Para Brisola e Romeiro (2018, p. 3), na contemporaneidade, a informação tem se proliferado e circulado em quantidade e velocidade extraordinárias, o que, muitas vezes, dificulta o entendimento em relação a quais informações podem ser reconhecidas enquanto um discurso correspondente a fatos e quais são fake news.
Nessa senda, há uma necessidade e uma urgência em produzir e exibir notícias no tempo presente, principalmente nas mídias digitais. É nesse contexto que o livro E se fosse você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news se insere. A obra não ficcional produzida pelo Instituto E se Fosse Você foi lançada em 2020 e está em sua primeira edição. Nela são apresentados temas como mulheres na política, a disseminação de fake news, discursos de ódio, redes sociais e memes de internet.
A autora, Manuela Pinto Vieira D’Ávila, foi candidata à vice-presidente da República, em 2018, pela aliança entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em 2020, concorreu à prefeitura de Porto Alegre/RS, ficando em segundo lugar e tendo sua campanha marcada pelas fake news. Jornalista, formada pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), possui quatro livros publicados, sendo três deles de sua autoria e um como organizadora: Revolução Laura, lançado em 2019 pela editora Belas Letras, tendo a sua experiência com a maternidade como tema principal; Por que Lutamos? Um livro sobre amor e liberdade, lançado no mesmo ano pela editora Planeta, que aborda o tema do feminismo; E se Fosse Você? Sobre redes de ódio e fake news, lançado em 2020; e, como organizadora, Sempre Foi Sobre Nós: Relatos de Violência Política de Gênero, lançado em 2021 e também publicado pelo Instituto E Se Fosse Você. Vale destacar ainda, que Manuela D’Ávila exerceu cargos políticos, tendo sido vereadora em Porto Alegre em 2004, deputada federal de 2007 a 2015 e deputada estadual de 2015 a 2019.
Motivada por sua vivência enquanto alvo de inúmeros discursos fraudulentos, durante a sua candidatura à vice-presidência da República, D’Ávila escreveu E se fosse você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news. De forma coloquial, são trazidos ao debate questões complexas como pós-verdade, política de cancelamento, violência política de gênero, preconceitos, entre outros temas sensíveis. Por meio de imagens – memes, fotos e prints –, são explicitados os discursos de ódio e de desinformação que circularam nas mídias digitais, o que problematiza essas questões, com seus leitores, já que exemplifica os mecanismos discursivos utilizados na produção das fake news.
Com um sumário contendo 21 capítulos, todos sucintos, a obra convida à interlocução. A pergunta que o intitula é reiterada ao longo de todo o texto, como um chamado à empatia e à alteridade: E se Fosse Você?
Utilizando um fragmento de Como La Cigarra, poema da artista argentina Maria Elena Walsh, D’Ávila inicia o texto. Fala de forma metafórica das muitas vezes que a mataram (ou assim tentaram fazer) ao produzirem e divulgarem notícias fraudulentas a seu respeito. Mas, como no poema, a autora segue ressuscitando e sobrevivendo ao discurso de ódio e das fake news. É como uma sobrevivente que ela se coloca e busca revelar a dimensão violadora de direitos humanos ofertada pelas notícias falsas, o que evidencia discursos preconceituosos revestidos de humor, ou o uso recreativo de preconceitos.
O prefácio foi feito por Felipe Neto, youtuber brasileiro, popular entre os jovens e também alvo de fake news. O que demonstra interesse em contemplar um público mais amplo do que o acadêmico e/ou intelectual e dos movimentos sociais organizados. Inclusive, não é a primeira vez que Manuela D’Ávila tem um prefácio assinado por uma figura pública: em seu livro Por que Lutamos?, Maria Ribeiro, atriz que também é popular entre os jovens, executou essa tarefa.
Na introdução do livro Sobrevivendo às Notícias Fraudulentas, D’Ávila fala sobre como é viver cotidianamente sob a régia das fake news. Sentimentos como vergonha, dor e medo são constantes. Ao afirmar, no prelúdio do primeiro capítulo, que suas batalhas são as de ideias e não as de armas (D’ÁVILA, 2020), a autora problematiza uma das muitas notícias fraudulentas em que sua imagem é associada a práticas de violência, o que implica no entendimento do conceito de pós-verdade.
Para entender melhor, o dicionário Oxford (2021) diz que pós-verdade é “um adjetivo relacionado ou evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou crenças pessoais”. Considerando a pós-verdade enquanto algo que está para além dos fatos e de seu contexto histórico, a expressão foi escolhida como a palavra do ano em 2016 pelo referido dicionário.
Sua potencialidade seria capaz de embaralhar as disputas narrativas dos acontecimentos históricos ao ponto de transcender uma ideia de verdade, evidenciando motivações de caráter subjetivo na constituição de um parecer público.
Junto a esse debate, D’Ávila traz à cena outro conceito interessante: as chamadas fake news, tendo em vista que determinados sujeitos se utilizam de informações falsas ou descontextualizadas para promover a pós-verdade, uma vez que, diante de um contexto fraudulento, apelos emocionais ou de cunho pessoal importam mais do que propriamente a veracidade do fato noticiado.
