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Doenças e práticas de cura na História brasileira | Revista Ágora | 2021

O campo da História da Medicina e da Saúde tem crescido especialmente desde a década de 1950 e início da década de 1960, graças aos estudos pioneiros dos historiadores Louis Chevalier e Asa Briggs, que se debruçaram sobre os estudos sobre as epidemias e suas relações com a sociedade. Com o historiador inglês Charles Evans as doenças e as epidemias passaram a ser estudadas de forma mais ampla e intensa, ao serem analisadas como um fenômeno social.

No Brasil, as passagens do psicólogo Michael Foucault, entre 1965 e 1976, também contribuíram para colocar a temática da História das Doenças no foco dos historiadores, ainda que os primeiros trabalhos sob influência de suas proposições tenham sido um empreendimento realizado por psiquiatras, como Roberto Machado, organizador de “A danação da norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria”, e Jurandir Sebastião Freire Costa, autor de “Ordem médica, norma familiar”. Essas obras focalizaram a afirmação da Medicina e a crescente ampliação de suas normas e prescrições na sociedade brasileira, especialmente no contexto da construção do Estado-nação imperial, com ênfase em conceitos como “medicalização da sociedade”, “biopoder” e no binômio coercitivo “saber/poder”.

Com a ampliação dos cursos de Pós-Graduação em História, a partir dos anos 1990, verifica-se o aumento significativo de pesquisas sobre a História da Medicina, da Saúde e das Doenças de caráter regional. Importante termômetro desse interesse despertado pela temática foi a criação do GT de História da Saúde e das Doenças em 2000, no encontro promovido pela seção regional da Associação Nacional de História do Rio de Janeiro (ANPUH-RJ). Em 2001, o GT foi organizado no Seminário Nacional da ANPUH, reunindo na sua coordenação professores e instituições do Rio de Janeiro (Dilene Nascimento/COC-Fiocruz), Minas Gerais (Betânia Figueiredo/UFMG) e Rio Grande do Sul (Beatriz Weber/UFSM), possibilitando a divulgação da temática e tornando visível as pesquisas desenvolvidas sobre o tema em todo o Brasil. Nos anos seguintes, a iniciativa do GT abrigada nos Simpósios Nacionais de História promovidos pela ANPUH foi paulatinamente replicada no âmbito de diversas regionais da mesma Sociedade, experiência que tem favorecido e fortalecido o movimento de estabelecimento de redes e conexões entre os diversos pesquisadores.

Esse aumento do universo de investigadores na década de 1990 se fez acompanhada do alargamento do arco temático e, sobretudo, analítico desse campo, destacadamente com uma maior aproximação dos historiadores das doenças e artes de curar com a história cultural, resultando em interpretações que passaram a perceber de modo mais matizado as tensões e aproximações entre a medicina douta – ela mesma vária e permeada por diferentes teorias e disputas, além de nem sempre bem-vinda em suas proposições e formas de atuação – e as chamadas práticas terapêuticas não oficiais ou academicamente chanceladas. Entre as mudanças de objetos e perspectivas é possível sinalizar uma maior aproximação, mais problematizadora e contextualizada, das trajetórias pessoais e de instituições científicas e médicas; uma percepção mais sofisticada das relações entre medicina, médicos, pacientes, e os interesses políticos, problematizando parte das percepções dos anos de 1980, marcadas pela influência direta do pensamento de M. Foucault. Pesquisas e pesquisadores estivem ainda mais atentos para o trânsito de práticas, conhecimentos e artefatos utilizados por diferentes agentes de cura nos diferentes contextos históricos do país, bem como as percepções específicas dos grupos indígenas, africanos e seus descendentes sobre o corpo, as doenças e as terapêuticas. Em suma, houve uma extraordinária ampliação de temas/objetos e um avanço interpretativo sobre as questões referidas às doenças, às curas e aos agentes que essas experiências colocam em contato. Fascinante mosaico que ganha com esse dossiê mais uma de suas peças.

A proposta do dossiê acolhido nesse número da Ágora é justamente oferecer ao leitor uma pequena visada da produção em História da Saúde e das Doenças nesse momento em que a pandemia de Covid-19 deixou claro o quanto saúde e doença impactam na vida das sociedades, estabelecendo de forma indiscutível suas credenciais como objeto de reflexão do historiador. Intentou-se justamente fomentar a produção e o diálogo em torno das doenças e seus sempre temidos momentos de epidemias, além das polivalentes práticas de curar, reunindo artigos de pesquisadores diversos e servindo como amostragem das perspectivas, fontes e métodos de estudo adotados pela historiografia. O Dossiê que o leitor tem em mãos é composto de 10 artigos de autores de diferentes regiões do país, corroborando a ideia de que o campo da História das Doenças e das práticas de curar é uma realidade consolidada na historiografia brasileira atual.

