Ecos do Atlântico Sul | Omar Ribeiro

Em 1993 participei de uma reunião social na qual estavam presentes: um padre jesuíta do Timor, um professor de história da Universidade de Lisboa (nascido em Moçambique), um professor de literatura luso-americano judeu e eu, socióloga brasileira, carioca. Sentados na sala de uma casa de estilo new-england, em Providence, Rhode Island, conversávamos em português. De repente fui tomada pelo ineditismo daquela situação e pelo sentimento de espanto diante da extensão e da sobrevivência do que fora o império português. Aquilo se chocava com o imaginário do senso comum brasileiro, e meu também, que pensava Portugal como a “terra do avozinho”, bonitinha, atrasadinha, sem importância, uma peça da memória folclórica… Foi então, com esse novo registro, que assisti a algumas apresentações da pesquisa de Omar Ribeiro Thomaz e li, com o maior interesse, o seu livro Ecos do Atlântico Sul.

A área de pesquisa de Omar, seu saber sobre Portugal e África, é maior do que o tamanho desse livro. Penso que deve ter havido um enorme esforço para encaixar na narrativa a história portuguesa, a trajetória da antropologia, as múltiplas preocupações relativas aos Estados nacionais remanescentes do antigo império português e às culturas de seus povos. Ao dizer isso não quero diminuir o valor do livro, e sim aguçar nosso interesse por outros textos que certamente o autor irá publicar.

O treinamento na mirada antropológica — que oferece legitimidade ao tema dos encontros e desencontros entre europeus e sociedades africanas/asiáticas/americanas — permite que o autor faça funcionar, na análise de um caso particular e em um tempo de curta duração, um conjunto de questões trabalhado pela história, pela economia, pela sociologia e pela ciência política. O caso particular: a política salazarista que construiu a idéia de império para Portugal contemporâneo; o tempo: o período áureo entre o ato colonial de 1930 e a Exposição do Mundo Português em 1940.

Muitos autores entraram nessa conversa de Omar Ribeiro Thomaz com o seu tema. Mas creio que Edward Said foi uma inspiração maior e está presente ao longo de todo o texto, uma vez que sua análise de como o Ocidente ‘cria’ o Oriente é mesmo seminal. A historiografia sobre a história de Portugal está coberta no capítulo intitulado ‘De enclave a colônia’, e o desafio é compreender a posição de Portugal no início do século XX como senhor do terceiro maior império colonial em extensão. É frente a essa realidade que a idéia, a proposta ideológica do novo império se apresenta. As informações históricas vão sendo apresentadas de modo a dar fundamento à pretensão em curso.

A proposta envolveu também a produção de um saber colonial “que encontrou espaço em jornais, revistas e em congressos que tinham como objetivo sistematizar um conhecimento considerado ‘secular’ sobre as terras e as gentes do ultramar. Numa cena pública crescentemente controlada pela censura e pela repressão, um determinado tipo de pensamento procurava corresponder às exigências de um moderno império colonial, bem como reclamar do Estado uma intervenção mais eficaz nos grandes territórios africanos e recursos para as instituições encarregadas da formulação de um ‘saber colonial'” (p. 275).

Minha pouca familiaridade com a historiografia que trata o mundo português e mais ainda o africano é notável. Diante disso, vou destacar um dos capítulos do livro — ‘A festa’ — que trata da I Exposição Colonial Portuguesa de 1934, no Porto, e a Exposição do Mundo Português, em 1940, em Lisboa. Acho que, ao apresentar esse capítulo, conseguirei transmitir melhor a complexidade do tema e da trama tratados no livro.

Para traduzir a construção de um espaço pluricontinental e de uma mentalidade imperial, o autor reproduz, logo nas primeiras páginas do capítulo, a trama do filme Feitiço do império (1940) de António Lopes Ribeiro. “Agitado, o enredo se ambienta em distintos lugares. Francisco Morais, o ‘ricaço de Boston’, filho de uma próspera família lusitana emigrada aos Estados Unidos, decide, contrariando seu pai, naturalizar-se norte-americano. Os pais, inconformados de ver o filho abrir mão da sua nacionalidade, convencem-no a viajar à Pátria. … Em Lisboa, o herói com tudo se aborrece: a modorna da capital lusa, o fado (que encontra por todas as partes), o rádio, os restaurantes típicos… Sua viagem não acaba, contudo, no pequeno Portugal metropolitano, e Francisco viaja à África, atraído pela possibilidade da caça, da imensa paisagem (e apaixonado por uma moça branca do sul da colônia) que o herói se converte à ‘portugalidade’: o luso-americano se rende ao feitiço do ‘viver português’ e se recusa a abrir mão da nacionalidade” (p. 197).

