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Doença/ sofrimento/ perturbação: perspectivas etnográficas | Luiz Fernando Duarte

A coletânea organizada por Duarte e Leal volta-se para o tratamento dos temas ‘saúde’ e ‘doença’ na perspectiva antropológica e é uma das iniciativas que se integram aos esforços de sistematização e aos investimentos científicos em pesquisa e trabalhos desenvolvidos nessa área. É composta por 12 textos de diversos autores, divididos em ‘Corpo e reprodução’, ‘Instituições e trajetórias’, ‘Os limites da pessoa’ e ‘Sexualidade e gênero’, que fornecem uma indicação clara da diversidade das situações etnográficas em análise. Não se poderia deixar de reconhecer a importância da participação dos organizadores na produção de trabalhos em torno da temática ‘pessoa, corpo e doença’.

Os estudos aqui apresentados, embora diferindo no seu acabamento final, onde se encontra desde etnografia em andamento a projeto de doutoramento, indicam um esforço analítico na abordagem de questões ligadas ao corpo no que concerne aos cuidados e às maneiras de se conceber os eventos e acometimentos a ele relacionados. Trazem, portanto, uma marca da dimensão holista como opção de estratégia metodológica adotada, definidora da contextualização da questão da ‘doença’ no interior da problemática do ‘corpo’ e da ‘pessoa’. Sob o prisma mais específico da doença, estas investigações recortam o universo de alguns trabalhos apresentados em encontros científicos que pretendem uma ampliação de perspectivas na abordagem dos fenômenos ligados ao ‘adoecimento’. Seu principal interesse, como se lê na introdução de Duarte, é divulgar o potencial dos métodos de análise antropológica no tratamento de questões constituídas como objeto privilegiado das abordagens quantitativas segundo os cânones da sociologia e da epidemiologia. Assim, os trabalhos aqui comentados se distinguem, em sua maioria, como análises de material empírico alinhadas ao que se convencionou chamar de ‘metodologia qualitativa’, onde a ênfase está na verificação do sentido e da significação assim como na apreensão da dimensão valorativa dos fenômenos observados. Alguns argumentos que suscitam o atual debate em torno das abordagens antropológicas em saúde indicam que os investimentos nesse campo têm se intensificado, como indicado em artigo de Sanches e Minayo (‘Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade?’, Cadernos de Saúde Pública , 1993). Nas reflexões sobre o caráter de oposição e complementaridade atribuído à relação entre essas metodologias na abordagem dos fenômenos de saúde, Duarte indica que a antropologia ao mesmo tempo recusa e opera com a dicotomia entre o “quantitativo” e o “qualitativo”. Ele destaca que, a despeito das dissensões epistemológicas contemporâneas e querelas metodológicas presentes no atual debate acerca dessa dicotomia, a opção por uma abordagem qualitativa confere privilégio ao sentido.

Considerações acerca da opção holista como estratégia metodológica, não compartilhadas por todos os pesquisadores, são encontradas na introdução de Duarte, que considera ser este o principal foco de debate nesta área temática. Balizado por esse pressuposto, o organizador resenha os artigos destacando neles as principais questões metodológicas e quadros de referência. A opção pelo holismo vem da intenção de se estabelecer uma associação entre os fenômenos abordados com vertentes mais tradicionais dos estudos antropológicos e a ‘construção social’ da pessoa e do corpo. Assim, os textos aqui resenhados oferecem um conjunto significativo de informações referidas a um problema analítico, qual seja debruçar-se sobre um determinado conjunto de experiências humanas como ‘doença’, ‘sofrimento’, ‘mal-estar’ e demais concernentes ao universo de pesquisa recortado e à área temática dos fenômenos que, na cultura ocidental moderna, designa-se como ‘doença’ e ‘saúde’. Pode-se reconhecer ainda, como assinalado pelo próprio organizador, que os textos, em seu conjunto, caracterizam-se por serem sucintos com relação às informações sobre fundamentação teórica e procedimentos da pesquisa.

