Do U dy grudy ao Cantares: as vozes e os acordes da moderna canção popular piauiense | Hermano Carvalho Medeiros

A configuração do campo de estudos em torno da música popular vem se definindo, no âmbito da escrita da história do Brasil, como parte da virada historiográfica decorrente da ascensão de paradigmas teóricos e metodológicos vinculados à história social e à história cultural em universidades de diferentes regiões do país. Contemplando pesquisas que versam sobre temas diversos dentro desse universo, tais como a polifonia paulistana na década de 19301, o samba e suas conexões com o Estado Novo2, a Tropicália e suas controvérsias3, a chamada “música cafona”4, o rap5 e a música sertaneja6, tais produções permitiram que, para além do eixo Sul-Sudeste, ocorresse uma crescente regionalização do debate que põe sons e sentidos no foco de historiadores.

Investido desse manancial de referências, o historiador piauiense Hermano Carvalho Medeiros trilhou um percurso acadêmico cujos argumentos, de algum modo, buscavam estudar distintas modalidades de cultura, sobretudo no campo musical. Desde sua graduação, pautada na mitificação do poeta e letrista Torquato Neto em sua terra natal7, passando pelo seu mestrado, que objetivou compreender a denominada “polifonia musical” teresinense8, seus esforços como pesquisador concentram-se em inserir os circuitos sonoros daquele estado nordestino no concerto acadêmico nacional, possibilitando que ganhasse lugar na historiografia como temática autorizada pelos seus pares.

Não seria exagero afirmar que Do U dy grudy ao Cantares: as vozes e os acordes da moderna canção popular piauiense (1973-1988), obra resultante da tese de doutoramento de Medeiros, defendida em 2020, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), sob orientação de Adalberto Paranhos, propõe um exercício de reflexão que ultrapassa as fronteiras de estudo do campo historiográfico de História e Música, delineado por um circuito de historiadores concentrados especialmente em instituições acadêmicas do Sudeste do Brasil, ainda que, pelas suas referências e modo de operacionalização das fontes, procure manter-se alinhado a ele. Medeiros o faz, principalmente, ao compreender que o cenário musical piauiense é conformado em um trânsito histórico de múltiplas iniciativas culturais, muitas delas nascidas de forma microbiana, mas que ocupariam lugar de saber e poder na cultura local, a exemplo do manifesto do “heliotropismo positivo” capitaneado por Durvalino Couto Filho, outrora jovem produtor de jornais alternativos e filmes experimentais em Teresina, bem como de festivais de música e projetos culturais de iniciativa estatal que tiveram em figuras então consideradas outsiders, como o próprio Torquato Neto, sua maior referência e simbolismo.

Para tanto, o autor realiza uma clivagem entre a documentação sonora e hemerográfica coletada em terras piauienses, dentro do recorte estabelecido, com a historiografia em nível regional e nacional. Dentre os mais importantes arquivos que compõem o corpus documental da obra encontram-se os jornais O Estado, Jornal da Manhã e O Dia, material utilizado para uma análise do cotidiano e da vida cultural piauiense do período, ao qual se somam os periódicos Cadernos de Teresina e Presença, publicações vinculadas respectivamente à Prefeitura Municipal de Teresina e ao Governo do Estado do Piauí. A documentação escrita é articulada a entrevistas feitas com artistas locais, como Ana Miranda, André Luiz, Aurélio Melo, Durvalino Couto Filho, Edmar Oliveira, Edvaldo Nascimento e Geraldo Brito, assim como a uma diversidade de álbuns sonoros, com destaque para os LPs Geleia gerou, de 1985, e Cantares, de 1987, aos quais se somam LPs e EPs de diversos outros artistas.