O regime do Estado Novo português tinha como fundamento a trilogia ‘Deus, Pai e Família’, que se reificava em uma rígida moral católica, no controle dos costumes, na consolidação da relação hierárquica do pai (Salazar) com seus filhos (os portugueses). A novidade apresentada pelo autor, nesse livro, é como a idéia de império surge como pilar ideológico fundamental do regime e como as exposições serviram para organizar e disseminar essa idéia.

Nas exposições, o ‘drama glorioso’ que seria a história de Portugal e dos portugueses nos quatro cantos do mundo é apresentado como um verdadeiro ritual de massas. Nessa iniciativa estiveram envolvidas as principais figuras do regime: Salazar, António Ferro, o cardeal Cerejara e Henrique Galvão, entre outros. A promessa das exposições — desde a primeira, de Londres, em 1851 — era proporcionar a “volta ao mundo em um dia”. O autor nos lembra que foram as mostras etnográficas, parte das exposições universais, que deram origem aos ‘museus de antropologia’, partícipes do esforço de classificação e ordenação do mundo não-ocidental. Nas exposições eram apresentados ‘tipos vivos’ que representavam os diferentes estágios do desenvolvimento humano. ‘Aldeias nativas’ e ‘ruas orientais’ passaram a fazer parte da agenda das exposições.

O autor diz ter sido “em Paris, na Exposição Universal de 1878, que, pela primeira vez, indivíduos provenientes dos distantes territórios coloniais foram exibidos em pavilhões especialmente construídos” (p.206). Sabemos que a questão classificatória dos diferentes povos e o modelo evolucionista dominaram a cena no fim do século XIX, mas é preciso igualmente lembrar da exibição dos exóticos índios norte-americanos, originários da colônia portuguesa, na corte francesa de Henrique II e Catarina de Médici. Para muitos autores foi essa exibição do exotismo, no início do século XVI, que deu fundamento à teoria do bom selvagem.

Na Exposição Internacional Colonial de Paris, realizada em 1931, mostrava-se a excelência do ‘método colonial francês’, que procurava levar a civilização aos indígenas e os educava para a emancipação futura. O autor observa, entretanto, que, na França, tanto o colonialismo como o anticolonialismo têm longa história e se fazem presentes no debate público.

Se essa discussão sobre as qualidades dos diferentes colonialismos acontece nas exposições internacionais da época, como este debate se deu no caso de Portugal?

A I Exposição Colonial Portuguesa realizada em 1934, no Porto, ofereceu ao público lusitano o ‘império’, na forma de um grande espetáculo. Portugal no tempo e Portugal no espaço sintetizavam as coordenadas da mostra. Guiando-se por frases de Camões, como “Por mares nunca dantes navegados”, os pavilhões mostravam como a colonização portuguesa era tributária da experiência histórica. A política portuguesa para com os indígenas era considerada superior à praticada por outras potências coloniais, uma vez que seu fim último seria a incorporação plena dos ‘portugueses’ de todas as ‘raças’ a um patrimônio cultural comum — língua portuguesa e fé católica — capaz de elevar aqueles racial e culturalmente inferiores ao nível da civilização (p. 222).

Os nativos foram mostrados em habitações e aldeias típicas especialmente construídas, com seus ‘usos e costumes’ proporcionando um ‘retrato vivo’ de suas vidas além-mar. A presença dos nativos na exposição foi documentada por Domingos Alvão, cujas fotografias são também reproduzidas no livro de Omar.

Para os organizadores e intelectuais envolvidos nesse projeto, cabia discutir as duas faces do império: colaboração e assimilação dos povos que o compunham. Para o público da festa, contudo, o que mais atraía era a presença e afirmação do exotismo. O autor cita situações em que o comportamento do público português, supostamente o mais civilizado, entretanto, deixava a desejar, diante dos homens e mulheres seminus apresentados na exposição.

