Dos micróbios aos mosquitos/ febre amarela e revolução pasteuriana no Brasil | Jaime Larry Benchimol
Há ainda uma certa historiografia da medicina que costuma tratar daqueles feitos que abriram novos caminhos e possibilitaram desco-bertas de grande importância. A medicina é analisada segundo a perspectiva do “progresso”, da descoberta de tal remédio ou instrumento que tenha salvado mais vidas e/ou minimizado o sofrimento das pessoas. Nesta abordagem, quando trata de personalidades importantes na história da medicina, só há lugar para aqueles cujos trabalhos científicos sejam considerados como contribuições ao que se chama de “avanço” da medicina.
Nestes termos, o livro de Jaime Larry Benchimol, Dos micróbios aos mosquitos, febre amarela e revolução pasteuriana no Brasil, vem no sentido contrário desta corrente, no que é muito bem-vindo. Traz um tema que para o leitor moderno, do mundo ocidental e urbano, tornou-se desconhecido: o da realidade da “peste”, no seu sentido mais amplo de doença mortal que se propaga, ceifadora de vidas numa proporção que já esquecemos tanto sua dimensão quanto seu significado.
O autor trata, como fio condutor de seu trabalho, a vida e os feitos de Domingos Freire (1843-99), médico que se empenhou na pesquisa da febre amarela e que alegava ter descoberto uma vacina contra a mesma, chegando a empreender campanhas de vacinação durante a década de 1880. Figura polêmica, que angariou muitos inimigos, sem dúvida por causa do estilo que dirigiu sua carreira profissional e pela paixão e obstinação com que conduziu sua crença no que considerava ser a vacina contra a febre amarela, Domingos Freire pode ser considerado um perdedor, um looser, tendo sido, inclusive, vítima do escárnio de seus adversários e objeto de uma peça de teatro satírica, publicada em Buenos Aires no ano de 1897, que ridicularizava sua personalidade e sua alegada descoberta.
Jaime Benchimol não se restringe a tratar a biografia deste personagem, mas, tendo-a como texto e pretexto, traça um bem fundamentado estudo sobre os primórdios da medicina pasteuriana no Brasil, ocupando-se de médicos que uma geração antes de Oswaldo Cruz já se dedicavam a ela. Com seu trabalho, deixa claro que a atividade de Oswaldo Cruz não nasceu do nada, como uma criação ex-nihilo, mas teve seus antecedentes históricos com os quais se relacionou, seja prosseguindo alguns de seus rumos, seja provocando um corte em relação a outros. Mas o trabalho do autor não se limita a esta contribuição ao estudo da história da medicina no Brasil.
Fugindo de abordagens anacrônicas, que procuram entender os eventos do passado segundo as premissas do presente em relação ao certo/errado, sucesso/fracasso, o autor trata de entender, no seu contexto histórico, os elementos sociais, políticos, econômicos e de relações interpes-soais que, como molduras, nos permitem um vislumbre mais apurado do quadro de uma época e de um tema contextualizado. Jogam neste cenário vários elementos analisados por Benchimol.
A febre amarela era vista como um flagelo nacional que ceifava muitas vidas (o autor fornece tabelas com os dados; só em 1880 faleceram na cidade do Rio de Janeiro 1.625 pessoas) e impedia a imigração de europeus para o Brasil, o que, na visão de algumas pessoas da época, reforçava o seu atraso. Encontrar uma cura, prevenção ou modo de reduzir seus efeitos era um tema de primordial importância. Só que na década de 1880, a etiologia da moléstia ainda era tema de acirrada disputa entre os médicos.
Esta disputa se desenrolou em dois campos. O primeiro entre os que defendiam a natureza microbiológica da febre amarela, ou seja, sua ligação a algum organismo microscópico, e os que defendiam a origem miasmática da mesma, ligada ao clima e a condições geográficas. O segundo campo foi a competição entre os médicos que aceitavam as novas idéias de Pasteur e que acreditavam ser a febre amarela provocada por algum microrganismo. Aqui a luta era pela primazia da descoberta, por ser o primeiro a descobrir o agente causador, um meio profilático ou de cura. O autor demonstra o quanto a paixão muitas vezes tomou o lugar do que se poderia esperar ter sido uma discussão científica “pura”. Aliás, uma das virtudes do livro de Benchimol é mostrar o quanto a pesquisa científica, mesmo aquela que se faz nos laboratórios, em meio à “experimentação objetiva”, é resultado, também, de outros elementos menos encefálicos e mais viscerais. Os que constroem a ciência são homens de carne e osso e por isso mesmo levam seus trabalhos com paixão e por ela são, também, arrebatados.