Cabe destacar que fake news e pós-verdade não são sinônimos, mesmo possuindo efeitos semelhantes no público em geral e podendo estar articuladas deliberadamente. Ferreira Filho (2018, p. 79) diz que:
Fake news são afirmações que têm a forma de notícia, mas de conteúdo completa ou parcialmente falso, outrora irresistíveis à evidência, orientadas por motivação política e intencionalmente fabricadas para desinformar ou enganar a fim de manipular a opinião pública.
Silva (apud D’ÁVILA, 2020) considera o caráter intencional na produção de informações fraudulentas, assim como objetivos a serem alcançados e fins específicos. Fake news, nesse entendimento, possuem a intencionalidade em promover desinformação e, nos casos apresentados na obra, disseminação de ódio.
Deve-se atentar para o fato de que as notícias falsas sempre circularam nos discursos sociais, principalmente no espaço da imprensa. Porém, na contemporaneidade, o modo de produzir e disseminar fake news destaca-se pelo uso dos recursos midiáticos, por meio da internet e do seu expressivo impacto social.
Nos capítulos Até Onde o Ódio Pode Chegar, Racismo e Fake News e Mulheres Santas Versus Mulheres Feministas: O Ódio às Mulheres como Fio Condutor das Notícias Fraudulentas, são citados outros casos de pessoas que foram alvos de fake news. Como Lola Aronovich, a deputada Maria do Rosário, Jean Wyllys e Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro que sofreu uma execução política (PETRONE, 2021) em 2018.
É preciso levar em conta o que há em comum entre esses sujeitos que tiveram suas vidas impactadas por fake news. Os exemplos mencionados são de pessoas que ocupam ou ocuparam lugares de poder e de decisão e assumem uma postura de enfrentamento a discursos preconceituosos, machistas e neoliberais. Seja enquanto professora universitária ou agente político, aqueles que assumem pautas feministas, que lutam pela garantia de acesso a direitos sexuais e reprodutivos, ao enfrentamento às desigualdades sociais, o reconhecimento da diversidade sexual, a laicidade do Estado e demais questões progressistas estão mais vulneráveis à produção de notícias fraudulentas, como ressalta D’Ávila (2020, p. 66): “Pensar em fake news é necessariamente pensar nos preconceitos que estruturam a sociedade, que no caso do Brasil, além do racismo e LGBTfobia, é pensar em machismo e misoginia”.
Isto implica em refletir sobre quem são os sujeitos legitimados historicamente a ocuparem os espaços políticos e de poder em nosso país. Por que determinados corpos/performances encontram tanta dificuldade para existirem nesse lócus de poder e, quando acessam determinados cargos e posições sociais, são alvos de inúmeras violências?
Segato (2012, p. 108) diz que: “[…] testemunhamos hoje um momento de tenebrosas e cruéis inovações na forma de vitimar os corpos femininos e feminizados, uma crueldade que se difunde e se expande sem contenção”. Portanto, consideramos a utilização de fake news nas plataformas digitais como um dispositivo contemporâneo e estratégico em vitimizar mulheres, corpos/performances feminizados ou até mesmo aqueles que assumem uma postura de apoio e reconhecimento social às mulheres.
As fake news, nesse sentido, reconfiguram a violência de gênero ao contemplarem a dimensão midiática de sua narrativa, o que amplia significativamente as proporções inventivas e violadoras de seu discurso. Deve-se atentar também, que as fake news não se restringem ao espaço-tempo midiático, pois estimulam a violência para além do ambiente virtual. Como mencionado anteriormente, as fake news não são práticas discursivas historicamente recentes – elas fazem parte da história da humanidade, porém, diante dos avanços tecnológicos e do seu impacto em nossas vidas, as fake news redimensionam e amplificam os sentidos do que noticiam.
Dessa maneira, as fake news são dispositivos estratégicos que atuam de forma a atingir corpos/performances que desafiam a determinação estrutural dos espaços sociais estabelecidos pelo patriarcado, como fala Biroli (2018, p. 210):
Os muros que delimitam a participação política feminina são feitos, também, dos estereótipos femininos negativos e a violência física e simbólica que constrange e pune aquelas que “ousam” participar dos espaços tradicionalmente masculinos do exercício político.
Seguindo na sua premissa, D’Ávila problematiza também o uso da fé pelas fake news, a pedofilia enquanto a rainha das notícias fraudulentas, a cadeia produtiva de informações falsas, os gabinetes de ódio espalhados pelo Brasil e a política do cancelamento. Ao abordar essas questões, a autora chama atenção para a importância da religiosidade em nossas vidas, destacando que o ato de associar informações falsas ou descontextualizadas que, de certa maneira, afrontam a inclinação religiosa de determinados coletivos, é uma estratégia muito utilizada na produção de fake news.
