Economia política internacional de Sul a Norte: desafios para a agenda global em um contexto de crises e instabilidade | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2016
Praticamente uma década após o estouro da bolha especulativa do setor imobiliário norte-americano, que deflagrou a mais grave crise financeira global desde o crash da Bolsa de 1929, o mundo ainda vive o sob efeitos da crise. De maneira preocupante, analistas e investidores vivem a expectativa de momentos de grande instabilidade no sistema financeiro da China, vistos os indícios de que a nação que apresenta maior grau de dinamismo na economia e comércio internacional não deva manter seu ritmo de crescimento e consumo nos próximos anos, cujo efeito cascata deve ser sentido em todo o mundo, mas afetará largamente os integrados mercados do sudeste asiático.
Somado a esse clima de apreensão em relação ao principal motor da economia global na última década, o quadro para algumas das demais economias emergentes da periferia do sistema, responsáveis por sustentar boa parte dos fluxos globais nos anos pós-crise, é bastante complicado em virtude de questões de ordem política, tanto no âmbito doméstico quanto no internacional. Na América do Sul, rupturas nas ordem institucional em diversos países, tendo Brasil e Venezuela como expoentes do momento, aprofundam o cenário de crise econômica e política, e dificultam um projeto de integração política, econômica, comercial e produtiva. Na Rússia, disputas no campo geopolítico ofuscam alternativas de retomada econômica do país e um projeto de desenvolvimento para toda região da Ásia Central.
No centro, a Europa, por sua vez, além de lidar com os impactos sociais e políticos da última crise ainda não superados na zona do Euro, sobretudo junto às economias mais vulneráveis, passa a ter que lidar com a ameaça de desmantelamento de seu processo de integração regional, que pode ser desencadeado a partir da consolidação da saída britânica da União Europeia. Ademais, o bloco não consegue apresentar respostas satisfatórias à caótica situação de migração em massa de refugiados, reflexo da profunda crise humanitária em que se encontram regiões do Oriente Médio e da África, que não vislumbram horizontes positivos em meio a cenários de guerra civil e intensa pauperização de massas populacionais.
Nos Estados Unidos, a despeito dos sinais de retomada do crescimento que foram emitidos nos últimos anos, a dinâmica que levou à irracionalidade de seu sistema financeiro não sofreu alterações, e a sucessão na Casa Branca oferece mais instabilidade ao cenário econômico global, sobretudo mediante o discurso protecionista e isolacionista do presidente eleito, o republicano Donald Trump. Diante desse quadro, os fluxos comerciais transnacionais, as negociações de acordos multilaterais, os processos de integração econômica e as soluções globais concertadas, devem perder espaço para ações unilaterais e estratégias nacionais de prevenção e recuperação das crises. Nesse sentido, a Revista Monções buscou contribuir com o delicado momento da conjuntura econômica contemporânea propondo à comunidade acadêmica de Relações Internacionais de nosso país uma reflexão sobre o quadro atual a partir do Dossiê ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL DE SUL A NORTE.
A abertura do dossiê se dá com a publicação do texto do professor Luis Manuel Fernandes (IRI-PUC/Rio) que subsidiou a conferência Da Transição na Ordem Mundial à Ruptura na Ordem Democrática Nacional, proferida como aula inaugural do semestre no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), no último mês de setembro. Na sequência da consumação do processo político de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o cientista político e ex-Secretário Executivo do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação discute a conjuntura política e econômica global, defendendo que a mesma passa por forte instabilidade como reflexo de seu estado de transição, em virtude da erosão do poder hegemônico das potências dominantes, visto que “a dinâmica estrutural de desenvolvimento desigual mina continuamente as bases da ordem mundial estabelecida”, uma vez que “[as] estruturas geopolíticas de dominação e governança internacional não refletiriam mais a configuração geoeconômica mundial”. Nesse sentido, segundo Fernandes, a crise institucional pela qual passa o Brasil deveria ser lida sob as lentes desta disputa sistêmica, pois, “[a] contraofensiva conservadora no continente – com recurso crescente a métodos e alternativas antidemocráticas – se relaciona à resposta dada pelas potências centrais, em particular os Estados Unidos, à erosão do seu poder hegemônico”.