Benchimol revela o quanto a imprensa da época, restrita então a uma ínfima parcela da população que tinha acesso à leitura, serviu como veículo de discussão, polêmica e ataques entre os diversos personagens envolvidos. De especial interesse é a figura de um cronista do Jornal do Commercio, de apelido Felipe, que escrevia uma coluna intitulada “cartas de um caipira”. Este personagem polemizou com Domingos Freire não sobre a vacina contra a febre amarela, mas sobre a aplicação subcutânea de salicilato de sódio, defendida então, em 1880, por Freire como tratamento profilático. Sem ter identificado este interessante personagem — numa das notas ao texto Benchimol sugere a possibilidade de ter sido uma poetisa —, os textos da polêmica demonstram o calor do debate e suscitaram, na época, questões interessantes sobre o papel da imprensa na cobertura de fatos científicos e os limites aceitáveis de uma crítica.
As dificuldades locais para se empreender pesquisa científica são também assinaladas pelo autor. Aqui, ele merece mais um menção de louvor. Benchimol poderia ter enveredado pelo fácil caminho de atribuir às limitações da ciência local, em termos de falta de laboratórios, de remuneração para o pesquisador, de acesso à literatura científica internacional, como os fatores preponderantes do fracasso de Freire e de outros. Contudo, não o fez. Sem nenhuma nesga de ufanismo, demonstra o quanto os principais personagens tiveram boa formação científica quer no Brasil, quer no exterior, e de como os erros de suas teorias não podem ser atribuídos a algum defeito da “ciência dos trópicos”. Ao analisar, por exemplo, os métodos errôneos de estatística empregados por Freire no afã de provar a eficácia de sua vacina, o autor deixa claro que naquela época a estatística médica apenas engatinhava e, ante o conhecimento que dispomos hoje na área, não apenas as conclusões e resultados de Freire eram risíveis, mas o eram também os de muitos de seus contemporâneos.
A maior parte do livro é dedicado a Domingos Freire e sua obra, em especial sua alegada descoberta do agente etiológico da febre amarela, ao qual deu o nome de “criptococo xantogênico”. Freire analisara ao microscópio diversas amostras de secreções de pessoas falecidas por febre amarela e acreditava ter conseguido isolar o agente causador. Hoje sabemos que o agente causador da febre amarela é um vírus, mas naquela época, quando vírus era entendido como veneno já que nem se concebia a possibilidade da existência de tal ser, no limite entre o animado e o inanimado, havia uma grande corrida, entre os adeptos da então nova medicina experimental e das idéias de Pasteur, para se encontrar o dito agente etiológico. O “criptococo xantogênico” de Freire foi motivo de celeuma. Muitos alegavam que não se provara se o tal criptococo era a causa ou uma conseqüência da moléstia, ou seja, apareceria como um subproduto nas secreções mórbidas.
Houve, inclusive, uma acusação de que o tal agente etiológico nada mais seria do que fruto do mau preparo da lâmina do microscópio. O pouco conhecimento dos microrganismos que se tinha na época levou Freire a conceituar um ciclo de vida do microrganismo, para explicar a incidência maior de febre amarela em determinados lugares e épocas do ano, que tornavam sua teoria ainda menos defensável.
A partir de sua crença de que havia descoberto o agente etiológico, tratou de produzir uma vacina. Naquele período, e estamos falando de 1883, existia uma única vacina aplicada a seres humanos: a antivariólica. Só em 1885 Pasteur produziu sua vacina anti-rábica. Domingos Freire baseou-se nas idéias de Pasteur para produzir um microrganismo com virulência atenuada, capaz de provocar uma forma branda da doença, e com isso imunizar as pessoas. Em julho de 1883, declarou ter conseguido tal intento. Daí passou a empreender “campanhas de vacinação” que se estenderam por um bom tempo, até 1895. Segundo ele, era alto o índice de sucesso, reduzindo em muito a mortalidade daqueles que haviam sido vacinados. Logo iniciou-se uma acalorada polêmica. A começar pela identidade do tal criptococo xantogênico até a eficácia da vacina, ou seu caráter nocivo como pretendiam muitos de seus opositores.