No entanto, em que pese tais considerações, tentaremos indicar, no procedimento de leitura do material, os ângulos sob os quais são abordadas as questões e explorar a diversidade das temáticas que compõem o seu conjunto. Nossa intenção primeira é possibilitar maior chance ao leitor de se aproximar das reflexões empreendidas pelos diferentes autores, valorizando os aspectos sintonizados com os recentes debates acadêmicos em torno das abordagens qualitativas em saúde. Dada a impossibilidade de nos deter em cada unidade de forma pormenorizada, optamos por apresentar sinteticamente o que há de relevante em cada uma das partes.

Em ‘Corpo e reprodução’, Paim analisa valores e significados sociais atribuídos aos eventos biológicos da reprodução, indicando a importância da dimensão reprodutiva do corpo na construção da identidade feminina. Descreve concepções e práticas acerca da vivência da gravidez e da maternidade na prática de mulheres pertencentes a grupos urbanos de baixa renda em Porto Alegre (RS). Trabalha com a hipótese da especificidade do universo simbólico presente nesses segmentos modeladores da percepção sobre as experiências corporais relativas à gravidez e à maternidade em contraposição aos segmentos das camadas médias identificadas com as concepções médico-científicas do corpo e da saúde consoante o ideário individualista. Já o texto de Ferreira busca descrever as práticas corporais específicas à população de uma vila na periferia de Porto Alegre. Nessa descrição, como parte de uma etnografia em andamento, reflete-se sobre uma relativização do modelo biomédico como referência para pensar o corpo e a saúde, cujas representações associam-se a uma ampla rede de associações onde se incluem as crenças religiosas e as experiências familiares. Citeli, Melo e Souza e Portela constroem um texto tomando por base dados de uma pesquisa do International Reproductive Rights Research Action Group (IRRAG) realizada em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Com destaque para as experiências e decisões reprodutivas de mulheres pobres, apóia-se na noção de direitos reprodutivos, emergente na década de 1970, e que ambiciona subsidiar a formulação de políticas públicas nessa área. Com relação à temática corpo e reprodução, parece necessário destacar que os eventos relacionados ao corpo ainda são considerados um processo eminentemente biológico ou natural, que se efetiva de modo externo às relações sociais. Ressaltem-se os diferentes sentidos atribuídos a experiências como maternidade, gravidez, concepção e contracepção — não necessariamente consideradas ‘doenças’ — e que passaram a ser ‘tratadas’ historicamente pela medicina moderna por sua relevância social num contexto cultural fortemente marcado pela hegemonia das representações biomédicas.

Em ‘Instituições e trajetórias’, Oliveira trata das concepções de doença, com ênfase na especificidade cultural dos grupos sociais consideradas como componentes fundamentais da comunicação da relação do indivíduo com o sistema de saúde. Propõe-se a analisar como são pensadas as concepções de doença em classes populares e a explorar as representações sobre saúde/doença como modeladores da percepção entre usuários e prestadores de serviços de saúde. Nardi, por sua vez, aborda a concepção de doença por um outro ângulo, qual seja a percepção sobre o adoecimento masculino na perspectiva de grupos de trabalhadores afastados das atividades laborais por doenças e acidentes relacionados ao trabalho. Abordando um conflito na constituição do ethos masculino a explora, vinculação do trabalho a atributos e funções morais, por meio da qual expõe em sua análise as dimensões sociais da doença. Em Gonçalves, a percepção da doença é tratada sob o ângulo do abandono do tratamento de pacientes tuberculosos. Privilegiando a percepção corporal da doença, salienta sua importância na adesão ao tratamento, indicando a necessidade de que sejam consideradas pelo sistema médico as especificidades culturais na atribuição de significado aos sinais e sintomas da doença. Aqui os esforços concentram-se no sentido de se buscar outras referências além do modelo biomédico para se pensar o corpo, a doença e a saúde.

