A obra é dividia em quatro capítulos, no primeiro, “Escravidão e doenças: historiografia, fontes e métodos”, a autora buscou analisar como a mortalidade escrava não estava ligada apenas ao contato entre pessoas de diferentes continentes e, portanto, que o tráfico atlântico em si não dá conta de explicar a mortalidade escrava. Em outras palavras, embora o contato entre indivíduos de espaços geográficos distantes inevitavelmente tenha colocado patógenos em condições de causar doenças que eram desconhecidas para os africanos, a questão não pode ser analisada apenas por esse prisma.
As condições de vida da população cativa propiciavam “ambientes” para que enfermidades matassem muito. A falta de alimentos, os maus tratos, a insalubridade do trabalho, as condições higiênicas inadequadas das senzalas, entre outros aspectos, faziam com que a vida de escravo fosse abreviada muitas vezes pela morte.
As enfermidades e a morte também propiciavam que diferentes engrenagens sociais e culturais se movimentassem. Dessa maneira, a análise das sociabilidades entre os escravos, bem como com a população negra não escrava e branca pobre, permite vislumbrar práticas terapêuticas trazidas do continente africano e ressignificadas no Brasil. Além disso, o sistema de saúde colonial, ou mesmo durante o Império, era frágil e não havia médicos em número suficiente para atender as pessoas. Se havia tal profissional, o aspecto financeiro era um complicador para que tais populações fossem assistidas.
A autora argumenta que o fator religioso é também importante para analisar doenças, curas e mortalidade entre a população cativa. As concepções sobrenaturais sobre as moléstias, a ideia de que algumas enfermidades faziam parte de um processo de purificação ou que estavam associadas aos brancos, faziam parte de um arcabouço religioso muito forte entre as populações oriundas do continente africano.
Enfim, não são apenas as implicações biológicas, vírus e bactérias, entre outros micro-organismos causadores de doenças, que determinam a mortalidade e a cura entre a polução escrava no Rio de Janeiro. Questões sanitárias, socioeconômicas e culturais precisam ser analisadas de forma entrelaçadas no estudo foco da pesquisadora.
No capítulo dois, “Imagens e narrativas da vida e da morte: revisitando os arrabaldes do Rio de Janeiro”, a autora utiliza relatos de viagens a respeito da cidade para tecer considerações acerca da relação entre mortalidade e as condições sociais. Os bairros mais urbanos e aqueles semiurbanos, bem como os que sofriam com as enchentes no período de chuvas prolongadas, cada espaço propiciavam táticas dos escravos e da população pobre em geral para enfrentar doenças e a morte. Alguns bairros, inclusive, eram evitados pelos viajantes, sobretudo as áreas pantanosas.
As informações dos viajantes, utilizadas no segundo capítulo por Keith Valéria de Oliveira Barbosa, são ainda mais relevantes quando a autora cruza tais relatos com outros dados sobre os bairros cariocas, tais como a densidade demográfica, a produção e/ou a mobilidade/aumento da população escrava. O texto demonstra, mais uma vez, a riqueza histórica e as possibilidades de estudo a partir das impressões registradas por essas pessoas que passaram pelo Rio de Janeiro. Um exemplo das virtualidades desses escritos deixados pelos viajantes pode ser consultado na antologia de textos organizada por Míriam Moreira Leita (1984), tais relatos continuam sendo uma fonte inédita e/ou pouco explorada em muitos casos. No entanto, as impressões que os viajantes tiravam de sua estada no Rio de Janeiro oscilavam muito, aqueles que ficavam mais tempo na cidade destacavam suas transformações e seu progresso. Outros, porém, de passagem mais rápida descreviam a capital do Império como atrelada “ao mundo da desordem e da barbárie” (GAGLIARDO, 2016, p. 164).
No capítulo três, “Em meio a estradas, pântanos e ilhas: a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá”, Keith Valéria de Oliveira Barbosa demonstra, a partir de pesquisa empírica detalhada, como o espaço social e ambiental da freguesia contribuíam para a proliferação de doenças. A tese defendida no primeiro capítulo é demonstrada com a apreciação dos dados a respeito da mortalidade de escravos no “bairro” do Irajá. Ou seja, as doenças, o tratamento, a cura ou a morte estavam estreitamente ligadas ao ambiente em que as pessoas viviam.