A pedofilia também é explicitada como um elemento recorrente em discursos fraudulentos. D’Ávila lembra que Felipe Neto, Jean Wyllys e Maria do Rosário foram alvos de fake news que os conectavam à pedofilia. Nessa senda, as fake news buscam promover um terror ou pânico moral (MISKOLCI, 2007) entre os sujeitos que compartilham e acessam essas notícias.
Ademais, a utilização de robots ou bots pela indústria da fake news é apresentada como um elemento a ser considerado pela autora. Por meio de programas específicos são realizadas ações repetitivas em que determinados conteúdos são publicados nas mídias digitais. Isto implica em manter um discurso em constante exposição, promovendo sua narrativa, mesmo que fraudulenta.
Outro elemento mencionado é o acesso a informações pessoais que as empresas de mídias digitais possuem sobre seu público. Assim, propagandas, informações e notícias são estrategicamente apresentadas de forma a dialogar com determinado perfil, o que implica em especificar quais fake news possuem mais chance de impactar o público-alvo.
Caminhando para a finalização do livro, D’Ávila problematiza a existência dos “gabinetes de ódio” espalhados por todo o território nacional, responsáveis pela criação e desenvolvimento das fake news. Ao explicitar a existência de um lócus responsável pela produção de notícias falsas, a autora evidencia uma estrutura produtiva a seu respeito que é mantida por recursos financeiros e políticos. Outrossim, faz um alerta para a necessidade de diferenciação entre aqueles que intencionalmente promovem as fake news daqueles que as compartilham de forma despretensiosa, acreditando realmente na veracidade da informação acessada.
A política do cancelamento é apresentada por D’Ávila como rompimento ou interrupção de apoio a determinado sujeito, empresa ou instituição, por sua postura ou modo de agir que pode ser considerado inadequado. Para ela, a política do cancelamento é tão nefasta quanto as fake news. D’Ávila reforça a necessidade do diálogo enquanto meio capaz de promover o esclarecimento das informações fraudulentas e de possibilidade de transformação social. Assim, acolher as dúvidas e a desinformação daqueles que são cooptados pela indústria de fake news é urgente.
Vale lembrar que Chimamanda Ngozi Adichie (2017) já nos alertava sobre o perigo de uma história única que assuma o espaço-tempo universal e monolítico. Que, ao ser narrada, desconsidere todas as outras histórias possíveis. Podemos dizer que D’Ávila tensiona esse debate ao problematizar as fake news na elaboração de uma história que se coloca como única e torna-se uma pós-verdade, o que nos faz pensar sobre o impacto da história em nossas vidas e da necessidade de constante atenção para entender o engendramento das narrativas que chegam até nós, pois não há neutralidade política diante da elaboração de notícias e na produção de discursos históricos.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Instituto Federal Minas Gerais, 2017. Disponível em https://www2.ifmg.edu.br/governadorvaladares/noticias/adelia-a-poesia-e-a-vidaconvite-para-o-3o-encontro-do-dialogos/o-perigo-de-uma-historia-unica-chimamandangozi-adichie-pdf.pdf. Acesso em: 22 abr. 2021.
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
BRISOLA, Anna Cristina; ROMEIRO, Nathália Lima. A competência crítica em informação como resistência: uma análise sobre o uso da informação na atualidade. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, v. 14, n. 3, 2018. Disponível em: https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/1054. Acesso em: 15 abr. 2021.
D’ÁVILA, Manuela Pinto Vieira. E se fosse você? Sobrevivendo às redes de ódio e fake news. Porto Alegre/RS: Instituto E se Fosse Você, 2020.
FERREIRA FILHO, João Batista. A verdade sob suspeita: fake news e a conduta epistêmica na política da desinformação. Academia. [S. l.], 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/38074713/A_verdade_sob_suspeita_fake_news_e_conduta _epist%C3%AAmica_na_pol%C3%ADtica_da_desinforma%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 21 jun. 2021.
MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu [online], n. 28, 2007, p. 101-128. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/tWFyRWkCdWv4Tgs8Q6hps5r/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 17/06/2021.
OXFORD, Dicionário. Pós-verdade. Dicionário Oxford, 2021. Disponível em: https://www.lexico.com/en/definition/post-truth. Acesso em: 20 abr. 2021.
PETRONE, Talíria. Até que todo corpo de mulher seja livre. In: Sempre foi sobre nós: relatos de violência política de gênero no Brasil. Coletânea organizado por Manuela D’ávila. Porto Alegre: Instituto e Se Fosse Você, 2021.
SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. e-cadernos CES [online], 18, 2012. Disponível em: https:// journals.openedition.org/eces/1533#quotation. Acesso em: 16 abr. 2021.
Resenhista
Maria Cecília Takayama koerich – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsa CAPES. E-mail: ceciliatakay@gmail.com Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7056685707439292
Referências desta Resenha
D’ÁVILA, Manuela. E Se Fosse Você? Porto Alegre: Instituto E Se Fosse Você?, 2020. Resenha de: KOERICH, Maria Cecília Takayama. Diálogos feministas sobre fake news e discursos de ódio. Revista Historiar, v.13, n.25, p.335-342, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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