Tratar a economia política internacional contemporânea como uma fase de transição implica avaliar os atores e temas que emergem desse processo. Para isso, diversos especialistas trouxeram suas contribuições de forma temática, mas dentro de um amplo escopo de compreensão da conjuntura internacional. Marcos Costa Lima e Joyce Ferreira da Silva, ambos do Instituto de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no artigo Da Modernidade pós-colonial e das relações da América Latina com a China em um novo contexto mundial, trazem a literatura pós-colonialista para auxiliar a compreensão dos aspectos geopolíticos, comerciais, diplomáticos e culturais que formam a base das novas relações entre chineses e latino-americanos. Notadamente, como dizem os autores, no esforço de “fazer frente às imposições do capitalismo central”, mas também buscando oferecer ferramentas teóricas para que a América Latina desenvolva maior poder de barganha e capacidade de ação incisiva junto ao parceiro asiático.
Ainda no esforço de compreensão desse período de transição hegemônica da ordem econômica internacional, Marcos Cordeiro Pires e Thais Mattos, ambos da UNESP-Marília, recorrem à literatura da Economia Política dos Sistemas-Mundo para apresentar os principais elementos de rivalidade entre Estados Unidos e China na região da Ásia-Pacífico, com o artigo Reflexões sobre a disputa por hegemonia entre Estados Unidos e China na perspectiva do capitalismo histórico. Para os autores, a disputa se dá de maneira evidente na região, seja pelo lado chinês, “buscando reforçar laços com seus vizinhos buscando incorporá-los a iniciativas de cooperação regional, como o Cinturão Econômico da Rota da Seda, a Rota da Seda Marítima e o Corredor Econômico do sul da Ásia” ou implementando “iniciativas para contrabalançar o poder financeiro dos Estados Unidos, como o Novo Banco de Desenvolvimento, criado pelos países dos BRICS, a recente inclusão do Yuan/Remimbi como moeda de reserva internacional e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB)”; seja pelo lado norte-americano, que “desde 2010, (sustenta) uma maior atuação nessa região, não apenas no sentido de aumentar sua presença militar, mas de reforçar os laços com aliados para refrear a ascensão chinesa”, bem como pelo seu “interesse declarado em inserir-se com mais afinco nas questões que envolvem a região”, como por exemplo a partir da Transpacific Partnership (TPP), que deve oferecer novos contornos a dinâmica comercial no Oriente.
Gustavo Erler Pedrozo, também da UNESP, analisa os mecanismos de cooperação da China através da perspectiva da Cooperação Sul-Sul no artigo As relações China-América Latina pelo prisma da cooperação sul-sul para o desenvolvimento. De acordo com Pedrozo, apesar da institucionalização do fórum China-CELAC, a cooperação entre chineses e latino-americanos se dá por meio de agendas bilaterais, tendo como principais destinos Venezuela, Brasil, Argentina e Equador, “países ricos em recursos naturais”. Além disso, destaca que a China aplica diferentes padrões de cooperação sul-sul nas diversas regiões do mundo, e seu enfoque na América Latina “concentra-se em projetos voltados para infraestrutura e energia”.
Não obstante a importância que a China e a disputa hegemônica com os Estados Unidos no âmbito da economia global possuem na análise do quadro contemporâneo, os pesquisadores presentes neste dossiê se dedicaram também a outros temas essenciais para a compreensão do cenário atual. Nesse sentido, Thiago Lima da Silva (Universidade Federal da Paraíba) e Alexandre César Cunha Leite (Universidade Estadual da Paraíba) com o texto Estrangeirização de terras: um questionamento à cooperação na ordem econômica internacional contemporânea? abordaram um fenômeno ainda pouco explorado pela literatura acadêmica no Brasil, o Land Grab, ou a aquisição de terras em larga escala por empresas, governos e indivíduos estrangeiros. Como observam Lima e Leite, ainda que exista enorme dificuldade em sistematizar e qualificar esse fenômeno, como demonstram apresentando o estado da arte da discussões em periódicos internacionais especializados, a questão tem apresentado grande controvérsia junto a Organismos Internacionais, Organização Não-Governamentais e governos de países do chamado mundo em desenvolvimento. Sobretudo, por ser um tema que toca sensivelmente questões como “controle da água, de minérios, petróleo e gás, de posições geopolíticas estratégicas, a especulação imobiliária, ou simplesmente da manutenção de terras ociosas, visando o mercado de créditos de carbono”, além do foco mais específico escolhido pelos pesquisadores para o artigo deste dossiê: o abastecimento agroalimentar. Ademais, trazem um interessante arcabouço teórico para emoldurar a questão dentro de discussões sobre cooperação e dilemas da incerteza e da insegurança no campo da política internacional, abrindo fértil agenda de pesquisa para estudos futuros.