Em ‘Os limites da pessoa’, Vargas propõe abordar a temática do consumo de drogas legais e ilegais a partir de um conjunto de hipóteses, e de uma contextualização histórica do fenômeno como caminho para a análise da questão do consumo e do tráfico de drogas no mundo moderno. Privilegia a dimensão estratégica que a ‘guerra contra as drogas’ vem assumindo nas sociedades modernas, alimentadas, por sua vez, por inúmeros desdobramentos políticos, jurídicos, econômicos e sociais da condenação moral que recai sobre o uso de determinadas substâncias. Rodrigues e Caroso propõem-se a pensar a construção de identidades relacionada à noção de pessoa no sentido de Mauss, a partir de um tipo específico de discurso ligado ao pentecostalismo e a casas de culto afro-brasileiro onde predominam, nas narrativas dos sujeitos, as idéias de doença, sofrimento e cura. No contexto etnográfico apresentado, a idéia de sofrimento emerge como elemento central da representação da experiência da pessoa na relação com a doença associado a um modelo de explicação causal. O texto de Souza, por sua vez, volta-se para a definição e explicação de doenças presentes nas histórias biográficas a partir do ato interpretativo dos indivíduos em relação aos acometimentos do corpo. Seu objetivo, a partir de uma narrativa da enfermidade, consiste em elencar algumas considerações acerca do processo de adesão a modelos explicativos agenciados na interpretação da aflição e da escolha terapêutica. Finalmente, Borges volta-se para o transplante renal entre vivos, propondo-se a mostrar as determinações sociais e os elementos desencadeadores do processo de doação de rins. Nesse processo destaca a família como valor fundamental e elemento englobante na definição da situação de transplante, sendo ainda fundamental para se compreender, dentro de um sistema de trocas de cuidados e bens simbólicos, as atitudes advindas das relações entre doador e receptor.

Em torno da temática ‘Sexualidade e gênero’, estruturam-se dois trabalhos sobre Aids. Em Shuch, temos uma discussão acerca das concepções de risco e o comportamento preventivo contra a Aids entre jovens universitários solteiros de Porto Alegre, cujo interesse de análise pauta-se nos altos índices de infecção pelo HIV presentes nesse segmento da população. A análise visa contrapor os altos índices de infecção à existência de uma certa ‘imunidade ideológica’ como justificativa para práticas não preventivas e como demarcadora de identidades sociais. Essa imunidade surge derivada da associação da Aids com marginalidade, cujos efeitos sobre o organismo são, além de físicos, de ordem moral e estão ligados aos comportamentos identificados como desviantes dos chamados ‘grupos de risco’. Knauth, autora de outros estudos sobre o tema, soma esforços na problematização da epidemia, particularmente em relação à contaminação das mulheres por via sexual no âmbito da relação conjugal. Tem como objetivo analisar como ocorre a contaminação pelo HIV na relação conjugal, representando uma das principais formas de expansão da epidemia na atualidade. Destaca primeiramente a perspectiva feminina no que concerne às representações das mulheres contaminadas a partir da contaminação dos homens e suas conseqüências na relação conjugal. Num segundo momento, analisa as óticas masculina e feminina na perspectiva dos valores de gênero considerados como estruturantes das relações entre homens e mulheres em grupos populares. Evidencia que a perspectiva ‘culpabilista’, que implica o agenciamento da figura de ‘vítima’ da doença, não é compartilhada pelas mulheres como se poderia supor através da responsabilização dos parceiros pela contaminação ou mesmo pela ruptura da aliança. Para a compreensão de tal atitude, é necessário apreender a percepção feminina a respeito da vulnerabilidade masculina diante da doença. Modelada por sua existência tanto no plano material como no social, a percepção feminina expõe que os homens necessitam das mulheres para o cuidado de si, revelando um aspecto de sua condição que se liga à assistência masculina e expressa relações de reciprocidade no âmbito da relação conjugal. Assim, apontando para a incontestável preeminência masculina, numa dimensão mais ampla da ordem social, suas reflexões suscitam também a existência de complementaridade entre os gêneros. Considerando ainda essa perspectiva mais global de análise, observa uma inversão nos termos que qualificam o masculino e o feminino apreendida através da forma como a doença é vivida. Assim, ao nível do simbólico e das representações de gênero, a Aids apresenta-se para as mulheres como fenômeno de ordem física e externa, enquanto para os homens manifesta-se como sendo de ordem moral e interna, o que estaria na base da ‘não aceitação’ masculina de sua condição de portador do vírus da Aids. A ênfase da análise concedida às relações entre os gêneros tem sido abordada por diversos estudos, entre os quais se destacam as contribuições de Maria Luiza Heilborn, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Baseada na proposição dumondiana da universalidade da hierarquia como ordenamento do mundo social, Heilborn busca as razões que expliquem a constante estrutural da assimetria na montagem das relações entre os gêneros.