Em relação ao espaço, a freguesia possuía muitas casas pobres em uma região sujeita a constantes alagamentos. Não por acaso, as doenças respiratórias, de maneira geral, eram causa de muitos óbitos entre os cativos naquela região. Nas tabelas elaboradas pela pesquisadora chama a atenção, entre outras moléstias, a tísica (tuberculose).
Outras duas causas de mortes que chamam a atenção, nas tabelas do terceiro capítulo, são a opilação e as bexigas. A primeira, mais conhecida como “amarelão” ou “cansaço” (COUTO, 2014, p. 48). Já a segunda, era a varíola, conhecida por bexiga devido às bolhas e erupções na pele das pessoas doentes. Quem sobrevivia à doença, na maioria das vezes, ficava marcada (o) para o resto da vida.
No quarto e último capítulo, “Adoecendo e morrendo na cidade e seus subúrbios: aspectos comparativos das paróquias da Candelária e de Irajá”, como o próprio título deixa claro, o objetivo foi comparar a mortalidade nas duas paróquias, a primeira mais urbana e a segunda semiurbana. Evidentemente que os dois espaços sociais possuíam as suas singularidades. No entanto, havia semelhanças muito grandes entre Candelária e Irajá no que se referiam à mortalidade, sociabilidades e vivência dos escravos de modo amplo.
As parecenças não se restringiam ao trabalho pesado ou aos alojamentos mal ventilados em que os cativos dormiam. As similitudes residiam também nas mentalidades e na cultura que orientavam as maneiras de lidar com as enfermidades. No capítulo um, a autora ressaltou como os africanos trazidos para o Brasil associavam muitas moléstias às entidades sobrenaturais. Logo, o tratamento dessas doenças era buscado no campo da espiritualidade. Condições sociais, culturais e ambientais se fundiam para resultar em maior ou menor mortalidade, bem como na adoção de determinados remédios e tratamentos em detrimento de outros.
Na análise dos inventários post-mortem, a autora conseguiu demonstrar que a população escrava morria também de muitas causas ligadas ao trabalho desenvolvido, acidentes fatais eram comuns. Mas, não era rara a causa da morte não constar da documentação, o que dificulta o trabalho do historiador. Porém, conforme ressaltou a pesquisadora, saber o nome da doença não elucida as sociabilidades escravas em torno da vida e da morte. A lista de doenças e seus sintomas “só podem ser compreendidos se associados ao mapeamento das condições de vida dos cativos e analisados à luz das informações sobre as miseráveis condições de trabalho, moradia e alimentação” (BARBOSA, 2020, p. 109).
O livro, “Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831”, não permite apenas uma análise do objeto do livro em si. O trabalho demonstra como o olhar estrangeiro ajuda na análise acerca da cidade e da vida social que vibra nela. A leitura, além disso, propicia uma compreensão da riqueza contida nos inventários post-mortem para a pesquisa histórica. São fontes que podem ser utilizadas para estudos com diferentes problemáticas, em diferentes recortes espaciais e temporais.
Referências
COUTO, Cristiana. Doenças no Brasil Oitocentista: alimentação como prevenção na produção médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832‐1889). In: Revista CIRCUMSCRIBERE 14 (2014): 40‐52.
GAGLIARDO, Vinícius Craneck. A construção do Rio de Janeiro na literatura de viagem oitocentista. In: Revista Almanack. Guarulhoas, nº 12, jan./abril. 2016. p. 156-183.
LEITE, Míriam Moreira (Org). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo-Brasília: HUCITEC/INL/Fundação Nacional PróMemória, 1984.
Resenhista
Lourenço Resende da Costa – Doutor em História Universidade Federal do Paraná – UFPR. E-mail: resendedacosta@gmail.com
Referências desta resenha
BARBOSA, Keith Valéria de Oliveira. Doenças e cativeiro: um estudo sobre mortalidade e sociabilidades escravas no Rio de Janeiro, 1809-1831. Curitiba: CRV, 2020. Resenha de: COSTA, Lourenço Resende da. Doenças e mortes entre escravos no Rio de Janeiro. Temporalidades. Belo Horizonte, v.13, n.1, p.914-917, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR].
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