Benchimol mapeia muito bem os elementos desta polêmica e em especial as reações de Freire. Desrespeitando os ditames da Academia, o médico levou sua polêmica para as ruas, em meio ao público leigo, tratando de atrair a atenção da opinião pública para sua “descoberta”. A pecha de charlatanismo adveio de uma Academia ciosa de seu monopólio de conhecimento e da manutenção de certos parâmetros de discussão científica interpares e para o grande público. Mais do que isso, Freire considerava sua vacina uma espécie de salvação para o Brasil, ele que era abolicionista e republicano e via se descortinar no horizonte uma regeneração social do país, na qual sua vacina teria papel a cumprir. Ufanava-se de ter sido um brasileiro o autor de tão importante descoberta.
A princípio, sua vacina foi recebida com bons olhos, mas logo sua eficácia foi posta em dúvida. A polêmica com seus pares não cessou e contra Freire e sua vacina foram se alinhando poderosos inimigos, como João Batista de Lacerda, ele próprio alegando ter descoberto o agente etiológico da febre amarela, distinto daquele apontado por Freire. Benchimol analisa os trabalhos deste médico em relação à febre amarela. Diferente de Freire, respeitoso dos limites da Academia, Lacerda também defendia a etiologia da febre amarela como oriunda de um microrganismo. Só que não o criptococo xantogênico, mas sim uma espécie de fungo polimorfo. Além disso, considerava distante qualquer possibilidade de se chegar a uma vacina contra a febre amarela.
Domingos Freire foi cada vez mais relegado a uma posição de defesa exacerbada de sua “descoberta”. É possível que tenha padecido, nos últimos anos de vida, de algum tipo de distúrbio psíquico que reforçou nele a sensação de perseguição, uma espécie de quixotismo. Quando faleceu, em 1899, sua vacina e seu criptococo estavam desacreditados pelos meios científicos. Outras tentativas de se encontrar uma vacina, ou um soro antifebre amarela, continuavam na agenda da pesquisa científica.
Isto até 1900, quando, em Cuba, definiu-se o papel do mosquito como agente transmissor, e hospedeiro intermediário, da febre amarela. Benchimol analisa em detalhes esta descoberta, bem como sua relação com os trabalhos do médico cubano Carlos Juan Finlay, datados de 1880-81. Esta ruptura na linha de pesquisa em voga contra a febre amarela, e o sucesso obtido pelas medidas de prevenção de contato com o mosquito e sua erradicação criaram um novo paradigma de prevenção da febre amarela que não a vacinação, gerador de resultados concretos e positivos. No Brasil, logo no começo do século XX, foi implementada a política de erradicação dos focos dos mosquitos. Esta política, levada a cabo por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, resultou na diminuição significativa dos casos de febre amarela. A luta contra o presumido criptococo xantogênico falhara, mas contra o mosquito transmissor estava dando resultados.
O livro de Jaime Benchimol é muito bem escrito e agradável na leitura. A iconografia que traz é riquíssima e muito interessante, o que só melhora seu trabalho. A única ressalva é a falta de um índice onomástico e de assuntos. Diante de tantos personagens e assuntos importantes, tal tipo de classificação ajudaria muito ao leitor. Esta pequena falha não diminui, de maneira alguma, a importância deste trabalho, que revela uma história pouco conhecida. Uma história de perdedores que ilumina nosso entendimento e nos dá uma visão mais ampla dos caminhos e descaminhos da ciência e da medicina.
Resenhista
Francisco Moreno Carvalho – Médico, doutorando na Universidade Hebraica de Jerusalém. E-mail: shiko@uol.com.br
Referências desta Resenha
BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos micróbios aos mosquitos, febre amarela e revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Editora UFRJ, 1999. Resenha de: CARVALHO, Francisco Moreno. As origens da medicina pasteuriana no Brasil: uma história acidentada. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.3, nov. 2000/fev. 2001. Acessar publicação original [DR]