O artigo de abertura, A lepra no Ceará e no Espírito Santo (1920-1940): olhares e reflexões, de autoria de Sebastião Pimentel Franco e Zilda Maria Menezes Lima, propõe um diálogo entre a experiência da doença vivida nos estados do Ceará e Espírito, explorando a compreensão e o combate à lepra a partir das ações impetradas por grupos filantrópicos bem como pelos poderes e saberes nacional e locais. O foco de análise se volta especialmente para o período entre as décadas de 1920 e 1940, quando prevaleceu uma prática de isolamento compulsório dos pacientes, tornada política do estado brasileiro contra a doença. Em relação ao Ceará está posto que as ações caritativas da sociedade foram muito importantes na implementação do isolamento compulsório com pouca intervenção estatal; já no Espírito Santo foi fundamental a ação dos poderes instituídos na implementação de políticas públicas no combate à doença. O texto registra ainda, o papel da sociedade, em especial das camadas mais endinheiradas, que atuando em conjunto com o Estado, buscaram alternativas para apoiar financeiramente o projeto de saneamento da lepra. Embora a política pública de Estado em relação a lepra valesse de forma uniforme para os demais entes da federação de forma uniforme, para além das similitudes as pesquisas postas em diálogo detectam diferenças no processo de criação dos leprosários e ainda no seu funcionamento, quer no Ceará como no Espírito Santo. Dessa forma, deixam claro a importância de estudos mais localizados para se dar conta da diversidade de experiências que estão por traz da diretriz mais geral e padronizadora em relação à lepra durante o período.

No segundo artigo, Dançando com a morte: enfrentamento da gripe espanhola no Ceará (1918-1919), Lidiane Priscila de Paiva Batista e Edson Oliveira de Paula, propõem, sob o impacto da pandemia de Covid-19, a hipótese de que analisar o sucesso ou fracasso das medidas adotadas no enfrentamento a uma pandemia pode contribuir para a reflexão e projeção de ações de combate em novas situações análogas a essa. Partindo dessa premissa, revisitaram a gripe espanhola no Estado do Ceará, discutindo os impactos sociais causados e a reação das autoridades e da população frente à pandemia. Para tanto, evidenciaram o avanço da doença no Estado, os danos causados à sociedade e as medidas sanitárias implementadas. Os autores também revelam a precariedade de acesso e de eficácia dos medicamentos, os altos preços e a incerteza sobre sua ação contra a doença, problemas observados à época também em outras diversas localidades. Apesar de estabelecer ações para contenção e enfrentamento da doença, o Estado e alguns médicos também teriam incorrido na desinformação, ao menosprezar os impactos da doença no intuito de acalmar a população e minimizar os impactos à economia. Ao final do artigo os autores sugerem a verticalização das pesquisas, ampliando o espaço de investigação para além da capital do estado, o que poderíamos sugerir a pesquisadores de outras regiões do país, ainda carentes, salvo poucas iniciativas, nessa visão mais ampliada e diversificada do que tenha sido a experiência da pandemia de 1918 em um país continental como Brasil. E que venham mais contribuições como esta.

Na sequência temos o artigo de autoria de Erika Gonçalves de Mendonça e Manoel Carlos Ferreira de Alencar, intitulado “Esquálidas criaturas de aspecto horripilante”: a fome na literatura sobre a seca de 1877-1879. Os autores evidenciam como a seca de 1877-79, além do seu impacto concreto na experiência do cotidiano, foi também um fenômeno marcante no âmbito cultural. A crise provocada por aquele longo estio se fiz sentir nos âmbitos econômico, político e social, repercutindo na produção literária cearense. Como sinalizam os autores, a partir desse período, a temática da seca passou a ser preponderante em muitos romances, constituindo o que se denominou como “literatura da seca”. A análise se ancora no modo como três romancistas construíram, cada um a seu modo, imagens trágicas sobre a fome que atingia os cearenses. As obras em destaque foram Os Retirantes (1879) de José do Patrocínio, A Fome (1890) de Rodolfo Teófilo e Luzia-Homem (1903) de Domingos Olímpio. Dentre as abordagens oferecidas por essa literatura, destaca-se a que correlaciona a fome como a “doença dos retirantes” e que muito contribuiu para a construção de uma visão estereotipada sobre o povo sertanejo.