A identidade dos diferentes grupos que compunham o império (eram todos portugueses) pressupunha contudo a diferenciação hierárquica: metrópole/colônia; civilizados/atrasados. A hierarquia foi normatizada pelo ato colonial (transcrito em anexo do livro). O ato centralizava a administração colonial em Lisboa e transformava os territórios de ultramar em partes integrantes da nação, ao mesmo tempo que separava instituições metropolitanas e coloniais.

Um cortejo colonial encerrou a I Exposição. Era como se o império desfilasse mostrando os diferentes momentos da história portuguesa, povos de terras distantes e exóticas apresentados como portugueses. Lançando mão dos catálogos das exposições além de discursos e textos dos principais mentores da política portuguesa, o autor vai mostrando como se auto-representou o colonialismo português ao longo da década de 1930.

Na Exposição do Mundo Português, realizada em 1940, em Lisboa, comemorou-se um duplo centenário — o da fundação do Estado (1140) e o da restauração (1640). O autor nos lembra que a exposição aconteceu no momento em que a Espanha saía da guerra civil e em que já se iniciara na Europa a Segunda Guerra Mundial.

O livro vai apresentando também os conflitos internos entre modernistas e tradicionalistas dentro do Estado Novo português. Diferentes grupos e gerações de artistas e intelectuais (academicistas e modernistas) procuram, cada qual, preservar e ganhar novos espaços nas instituições de belas-artes, na imprensa e junto ao público. Os modernos conseguiram se proteger dentro do Estado autoritário e conservador, e nessa trajetória o autor destaca o importante papel de António Ferro, “impondo” os modernos.

António Ferro teve como desafio combinar o moderno — cosmopolita — ao nacional. Desejava afastar Portugal do tempo passado e queria encenar o dinamismo. Jornalista e escritor, admirador de Mussolini e de correntes artísticas como o futurismo de Marinetti, António Ferro ocupou a função de diretor do Secretariado Nacional de Propaganda em 1933. Foi ele quem garantiu o apoio da política cultural oficial aos modernos, atraiu diversos artistas para a Exposição, além de figuras como Almada Negreiros e Cottinelli Telmo para o Estado Novo português. Cottinelli Telmo, arquiteto escolhido como chefe da Exposição do Mundo Português, assumiu o monumentalismo clássico como forma de expressão do poder (p. 252).

A leitura desse conflito interno, as idéias e a atuação de António Ferro em Portugal nos fazem lembrar tanto de Lourival Fontes, diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, o famoso DIP, como de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, que atraiu uma geração de intelectuais e arquitetos modernos que passaram a ser incorporados ao Estado Novo brasileiro.

Do lado dos tradicionalistas estava o cardeal Cerejera, que reafirmava o papel da Igreja em Portugal e no mundo português. O Estado português assinara a Concordata e o Acordo Missionário com o Vaticano, permitindo que a presença da Igreja se tornasse ainda mais visível no país. Assim, o cardeal Cerejera, patriarca de Lisboa, deu apoio à causa de Salazar, entendida por ele como o reencontro de Portugal consigo mesmo e com a fé missionária que se manifestava nas províncias ultramarinas.

A descrição dos diferentes espaços e pavilhões leva o leitor a refazer uma viagem no tempo e no espaço. O livro reproduz o mapa do Plano Geral da Exposição realizada na esplanada de Belém, e o visitante de hoje ainda verá a imponência do monumento chamado Padrão da Descoberta, tendo ao fundo o mosteiro dos Jerônimos.

Se, na exposição do Porto, desejava-se criar um verdadeiro espírito colonial, na de Lisboa, nos diz o autor, enfatizava-se a existência de um mundo português. “A própria razão de ser de Portugal no presente … seria sua história de grandeza e a possibilidade de manter o seu império no futuro” (p. 255). Essa exposição “foi assim o auge prematuro de um regime que se prolongaria por mais três décadas” (p. 253).