Karen Fernandez Costa (UNIFESP), Henrique Menezes (Universidade Federal da Paraíba) e Marcela Franzoni (PPGRI-STD) exploram em Inovação e desenvolvimento: a importância das Relações Internacionais um tema fundamental em momentos de crise e instabilidade econômica internacional, mas ainda pouco abordados a partir da perspectiva do campo das Relações Internacionais. Ferramenta considerada fundamental pela literatura acadêmica em projetos consolidados de desenvolvimento econômico e como estratégia catching-up para países emergentes, a política científica e tecnológica pouco figura nos manuais e principais obras da área de Economia Política Internacional. Todavia, como observam os autores “se é evidente a importância do ambiente nacional e, ainda que nela haja o reconhecimento da capacidade de produzir inovação como um dos elementos explicativos das diferenças de performances entre firmas, regiões e países, pouca atenção foi dada ao meio internacional e à relação entre países e regiões”. Nesse sentido, incorporar ao estudos sobre inovação e política científica e tecnológica ao campo da Economia Política Internacional na área de Relações Internacionais trará enormes ganhos para os estudos sobre o tema, uma vez que “ além da capacidade de conformação de um ambiente doméstico integrado e adequado à transformação produtiva, as relações econômicas internacionais e as regras internacionais que as regulam também incidem sobre o desenho das instituições domésticas, o acesso e absorção de recursos e conhecimento”. Ao abordar experiências de diferentes países na maneira de lidar com políticas de inovação e desenvolvimento técnico-científico, como Estados Unidos, México, Coreia do Sul e Brasil, o texto reforça a necessidade de instrumentos afeitos à área de Relações Internacionais para complementar estudos de instituições e capacidades estatais na constituição de seus sistemas nacionais de inovação.
Outro assunto abordado de maneira inovadora no dossiê trata-se da política de flexibilização monetária promovida pelos Estados Unidos a partir de 2008, na esteira da crise financeira, como apresentado no texto A moeda como um instrumento da supremacia americana: o caso do Quantitative Easing, de Aline Martins, da Universidade Federal da Goiás (UFG). Martins, de posse de um conjunto de dados estatísticos de agências federais norte-americanas e organismos internacionais, reconstitui os principais movimentos do FED, a reserva federal norte-americana, para, valendo-se de seu poder estrutural no sistema monetário internacional, oferecer um pacote de estímulos com o “objetivo de combater os efeitos internos da crise”. Como observou a autora, “Apesar dos impactos internacionais, muito deles indesejáveis, principalmente para os países de economias mais vulneráveis, deficitárias e com baixas ou sem reservas internacionais, os Estados Unidos não deixam de adotar as políticas monetárias que acreditam ser fundamentais para a recuperação da economia americana. A magnitude das consequências internacionais de suas ações no campo monetário-financeiro reflete a centralidade do dólar na economia global e como a moeda, longe de ser um instrumento neutro, relacionado somente à facilitação das transações econômicas, está intrinsecamente vinculado ao poderio americano nas relações monetárias e financeiras internacionais”. Desse modo, despeito dos debates todos sobre a crise hegemônica dos Estados Unidos e a possibilidade de transição na ordem internacional, chega a algumas conclusões, dentre as quais a de que a política do Quantitative Easing e seus efeitos globais indesejáveis decorrentes indicam que “O sistema monetário e financeiro internacional centralizado em torno do dólar não parece estar perto do fim”.
