A educação, sobretudo escolar, assumiu ao longo do século XIX uma posição cada vez mais importante no mundo ocidental. Como processo central na configuração do mundo contemporâneo, a formação dos Estados nacionais repousou sua soberania sobre o conjunto dos cidadãos. Para que isso se tornasse efetivo, era necessário formar um novo indivíduo que se dispusesse a sacrificar-se por sua comunidade política imaginada. Imaginar a camaradagem horizontal, de que fala Benedict Anderson,[1] em que homens e mulheres se solidarizam entre si sem nunca terem se conhecido só foi se tornando possível à medida que diversas instituições foram se voltando para essa tarefa. A adoção de uma língua comum, o reconhecimento de um espaço geográfico nacional, a construção de um passado nacional foram, dentre outras, tarefas a que se dedicaram os construtores desse artefato cultural denominado Estado nacional. É por isso que a educação ocupa um papel cada vez maior nesse processo.
Por outro lado, a educação foi se tornando uma ferramenta importante de transformação social. O estudo clássico de T. H. Marshall sobre a evolução da cidadania na Europa ocidental já aponta isso.[2] Seu esquema de análise procura mostrar a articulação de três momentos sucessivos nesse processo. Primeiramente, há a conquista dos direitos civis, ligados à afirmação da liberdade individual e da propriedade privada. Em seguida, e como decorrência, há a progressiva expansão dos direitos políticos, sobretudo o voto, mas também o direito de associação. Com o aumento da participação política, houve o avanço dos direitos sociais, que abriu caminho para o surgimento do chamado welfare state ao longo do século XX. Nesse esquema, Marshall reconhece que houve um direito social que antecedeu todos os outros e que foi condição para que as classes trabalhadoras pudessem se organizar e ampliar suas reivindicações: a educação. Motivada pelas guerras, que agora eram travadas entre Estados nacionais, a defesa dessa nova forma de soberania requereu que se cuidasse da formação dos cidadãos, o que favoreceu a universalização do ensino laico e público. Consequência imprevista dos rumos tomados pelo processo de formação dos Estados nacionais, a educação veio a moldar as faces do mundo ocidental no século XX.
Os economistas também têm se preocupado com o problema da educação, nesse caso aplicado ao desenvolvimento econômico. Tratada como capital humano, a formação educacional de uma população teria implicações cada vez maiores sobre a capacidade de uma economia nacional fazer frente aos desafios do mundo contemporâneo. Por outro lado, estudiosos vêm se debruçando mais recentemente sobre o impacto da formação de capital humano na trajetória histórica das nações. Estudando de forma comparada a difusão do letramento e do numeramento em diversos espaços nacionais, a literatura econômica mais recente tem procurado correlacionar tal difusão com a maior capacidade de resposta aos desafios econômicos que se antepuseram ao longo da história desses Estados nacionais, sobretudo o problema da superação da desigualdade econômica.[3]
É diante desses papéis desempenhados pela educação na história que foi organizado o dossiê desse número de Varia Historia. O objetivo é destacar artigos que mostram a importância assumida pela educação em um momento chave no processo de formação do Estado nacional brasileiro: o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
O primeiro artigo, de autoria de Juliana Goretti Aparecida Braga Viega e Ana Maria de Oliveira Galvão e intitulado “Interfaces entre o processo de legitimação do grupo escolar como instituição de saber e a ressignificação do lugar simbólico de Ouro Preto como cidade monumento”, trata da criação do Grupo Escolar Pedro II como a construção de uma imagem de lugar de memória preservada para Ouro Preto. No contexto das reformas escolares do início da Primeira República, em Minas Gerais avançou-se na construção dos grupos escolares com o propósito de substituírem as antigas aulas isoladas. Para as autoras, a forma como se deu a instalação do Grupo Escolar Pedro II, e a própria escolha do seu nome, mostram que o contexto do qual o grupo escolar fazia parte parece ter desempenhado papel fundamental em seu processo de legitimação como instituição de saber. Portanto, a história dos locais onde os grupos foram implantados parece ter influenciado na produção de sua legitimidade e nos rumos que essas novas instituições escolares assumiram.
No texto “Colecionar e educar: o Museu Julio de Castilhos e seus públicos (1903-1925)”, Zita Rosane Possamai apresenta a trajetória dessa instituição museológica desde sua criação até o momento em que ela deixa de ser um museu de ciências naturais e se transforma em uma instituição historiográfica. Nessas primeiras décadas de sua existência, a despeito dos desafios sempre enfrentados pelos seus dirigentes, a instituição teve como foco a pesquisa e, ao seu lado, o ensino em articulação com instituições escolares gaúchas. Nesse sentido, ganha importância a aproximação dos procedimentos de exposição museológica com o chamado método intuitivo ou Lição de coisas. Introduzido ainda no Império e retomado na República, o novo método contrapunha-se aos métodos tradicionais de ensino (baseados na memorização e na repetição), estimulando um papel ativo do aluno no processo de aprendizagem. Ao partir do concreto para chegar ao abstrato, das coisas para chegar às ideias, procurava estimular a observação e a experiência no cômputo de uma educação científica. Para a autora, é possível observar nas práticas e ideias expressas por Francisco Rodolpho Simch, diretor do museu no período em estudo, “uma afinidade com os pressupostos do método intuitivo ao privilegiar a coleta, estudo, classificação e exposição de coleções vinculadas especialmente às ciências naturais, concebendo seus produtos como aqueles que permitiriam uma utilidade prática pela sociedade em favor do desenvolvimento econômico do estado do Rio Grande do Sul”.
O terceiro artigo do dossiê (“Cultura cívico-escolar católica e desfiles patrióticos no Brasil do início do século XX”, de Marcus Levy Bencostta) trata de analisar as estratégias utilizadas pela hierarquia da Igreja Católica que incentivaram em seus documentos episcopais as manifestações culturais de caráter cívico nas instituições educacionais sob sua tutela. Mais especificamente, aborda a atuação de Dom Nery, bispo da diocese de Campinas em São Paulo (1908-1920), que se integra às estratégias desenvolvidas pela Igreja Católica nas décadas iniciais do século XX para se reaproximar do Estado brasileiro, em resposta à laicização e ao anticlericalismo que marcaram a instalação do regime republicano. As escolas vinculadas à diocese voltaram-se, assim, para a participação nos desfiles cívicos. Nessa aproximação, não se furtaram à introdução da formação militar para seus alunos, em estreita colaboração com o Exército brasileiro.
Esses três textos mostram os rumos assumidos pela educação nesse momento específico da nação brasileira. Chama a atenção as inúmeras idas e vindas no estabelecimento de processos de formação educacional, apontando para os diferentes processos e contextos de legitimação dos processos educacionais que iluminam as dificuldades de universalização do ensino no Brasil.
Notas
1.ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
2. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
3. Exemplo dessa abordagem é: BATEN, Joerg; JUIF, Dácil; MUMME, Christina. Aberto e desigual: a globalização aumentou o intervalo educacional entre ricos e pobres? In:BOTELHO, Tarcísio R.; VAN LEEUWEN, Marco H. D. (orgs.). Desigualdade social na América do Sul: perspectivas históricas. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2010, p.139-162.
Tarcísio R. Botelho – Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais.
BOTELHO, Tarcísio R. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.53, mai. / ago., 2014. Acessar publicação original [DR]
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