Resumo: O livro Leitura da HQ “Angola Janga no ensino de história: uma reflexão sobre o racismo e a escravidão”, publicado pela Editora Dialética, em 2021, é a materialização em formato de livro e ebook da dissertação que Evandro José Braga apresentou ao Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sob orientação da Professora Ana Lúcia Lana Nemi, em 2020. O escopo geral da obra está centrado na redução teórico-metodológica da distância entre o currículo real de sala de aula na educação básica e o currículo prescrito pelo Estado.
Palavras-chave: Angola Janga, Ensino de História, Racismo.
Abstract: Antiracist Education – Ruan Kleberson Pereira da Silva’s review of Reading Angola Janga in history education: a reflection on racism and slavery by Evandro José Braga | The book Reading Angola Janga in history education: a reflection on racism and slavery, published by Editora Dialética in 2021, is the materialization in book and ebook format of the dissertation that Evandro José Braga presented for the Professional Master’s Program in History Teaching (ProfHistória) at the Federal University of São Paulo (Unifesp), under the guidance of Professor Ana Lúcia Lana Nemi, in 2020. The overall scope of the work is centered on reducing the gap between the actual curriculum and the official curriculum.
Keywords: Angola Janga, History Teaching, Racism.
Em Leitura da HQ “Angola Janga no ensino de história: uma reflexão sobre o racismo e a escravidão”, Evandro José Braga faz uso de materiais próximos a realidade dos alunos, lançando mão de uma Pedagogia do Conflito (em oposição a uma Pedagogia do Consenso, recorrente em políticas educacionais que esvaziam o papel do professor como intelectual orgânico) que promova uma educação antirracista no Ensino de História. Para atingir o objetivo, investiga os usos da História em Quadrinhos (HQ) Angola Janga, de Marcelo D’Salete (2018), em sala de aula.
A obra está dividida em quatro capítulos. No primeiro, “Sobre o racismo e escravidão”, o autor analisa o sistema escravocrata e seus desdobramentos para o desenvolvimento do racismo estrutural, que deve ser objetivamente combatido e superado. Para isso, inter-relacionam-se quatro aspectos: hegemonia, identidade, currículo e historiografia sobre a resistência dos escravizados. Esses temas partem do necessário reconhecimento da existência do racismo como componente histórico e político da sociedade brasileira, sendo decorrente da organização social que viabiliza a discriminação sistêmica de indivíduos negros cotidianamente. Para discutir o racismo estrutural no Brasil, recorreu-se ao conceito de hegemonia, cunhado por Antônio Gramsci e amplamente utilizado pela escola de Birmingham. A ideia é elucidar as formas pelas quais o estado mantém o poder e o controle sobre os subalternos (nos termos de Spivak), valendo-se de instituições sociais (igrejas, escolas etc.) que reproduziriam a hegemonia de forma estrutural. No entanto, a hegemonia também pode constituir-se como ideias dominantes, repassadas e difundidas pela mídia na cultura. Do ponto de vista do marxismo, a hegemonia constitui-se como uma manifestação da imposição colonial.
No plano conceitual [, para o autor], a forma de combate à hegemonia (e às práticas de racismo na educação) é a promoção do reconhecimento da identidade (acompanhando a teoria de Tomás Tadeu da Silva), elaborada no interior de um mesmo grupo social, que a compreende em consenso. Pretende-se que as minorias reconheçam suas diferenças e consolidem identidades que lhes sejam próprias, particulares, lhes forneçam instrumentais para combater as estratégias de dominação que suprimem essas identidades em emergência. No plano educacional, portanto, busca-se a promoção do reconhecimento de identidades como forma de emancipação dos sujeitos subalternos ante a dominação cultural e na direção de uma abordagem multiculturalista e plural. Nesse ponto, o currículo torna-se a convergência (por contraposição) da hegemonia e da identidade, uma vez que se comporta como selecionador de tradições inventadas ao promover a escolha dos conteúdos ensinados, manifestando uma corriqueira característica de limitação à autonomia do professor. Embora sua prática docente deva promover a tolerância e o respeito ao diferente, este professor é compelido a aplicar a Pedagogia do Consenso prescrita no currículo, naturalizando (e silenciando) os conflitos sociais.