O que parece relevante nessas análises é a necessidade de constatação das diferentes lógicas ordenadoras das representações presentes nos eventos que afetam o corpo, o que fica evidente nos dilemas e impasses colocados pela atitude aparentemente contraditória de homens e mulheres em termos de comportamento sexual e reprodutivo. No campo da saúde, tais impasses têm favorecido a emergência de estudos dos fatores agenciadores de propagação de doenças, principalmente da Aids, sob diversos ângulos. Deve-se ponderar, no entanto, que as diferenças entre os gêneros e o sexo podem não ser a explicação exclusiva do sentir e do agir humanos, embora deva ser considerado que a problemática da identidade sexual ganha relevância histórica e sentido a partir do lugar que a sexualidade ocupa na cultura ocidental.

Duas tendências podem ser identificadas nos fóruns e debates acerca das perspectivas, internacionais, sobre gênero, sexualidade e saúde, conforme Parker e Fajado (‘Novas tendências da pesquisa em gênero, sexualidade e saúde’, Boletim Sexualidade, Gênero e Sociedade, ano 3, no 5, jun. 1996). A primeira considera a construção social das relações de gênero elemento prioritário para entender e analisar a sexualidade, baseada na argumentação clássica da teoria feminista. Uma tendência mais recente defende descontinuidade, no plano teórico, entre gênero e sexualidade. Ambas são derivadas de estudos que optam pelo construtivismo como vertente teórica e se apóiam no entendimento genérico da sexualidade como fenômeno construído social e culturalmente.

Os trabalhos de Knauth e de Shuch colocam em evidência, mais uma vez, como a epidemia da Aids consiste em um dos maiores problemas a serem enfrentados em termos de políticas públicas e das ações desenvolvidas nos campos da educação e da comunicação em saúde. E como se tornou também propiciadora da emergência dos debates acerca dos sentidos atribuídos aos discursos sobre o corpo sexual e das identidades sociais. Assim, a tentativa de relativizar as explicações do sentir e agir humanos referidos ao gênero e ao sexo deve conduzir a uma compreensão da experiência sexual que recoloque o discurso do sujeito como pólo de significação, para que possa revelar ângulos distintos daqueles normatizadores de condutas que emergem em contextos históricos.

Finalizando, o conjunto dos temas abordados, já explicitados pelos títulos, indica sua importância que se encontra refletida na produção aqui apresentada em termos da abrangência dos temas no interior do campo das ciências sociais. Oferece ao leitor dedicado aos estudos acadêmicos ou voltado às intervenções no âmbito das políticas públicas uma gama de questões colocadas em debate e que se constitui certamente em interesse da grande parte dos pesquisadores e profissionais em diálogo com os diversos saberes e disciplinas desse campo.


Resenhista

Eliane Portes Vargas – Pesquisadora do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria/Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz.


Referências desta Resenha

DUARTE, Luiz Fernando; LEAL, Ondina Fachel (Orgs.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. Resenha de: VARGAS, Eliane Portes. Os sentidos do corpo na relação ‘saúde’ – ‘doença’. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.2, jul./out. 1999. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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