Chamado de “suprema criação de Portugal”, “glória de sua energia e do seu gênio político”, o Brasil foi o único país estrangeiro com pavilhão próprio, ressaltando os laços históricos e espirituais que o uniam a Portugal. O pavilhão brasileiro, que escapava do monumentalismo da exposição, ficou a cargo do arquiteto português Raul Lino e estaria mais ligado à idéia de uma ‘casa portuguesa’, diz o autor. É preciso lembrar que a exaltação da aldeia, da casa portuguesa, do folclore é também uma das marcas do Estado Novo português. Fiquei me perguntando se esse arquiteto estaria mais ligado ao que se chamou de neocolonial no Brasil. Minha hipótese deriva da presença, no vestíbulo do pavilhão brasileiro, de uma fonte em motivos marajoaras, um dos temas valorizados na arquitetura neocolonial no Brasil.

As belas-artes brasileiras estiveram presentes com diversos quadros de pintura e esculturas do Museu Nacional de Belas-Artes (reduto dos acadêmicos) e também com obras de alguns modernistas, especialmente Portinari, que, com o célebre quadro O café, gerou inúmeros debates e reforçou o movimento modernista em Portugal. Essa diversidade nos faz igualmente lembrar as divergências internas entre tradicionalistas e modernistas, entre acadêmicos, neocoloniais e modernos no espaço do nosso Estado Novo.

Na construção da idéia do terceiro império português o Brasil dizia respeito a momentos antigos da história portuguesa e muito pouco teria a ver com a colonização do século XX. O Brasil era ‘entrave’, pois atraía os migrantes que Portugal queria canalizar para as colônias africanas. Por outro lado era ‘miragem’, já que funcionava como exemplo de ‘futuro possível’, como país do ‘encontro feliz’ de três grupos étnicos com a supremacia ‘ariana e lusitana’.

Esse tema referente à posição do Brasil é retomado no livro quando o autor qualifica com melhor precisão a recepção de Gilberto Freyre no universo cultural português. A partir dos anos 1930, principalmente com a publicação de Casa grande & senzala, passou-se a interpretar a herança africana como positiva no Brasil, e o mulato passou mesmo a ser visto como o dinamizador da formação da nacionalidade. Essa visão positiva da mestiçagem, contudo, era recebida com cautela em Portugal dos anos 1930 e 1940. A gradual assimilação era desejada, mas a mestiçagem não poderia ameaçar a ‘essência’ da nacionalidade. Ou seja, dever-se-ia evitar a ‘mestiçagem desenfreada’. A interpretação do Brasil proposta por Gilberto Freyre foi mesmo rejeitada num primeiro momento em Portugal.

O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre envolve quase uma ‘antropofagia de mão dupla’. Para ele a lusitanização do nativo se daria da mesma forma que o colono se americaniza, se africaniza, se orientaliza. Em sua viagem pelos territórios portugueses, que deu origem ao livro Um brasileiro em terras portuguesas, e em suas conferências, Freyre enxerga uma identidade dada pela natureza tropical e pela presença portuguesa, vê “Brasis em gestação”. Sua interpretação reforça a unidade de sentimentos e de cultura entre Portugal, Brasil, Índia portuguesa, Madeiras, Açores e Cabo Verde. Nos anos 1950 o luso-tropicalismo, que fora aceito com reservas nos anos 1940, passou a ser quase a ideologia do Estado português.

O livro de Omar Thomaz Ribeiro consegue nos mostrar como os ecos do Atlântico Sul, vindos do Brasil e da África, se fizeram ouvir no projeto colonial português, em seu sonho de ser um império colonial. Esse mesmo sonho que mais tarde se tornaria pesadelo. “À moda dos mitos, o projeto colonial português do século XX passa a dizer respeito ao passado, ao presente e ao futuro de Portugal. Daí, talvez, possamos depreender seu sentido trágico que acabará por lançar africanos e portugueses em mais uma década de guerra” (p. 80).


Resenhista

Lúcia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Comunicação de História Contemporânea do Brasil. Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). E-mail: llippi@fgv.br


Referências desta Resenha

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: UFRJ; Faperj, 2002. Resenha de: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Sonho-realidade do império colonial português. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.11, n.1, jan./abr. 2004. Acessar publicação original [DR]

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