É em decorrência da Pedagogia do Consenso que os currículos reproduziram largamente construções historiográficas brasileiras. Ao abordarem o tema da escravidão, [o autor afirma que] foram produzidas diversas interpretações sobre a autorrepresentação dos escravizados, transitando entre uma perspectiva de democracia racial e uma concepção dos escravizados como objetos para serem tratados como sujeitos históricos. A concepção de uma (falsa ideia de) democracia racial, reforçadora do aspecto positivo da mestiçagem tomou corpo com a obra de Gilberto Freyre e consolidou-se como um dos principais marcos historiográficos brasileiros desde a década de 1930. Essa proposta veio em resposta a visão negativa da mestiçagem e a políticas de branqueamento, recorrentes na segunda metade do século XVIII, que elaboraram uma forma de consenso e convivência com os negros, persistente na história nacional. Essa visão só será contraposta a partir da década de 1960, com a historiografia marxista, que passou a destacar o aspecto violento da escravidão no Brasil, embora seguisse tratando os escravizados com anomia, como seres passivos ao cativeiro, objetos no interior da estrutura de exploração. Essa visão foi criticada a partir da década de 1980, com os trabalhos de Robert Slenes, Hebe Mattos e Sidney Chalhoub (inspirados pela historiografia thompsiana e pelos movimentos sociais negros), nos quais os escravizados passam a ser encarados como sujeitos históricos, agentes de práticas de resistência ao sistema escravocrata que pretendiam superar. É justamente na disputa de narrativas em torno do tema da escravidão que o racismo estrutural se revela no Brasil, justificando, assim, a importância da obra de Marcelo D’Salete.
No segundo capítulo, “A narrativa gráfica e historiográfica de Angola Janga”, [o autor] demonstra a presença da História nas HQs, a participação dos negros nessas narrativas. Ele se debruça sobre o conjunto da obra de Marcelo D’Salete, refletindo sobre a narrativa histórica que produz por dentro, estabelecendo diálogos com o debate historiográfico, culminando em Angola Janga. O ponto de partida dessa proposta é o reconhecimento de que a representação das identidades negras nas HQs, no Brasil, também possui uma história que precisa ser compreendida para, em seguida, pensar o valor e aplicação da obra de D’Salete no ensino de história. [Segundo o autor], desde seu surgimento, na década de 1950, as HQs refletiram cenários de naturalização da escravidão, da violência e do tratamento desumano praticado contra os negros, tratados como não-sujeitos ou seres passivos. Tal postura decorre do processo de invisibilidade dos negros na cultura de mídia no Brasil, algo que só começou a ser rompido no mercado gráfico a partir dos anos 2000, com o uso de HQs sobre as manifestações cotidianas de preconceitos e as precárias condições de vida dos afrodescendentes brasileiros, produzidas por cartunistas socialmente engajados como Novaes, Henfil e Edgar Vasques. Nessa mesma linha, [para o autor] as obras de D’Salete estiveram preocupadas em retratar a cultura afrodescendente, seus desafios contemporâneos e seu histórico de lutas, mediante um roteiro tenso e crítico que possibilita o protagonismo tanto de homens quanto de mulheres, efetivando-se como instrumento de combate ao racismo e ao machismo. Ao abordar temas como memória, experiência, acontecimento, testemunho, a obra de D’Salete manifesta grande valia ao ensino de História, aprofundando conhecimentos históricos e possibilitando espaços de fala aos subalternos (nos termos de G. C. Spivak), construindo um ensino reflexivo e emancipatório.
Ao analisar a obra de D’Salete, o autor retoma as primeiras publicações. Destaca que em Noite Feliz, D’Salete utiliza-se da violência e da urbanidade como arcabouço para retratar sujeitos subalternos agredidos pela condição social imposta pela hegemonia em uma boate da noite paulistana. A cidade de São Paulo, inclusive, assume protagonismo em Encruzilhada, segunda obra de D’Salete, na qual a urbanidade, a propaganda excessiva e o consumismo desenfreado afetam e compõem episódios do racismo estrutural manifestos na constante tensão perante a violência institucionalizada. Em Cumbe, foi originalmente pensado como parte inicial de Angola Janga, escravizados protagonizam a resistência ante a violência das senzalas brasileiras, buscando fugir das sombras da noite e da escravidão (elementos retratados pelos traços artísticos na aplicação de sombras de branco e preto) e efetivar a consolidação de suas identidades.