Finalizando o conjunto de artigos que compõem o dossiê, os professores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Filipe Almeida do Prado Mendonça e Haroldo Ramanzini Júnior, discutem os mecanismos de formulação de política comercial externa, o processo decisório, os desenhos institucionais e as especificidades históricas das duas principais economias das Américas em A Política Comercial Externa do Brasil e dos Estados Unidos: formulação, instituições e especificidades. De acordo com Mendonça e Ramanzini Júnior, “há uma variação significativa nos dois casos no que tange ao papel do Congresso e dos partidos políticos, a permeabilidade à atuação dos grupos de interesse das instituições que lidam com o tema do comércio internacional, bem como no desenho institucional, na cultural organizacional das burocracias que lidam com a questão das negociações internacionais e, em última instância, no tipo de engajamento internacional de cada país”. Contudo, observam ainda que “o sucesso ou fracasso de uma demanda internacional, muitas vezes relaciona-se mais com outros fatores, como as regras do regime em questão, a quem esta demanda é dirigida e ao poder de barganha dos países envolvidos, do que propriamente à estrutura doméstica que articula essa demanda, ainda que esta não seja irrelevante, inclusive, do ponto de vista da implementação de acordos”. Dessa forma, o texto oferece instrumentos analíticos para aqueles que pretendem se dedicar à análise comparada de trajetórias em negociações bilaterais ou multilaterais e desempenho em contenciosos comerciais de Brasil e Estados Unidos.
Mantendo a tradição da revista, apresentamos três resenhas dentro do escopo do dossiê. A primeira delas é de Pedro Antonio Vieira, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo. Vieira resenha o livro Semiperiferia: uma revisitação, do professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB), Antonio José Escobar Brussi, debatendo as interpretações apresentadas pelo autor a respeito do conceito cunhado por Immanuel Wallerstein e posteriormente explorado por Giovanni Arrighi. Na sequência, Lucas de Almeida Carames, mestre pelo Programa de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI-UFRJ), com a resenha Crise econômica, manutenção política apresenta o livro The Status Quo Crisis – Global Financial Governance After the 2008 Financial Meltdown, de Eric Helleiner. Carames demonstra como Helleiner propõe uma avaliação da estrutura e arquitetura do sistema monetário e financeiro internacional a partir das lentes da política que perpassa a governança financeira global. Por fim, Marcos Antonio da Silva (UFGD) e Lucimara Inácio do Prado da Silva (UEMS) oferecem aos leitores uma enorme contribuição para que os acadêmicos brasileiros conheçam a excelente coleção de obras de autores de nosso continente publicada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Na resenha Entre a razão e a utopia, entre a ira e a esperança: CLACSO e a (re) descoberta do pensamento latino-americano Silva e Prado indicam as obras que compõem as coletâneas Antologias do Pensamento Crítico Contemporâneo e Antologias do Pensamento Social Latino-Americano e Caribenho, que segundo os autores, são capazes de instigar a construção de um pensamento próprio e crítico para a América Latina, e devem ser conhecidas e apropriadas pela comunidade científica e intelectuais de nosso país.
Completando o dossiê, Fabrício Chagas Bastos (Universidad de los Andes-COL) e Matthew Rogers (Australian National University) realizaram a tradução do artigo Consensual hegemony: theorizing brazilian foreign policy after the Cold War, do professor da School of Politics and International Relations da Australian National University, Sean Burges. Seu artigo, publicado originalmente no ano de 2008, na prestigiada revista International Relations, é uma das principais referências no estudo da política externa brasileira contemporânea, e agora está disponível também em língua portuguesa, ampliando a possibilidade de acesso a seu conteúdo.
Por fim, o atual número da Monções também conta com três artigos publicados de acordo com o fluxo contínuo da revista. São eles: O desenvolvimento de um regime de segurança sino-russo para a Ásia Central, de Flávio Augusto Lira Nascimento, professor do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA); Cooperação técnica entre Japão e Brasil e entre Brasil e Timor Leste em perspectiva comparada, de Nanahira de Rabelo e Sant’Anna, Doutoranda em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional e pesquisadora do Núcleo de Estudos Asiáticos da Universidade de Brasília (NEÁSIA-UnB), e Hegemonia e contestação em Caetano Veloso e na teoria crítica neogramsciana de Robert Cox: uma análise de arte e política da ordem mundial pós-Guerra Fria, de Junior Ivan Bourscheid, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Agradecemos a todos pareceristas ad hoc que dedicaram atenção e trabalho à nossa revista e contribuíram com a excelência do número que vem a público, bem como aos editores da Revista Monções pela confiança em nosso trabalho e por abrir espaço para a publicação do dossiê Economia Política Internacional de Sul a Norte. Desejamos a todos uma ótima leitura!
Organizadores
Hermes Moreira Júnior – FADIR/UFGD.
Roberto Goulart Menezes – IREL/UNB.
Referências desta apresentação
MOREIRA JÚNIOR, Hermes; MENEZES, Roberto Goulart. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.5, n.9, p.1-5, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]