Em Como “Ciência da arte”: estratégias de legitimação da farmácia e conflitos entre os praticantes da cura em Minas, Jean Neves Abreu coloca em evidência o processo de profissionalização dos ofícios de cura e os conflitos estabelecidos entre os adeptos das diversas práticas que compunham o arsenal curativo à disposição da população mineira na passagem do século XIX para o século XX. Sua análise destaca particularmente a prática farmacêutica e os esforços da categoria na busca pelo reconhecimento profissional, movimento que uma série de conflitos com os praticantes e os partidários de outras práticas curativas. Partidário de uma perspectiva que aponta a instauração da República como momento de ascensão do discurso médico-científico propalado através das universidades e acolhido pela burocracia estatal, o autor recorre aos periódicos e à documentação administrativa do estado de Minas Gerais para evidenciar as demandas dos profissionais da farmácia, assim como as tensões que vão emergindo com outras categorias de curadores. Dessa forma examina tanto os regulamentos que estruturavam o campo da higiene, em especial as competências e atuação dos envolvidos com a saúde, como as solicitações e os processos impetrados por farmacêuticos contra a ação daqueles considerados charlatães e feiticeiros, praticantes de sortilégios e exploradores da boa fé púbica.

O próximo artigo, de autoria de Danilo Linar, também elege a literatura como universo de diálogo para a elaboração da história das doenças. Intitulado Pandemia, Poesia e Memento Mori: imagens da tuberculose no poema os doentes de Augusto dos Anjos (1900-1920), sua contribuição ao dossiê é um exercício que comunica o poema de Augusto dos Anjos, “Os doentes”, com algumas proposições feitas em textos caros à teoria da história e à historiografia dedicada a pensar a experiência da doença e mais especificamente a morte. Desse modo, pautando-se nas categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa de Reinhart Koselleck, o autor sugere serem as experiências referidas ao adoecimento e da morte associados à tuberculose presentes no texto do poeta, ao mesmo tempo, atravessadas pelas imagens elaboradas na vivência da tuberculose até então e também conformadoras do arsenal de percepções que acionamos ainda hoje quando falamos de temas afins, entre eles, por que não, nossa experiencia atual com a Covid-19.

O artigo seguinte retoma o universo curativo focalizando a propaganda de medicamentos na primeira metade do século XX. Como já esclarece o título: A Ciência é a alma do negócio: apropriações do discurso científico em propagandas de medicamentos contra a sífilis (Paraíba, 1932-1942), de autoria de Leonardo Quirino Barboza Freire dos Santos e Rafael Nóbrega Araújo, examina como as proposições emanadas da investigação e as proposições científicas foram apropriadas como estratégia mercadológica nos anúncios de medicamentos indicados no tratamento da sífilis, considerada verdadeira ameaça à descendência das famílias e ao futuro da nação. O texto examina de modo mais detido a publicidade veiculada pela revista Medicina, órgão oficial da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraíba, editado entre os anos de 1932 e 1942. A publicação é apresentada pelos autores como produto associado ao processo de institucionalização da medicina científica na Paraíba, ocorrida de modo mais efetivo a partir da década de 1920. O texto aciona autores como Ludwik Fleck e Sérgio Carrara para discutir a estruturação do conceito de sífilis como elemento articulado à produção do conhecimento científico. Além disso, tomam a publicação como um dos eixos da rede de circulação científica que interconectava médicos, leitores e laboratórios.

Adriana Gomes, autora de Política, cura e religião: o Reformador e o artigo 157 das leis finais de 1890, discute a atuação da Federação Espírita Brasileira no universo da cura na virada para o século XX. Seu trabalho focaliza os processos-crimes que tiveram entre seus protagonistas indivíduos acusados de praticar as artes de curar seguindo os preceitos do espiritismo na cidade do Rio de Janeiro. A fonte para esse levantamento foi o Reformador, jornal dedicado à difusão da doutrina espírita editado desde 1883, e que refletiu em suas páginas a contenda instaurada entre os professantes das doutrinas e cura espíritas e a igreja católica, especialmente após a criminalização das práticas espiritas pelo Código Penal de 1890, reforçada na primeira década do século XX com a promulgação do Regulamento Sanitário de 1904. Mobilizando Pierre Bourdieu como aporte teórico-metodológico no exame dessa questão, Adriana sugere que a contenda entre as duas instituições promoveu disputas simbólicas entre o campo religioso e o campo da ciência, representado pelos profissionais da medicina. Como afirma a autora, ficou à cargo da justiça o estabelecimento das fronteiras entre ciência, religião e contravenção em meio ao “emaranhado de discursos” produzidos pelos contendores, divididos entre as alegações a favor da liberdade religiosa e a defesa da saúde pública.

