem vestidos. Ao que parece, para a autora a normatização médica presente no Colégio de Educandos Artífices da Parahyba do Norte é a representação mais cabal na província, do modelo hígido que se inaugura com o Regimento Geral da Instrução de 1849 com o intuito de promover o progresso da província diante das transformações sociais, culturais e políticas da segunda metade do século XIX.

A tônica da composição do livro, que merece destaque, é o constante esforço em dialogar com o que se produzia naquele momento na Corte e em outras províncias, sem perder de vista a pertinente perspectiva de que o projeto higienista parahybano oitocentista guardou as suas peculiaridades diante de outros projetos desenvolvidos em outras províncias brasileiras no século XIX. Um bom exemplo do que se diz é a eficiente articulação tecida entre o Regulamento Geral da Instrução de 1860 com o Decreto n. 1.331-A de 1854, conhecido como Reforma Couto Ferraz, que aprovava uma reformulação para o ensino primário e secundário dirigido ao Município da Corte.

De forma igualmente perspicaz, ao tratar do “corpo educado”, a autora ressalta, amparada nos estudos de José Gondra, algumas das principais representações ou concepções de Educação Física, lembrando as marcas próprias das ações médicas: disciplinar, higienizar, medicalizar, fortalecer, biologizar e regenerar.

Quanto a medicina do Oitocentos, há um alerta para o fato do corpo não ser visto de forma isolada, sendo acompanhado das dimensões moral e intelectual.

Cabe lembrar que, muitas das questões levantadas pela autora acerca da Educação Física reaparecerão entre os intelectuais da chamada “Geração de 1870”, que se empenharam numa construção teórica, política e ideológica pautada no ideário de modernização do país7.

As questões da vacinação, do não padecimento de moléstias contagiosas por parte de alunos, da escolha do ambiente limpo asseado e de casas apropriadas e bem colocadas para a instrução, ressurgem frequentemente nos Regulamentos citados anteriormente. Nesse processo, indica a autora, todas as reformas abordadas objetivavam garantir o gerenciamento da população, dentro de um projeto que buscava produzir sujeitos docilizados, úteis, instruídos, hígidos, dentro de um programa civilizador, “já que a instrução era vista como instrumento propagador de transformações e progresso”8.

Entretanto, a questão mais polêmica do livro é justamente o seu argumento central: a propositura da constituição de um modelo hígido na Parahyba do Norte ainda no século XIX. Se a obra tem o mérito de desconstruir o “mito” de que na província nada foi feito ou aconteceu em torno das discussões e práticas higienistas nesse período, há sempre os riscos assumidos em se apontar a formação de um modelo. Esse tipo de representação advindo da Matemática – o modelo – é sempre problemático quando apropriado pelos campos da História e da História da Educação, principalmente, quando proposto a partir da limitada documentação disponível sobre o Oitocentos na Parahyba do Norte. Não obstante, a autora defende bem o seu ponto de vista com uma boa delimitação de seu objeto, um adequado tratamento das fontes e a rigorosidade (sem rigidez) metodológica característica que perpassa todo o trabalho, que a leva a construir um modelo “local” que, dialogando com um processo mais abrangente de formação da nação consegue ganhar força de sustentação. O modelo mais restrito, referente à Província da Parahyba do Norte, se perde em alcance para a compreensão/ explicação de outras realidades, ganha em poder heurístico com relação à história educacional paraibana. Pode-se dizer que esta estratégia metodológica de perdas e ganhos calculados é bastante acertada para o estudo em questão. Mas, certamente, não é este um assunto esgotado.

Trata-se, portanto, de uma obra que deve ser lida, apreendida e, sobretudo, discutida por todos os pesquisadores, notadamente por aqueles que estão vinculados às pesquisas em História da Educação, e/ ou aos que se dedicam aos estudos históricos das doenças e da medicina na Paraíba. Em conclusão, é uma obra imprescindível à comunidade acadêmica pela abrangência, profundidade e ousadia com que são tratadas as questões, e que contribui, sobremaneira, para o debate sobre os sentidos do projeto modernizador de edificação de uma escola considerada moderna, num momento em que a Higiene ganhava espaço no universo escolar, entrelaçando instrução, educação e saber médico.

Notas

2 Segundo a própria autora, a Província da Parahyba do Norte possui sete Regulamentos Gerais da Instrução, datados de 1849, 1852, 1860, 1879, 1881, 1884 e 1886. Contudo, os regulamentos de 1852, 1879 e 1881 não foram encontrados por pesquisadores em nenhum acervo documental até o momento.

3 MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela Higiene: a invenção de um modelo hígido de educação escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). João Pessoa: Ideia, 2015, p. 52- 53.

4 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 55.

5 Compêndio de autoria do bacharel em Direito maranhense Antonio Marques Rodrigues, publicado pela primeira vez em 1865 e adotado nas escolas primárias da Parahyba do Norte.

6 A instituição foi criada em 1859, porém, somente em 1865 é que começou a ser organizada. A razão de tal demora deve-se à ausência de recursos do governo provincial.

7 Um dos intelectuais mais importantes dessa “Geração”, José Veríssimo, dedica o capítulo IV da obra “A Educação Nacional” (publicada pela primeira vez em 1890, e republicada no Rio de Janeiro em 1906), à importância da Educação Física como proposta para a regeneração física, moral e intelectual do povo.

8 MARIANO, Educação pela Higiene..., p. 261.

Wilson José Félix XavierDoutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Professor Adjunto do Centro de Ciências Agrárias da mesma instituição, Campus de Areia. E-Mail: <wilsonxavierufpb@gmail.com>.

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