A última das obras analisadas, Angola Janga, publicada em 2017, conta a história do Quilombo de Palmares, pautada nos conflitos (entre quilombolas, negros escravizados, indígenas, portugueses, holandeses, paulistas) que formaram o Brasil por meio de um processo violento, de modo a explicitar que a liberdade do povo negro foi conquistada (e não concedida) pela luta e resistência ante as mazelas da escravidão.
Produzindo uma Pedagogia do Conflito, a partir da utilização de Angola Janga, o autor destaca que a representação da destruição de Palmares reflete um projeto elitista de concentração de terras e riqueza que via sua hegemonia ameaçada por um levante negro. A religião católica, de igual modo, colaborava para a produção e manutenção da hegemonia, confrontada com os princípios religiosos de sujeitos escravizados que se comportam como intelectuais orgânicos, atuando de forma contra-hegemônica. Angola Janga se encerra com uma ex-escravizada vivendo em situação precária nas periferias do Brasil, marcando a persistência do racismo estrutural e retomando o tema do cotidiano dos negros marginalizados das periferias paulistanas, que deram corpo à Noite Feliz e Encruzilhada. Nisso, Angola Janga está em consonância com a Nova Historiografia de caráter thompsiana que tomou corpo no Brasil, [é o que afirma o autor].
O terceiro capítulo, “Pensar a escravidão na educação: as possibilidades pedagógicas para o uso de Angola Janga”, concentra-se na proposta pedagógica de uso de Angola Janga na educação, partindo da reflexão sobre o tema da escravidão, elencando possibilidades. Inicialmente, o autor critica o formato positivista de uma determinação cronológica dos conteúdos, argumentando que isso dificulta (quando não inviabiliza) propostas por eixos temáticos, abordagens transversais e/ou interdisciplinares. Sugere a atenção aos interesses dos alunos, de modo que sejam protagonistas, construindo seu material didático e aprendendo de forma significativa. Com isso, lança mão da Pedagogia da Possibilidade (R. Simon), alinhada a uma Pedagogia Crítica, para pensar as HQs como uma tecnologia cultural produtora de sentido e de conhecimento. A partir daí, o autor vale-se da Pedagogia Histórico-Crítica (D. Saviani) para pensar uma educação escolar emancipatória, na qual a escola seja um instrumento de luta contra a marginalidade. Desse modo, é posta a necessidade de superação da alienação em uma educação não necessariamente escolar, mediante a promoção de uma educação para além do capital (I. Mészáros), integrando todos aqueles agentes sociais que buscam a transformação por meio da educação, institucionalmente ou não. Em busca de um ensino de história a contrapelo, suscitando uma narrativa do explorado, a promoção de uma educação popular, a Pedagoginga (A. Rosa), que se efetiva nas ruas e nas brechas do sistema, pode ser um importante instrumento para romper com a (auto)alienação, transformando a sociedade e a própria escola. O autor defende uma Pedagogia Cultural que recupere conhecimentos culturais trazidos pelos alunos para a escola que lhes sirvam de alicerce para a construção de suas identidades, combatendo práticas etnocêntricas e estereotipadoras. O autor ressalta que fora da escola há um mundo vasto e diverso que também educa significativamente.
Procurando alinhar a teoria e a prática pedagógica mediante o uso da linguagem de HQ, mais próxima da realidade dos alunos, o quarto capítulo, “Parte Propositiva”, apresenta o produto final da dissertação do ProfHistória, demonstrando formas de se trabalhar Angola Janga na sala de aula. A primeira proposta de sequência didática está alinhada à Pedagogia Histórico-Crítica e se estrutura em cinco etapas: prática social (reconhecimento da realidade dos alunos por meio de entrevistas, questionários, etc.), problematização (questionamento acerca da realidade social posta, introduzindo o tema da escravidão), instrumentalização (introdução do quadrinho e apropriação de instrumentos teórico-práticos para a resolução dos problemas), catarse (internalização dos conceitos mediante a leitura do quadrinho Angola Janga) e prática social (apropriação dos conteúdos para promover a transformação da realidade social inicialmente detectada).
A segunda proposta vincula-se ao Multiculturalismo Crítico, utilizando Angola Janga como uma tecnologia cultural capaz de aproximar o ensino da realidade social do aluno. Para tanto, parte de uma roda de leitura, que tem potencial para contribuir com uma alfabetização midiática. Posteriormente, o docente realiza o aprofundamento dos conteúdos históricos utilizando bibliografia especializada. Também sugere como aprofundamento a busca por intertextualidade com outras linguagens, como músicas de rap (o próprio autor a emprega a canção Pedagoginga, de Thiago Elniño, na epígrafe da [introdução]). A última etapa da proposta, [segundo o autor], poderia funcionar como instrumento de avaliação, na qual os alunos exporiam suas produções: quadrinhos, podcast, pintura, textos, slam etc.