A seguir temos o texto de Sivaldo Reis dos Santos, que nos apresenta em Cleonice Assumpção Alakya: a trajetória de uma das primeiras médicas negras de Salvador (1910- 2000), um pouco da vida da médica e professora da professora da cadeira de otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Bahia. Através da trajetória de Cleonice o autor focaliza um pouco da experiência de mulheres que trilharam percursos bem distintos dos modelos tradicionais, que integram o imaginário de sociedades mais conservadores ou patriarcais. A análise elaborada sobre a personagem, destaca seu contexto familiar, marcado pelo estímulo aos estudos e a atuação profissional feminina. Filha de pai advogado e professor de inglês, nascido na Nigéria, e uma mãe formada parteira pela mesma faculdade onde a filha estudaria, Cleonice cresceu ao lado dos irmãos que abraçariam as profissões de engenheiro, o mais velho, e médico, o caçula. Além desse universo familiar tão singular, o autor discute também o próprio contexto histórico, marcado pela emergência de um movimento de luta e valorização das mulheres, que ganha cores a partir da pesquisa em jornais, revistas e fotografias da Biblioteca Pública do Estado da Bahia e da Hemeroteca Digital Brasileira.

Autor de Protegendo a boca dos outros: a Federação Odontológica Latino-Americana e o desenvolvimento da profissão odontológica na América Latina, Iranilson Buriti Oliveira lança luz sobre a criação e atuação Federação Odontológica Latino-americana. O autor inscreve sua análise sobre a FOLA em uma tradição voltada para a demarcação das identidades e institucionalização das profissões na emergência do Estado Moderno. Para tanto recorre à noção de “políticas de governamentalidade”, tributária de Michel de Foucault, para identificar “procedimentos”, “cálculos” e “táticas” acionados pela Federação no estabelecimento de parâmetros que pudessem guiar e normalizar a atuação profissional na região. Para a consecução desse projeto a FOLA acionou uma verdadeira “maquinaria”, integrada por periódicos especializados, congressos profissionais e sociedades de classe, propaladores de que classificou como um manual educativo para os profissionais da odontologia desde as primeiras décadas do século XX.

Finalizando o dossiê temos o texto de Márcio Almeida Nicolau, intitulado Brenda Lee e o acontecimento discursivo da aids, década de 1980 em São Paulo. O artigo focaliza os jogos discursivos da imprensa paulistana dos anos de 1980 e sua contribuição na conformação e divulgação de enunciados cissexistas e transfóbicos definidores da Aids. Acionando uma bibliografia que transita de Michel de Foucault a Judith Buttler, Márcio Nicolau propõe ao leitor desvendar significados e intenções que perpassavam manchetes e notícias divulgadas em Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo associando a doença e o universo da transexualidade. Na contramão do discurso de exclusão e violência propalado por esses órgãos de imprensa, mas também por outras agências públicas e de estado, põe em evidência a figura de Brenda Lee, que desafiou a imprensa, a ditadura, a doença e todo o imaginário em torno da cis-hetero-normatividade, acolhendo e resubjetivando a existência trans.

Essa breve apresentação dos textos que integram esse dossiê da Ágora é apenas um aperitivo das complexas questões e realidades abordadas pelos autores. Agradecemos à editoria da revista, que apostou na proposta do dossiê, e aos autores aqui mencionados, que atenderam a esse chamado, dando publicidade das novas pesquisas, objetos e problemas no campo da História da Saúde e das Doenças aos leitores deste prestigioso periódico

Aos textos, caros leitores.


Organizadores

Sebastião Pimentel Franco – Doutor em História (USP) e Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: sp.franco61@gmail.com

Anny Jackeline Torres Silveira – Doutora em História (UFF) e Professora Associada da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: anny.silveira@ufop.edu.br

André Luis Lima Nogueira – Doutor em História (FIOCRUZ) e Professor da Faculdade do Vale do Cricaré (FVC). E-mail: guazo08@gmail.com


Referências desta apresentação

FRANCO, Sebastião Pimentel; SILVEIRA, Anny Jackeline Torres; NOGUEIRA, André Luis Lima. Doenças e práticas de cura na História brasileira. Revista Ágora. Vitória, v. 32, n. 1, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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