Em ambas as sequências, articula-se ensino e cotidiano para a alteração crítica da realidade social dos sujeitos subalternos e marginalizados. Nisso, Angola Janga torna-se um instrumental poderoso ao trabalho docente no ensino de história, capaz de reelaborar narrativas, mobilizar identidades em construção e fomentar empoderamento e protagonismo juvenil.
De modo geral, a obra é de suma importância para se pensar os currículos formativos aplicados no ensino de história, as linguagens aplicadas para a produção de conhecimento histórico e as formas de ver, experienciar e dialogar com as realidades dos alunos que chegam nos bancos das escolas de todo o Brasil. Parte da importância desse trabalho reside no fato de refletir sobre culturas historicamente silenciadas e negadas na educação, sobretudo a cultura juvenil e a cultura afrodescendente. Não menos importante é a aplicabilidade revolucionária (embora esteja longe de ser uma novidade) da linguagem de HQ na sala de aula, principalmente ao utilizar uma premiada Angola e Janga, composta por um homem negro, para discutir narrativas sobre a negritude e o combate ao racismo. Em uma ação contra-hegemônica, a mediação do docente enquanto agente intelectual na sociedade terá a capacidade de promover e de instrumentalizar a transformação dos discursos subalternos de tantos jovens, negros, periféricos e/ou marginalizados, sedentos por romper com a estrutura racista de nosso país, fazendo dele um lugar mais justo, democrático e igualitário, de modo que todos possamos viver indistintamente uma cidadania efetivamente inclusiva.
Referências
BRAGA, Evandro José. Leitura da HQ Angola Janga no ensino de História: uma reflexão sobre o racismo e a escravidão. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória). 170f. Guarulhos: Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Humanas. 2020. Disponível em https://repositorio.unifesp.br/bitstream/handle/11600/64780/EVANDRO%20JOSE%20BRAGA.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 16 dez. 2022, 20:06.
D’SALETE, Marcelo. Angola Janga. São Paulo: Veneta, 2018.
D’SALETE, Marcelo. Cumbe. São Paulo: Veneta, 2018.
D’SALETE, Marcelo. Encruzilhada. São Paulo: Veneta, 2016.
D’SALETE, Marcelo. Noite luz. São Paulo: Via Lettera, 2008.
Sumário de “Leitura da HQ Angola Janga no ensino de história”
Para ampliar a sua revisão da literatura
Resenhista
Ruan Kleberson Pereira da Silva – Doutorando em História (PPGH) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professor da Rede de Educação Básica na Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte (SEEC-RN). Publicou, entre outros trabalhos, “A construção do Espaço Arquitetônico em palácios neoassírios (884-727 a.C.): Guerra e Ordem na Sala do Trono” [Põe aqui o link, se houver], em Espaço-Tempo: enredos entre Geografia e História, organizado por Alessandro Dozena e Eugênia Maria Dantas (EDUFRN, 2016); “Monumentalidade, conectividade e fluxo: o programa arquitetônico dos palácios neoassírios” [Põe aqui o link, se houver], em coautoria com Marcia S. Vasques, na Revista Research, Society and Development (2016); “Maria Centrífuga: a subversão do papel social da mulher em Maria da Vila Matilde de Elza Soares” [Põe aqui o link, se houver], em coautoria com Alana Medeiros, Ana Caroline Dantas e Juan dos Santos Silva, nos anais do VI Congresso Nacional de Educação (Editora Realize, 2019). ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/7999377274305709. ID Orcid: 0000-0001-9033-6496; E-mail: ruankpsilva@gmail.com; Facebook: ruankps; Instagram: @ruankps.
Para citar esta resenha
BRAGA, Evandro José. Leitura da HQ Angola Janga no ensino de História: uma reflexão sobre o racismo e a escravidão. São Paulo: Dialética, 2021. [Põe aqui o número de páginas]. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.9, jan./fev., 2023. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/por-uma-educacao-antirracista-resenha-de-leitura-da-hq-angola-janga-no-ensino-de-historia-uma-reflexao-sobre-o-racismo-e-a-escravidao-de-evandro-jose-braga/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-7
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