Estruturado em três capítulos, o livro situa sua discussão a partir, primeiro, de uma compreensão dos “começos” daquilo que designa como moderna canção popular no Piauí, seguindo-se a isso uma análise da ação de artistas locais para a organização e consolidação de eventos musicais. Por fim, propõe um estudo sobre os conflitos de estilos, identidades e intenções delineados pelos artistas que se projetavam no interior desses movimentos. No primeiro capítulo, tomando para si metáforas forjadas pela imprensa cultural local, tais como “Distanteresina” 9, “Teresíndia” 10 e “Tristeresina” 11, o historiador faz uso dos discursos que localizavam Teresina como espaço aparentemente longe das demais capitais e apartada dos grandes debates. Ao mesmo tempo, indica uma crescente integração do Piauí ao contexto nacional, não apenas através das iniciativas macropolíticas do então governador do Estado, o engenheiro Alberto Tavares Silva, mas também de um conjunto de produções de cultura alternativa, como a imprensa nanica produzida por segmentos da juventude da cidade, os quais sinalizavam um intenso diálogo entre teresinenses e criações culturais que pulsavam em outros lugares do Brasil e do mundo.

Nessas circunstâncias, o livro observa a emergência de aproximações entre grupos progressistas da cultura e defensores do nacional-desenvolvimentismo estatal de natureza autoritária que intentaram construir projetos que valorizassem e projetassem o Piauí na cena brasileira da década de 1970. Em meio a isso, a fundação da Universidade Federal do Piauí aparece como um potente impulsionador de acontecimentos culturais, como a o I Salão de Artes Plásticas da UFPI e o I Festival de Música Popular da UFPI, que congregaram figuras das artes de diversificadas matrizes cujo denominador comum consistia em dar visibilidade ao que se produzia em Teresina.

Ao analisar as referências mais destacadas nesse emergente cenário cultural teresinense dos anos 1970 – que perpassavam da Jovem Guarda à Tropicália –, Hermano Medeiros permite que, no segundo capítulo, a discussão passe a ser a trajetória dos próprios artistas que embalaria a “moderna canção popular piauiense”. Assim, enquanto mostra o surgimento de grupos como o Calçada e as sociabilidades que se processavam em espaços públicos – caso da própria UFPI – e privados – como a residência de Antônio Noronha Filho, à época professor do curso de Medicina daquela universidade –, o autor ajuda a compreender que os variados intercâmbios culturais traçados por artistas faziam com que eles, além de objetivos em comum, alimentassem desejos e projetos diferenciados no campo da cultura local.

No entanto, para Medeiros, os distintos grupos e suas tendências musicais “passaram a compor as concorrências e a desenvolver suas lutas internas que, longe de constituírem a desintegração desse universo, foram, ao contrário, os movimentos mesmo que proporcionaram a sua existência” (p. 99). É, pois, como parte desse cenário aparentemente fecundo, que artistas e grupos musicais se puseram a realizar espetáculos (um dos quais foi o U dy grudy) que tencionavam enfatizar tanto a visibilidade local quanto o estabelecimento de uma identidade musical, como produto de afirmação de posição no desenho do que deveria ser a desejada “moderna canção popular piauiense”.

Questão de identidade é, consequentemente, o tema que atravessa o terceiro e último capítulo do livro, que opõe as metáforas da “broa” e do “sanduíche”, representações, de um lado, da proposta regionalista do grupo Candeia – investido da missão de reverenciar as matrizes culturais nordestinas e piauienses e projetá-las –, e do outro, do cosmopolitismo de Geraldo Brito, cuja proposta era provocar uma inserção da música piauiense na esteira daquilo que vinha se produzindo em outros lugares, sem necessariamente atrelar-se a uma identidade regional ou local.

Tomando como documentação principal as canções que compõem os discos FMPBEPI, Geleia gerou, Cantares, Suíte de terreiro e Vai e vem das estrelas, Medeiros envereda por um debate que, extrapolando as fronteiras da canção piauiense, contrapõe uma multiplicidade de experiências de identidade cultural. Dialogando com o intelectual francês Michel de Certeau, em seu texto “A beleza do morto”, o autor explora a fala de Durvalino Couto Filho, que, em seu livro de poemas, Os caçadores de prosódias12, critica a mitificação do poeta Torquato Neto, estabelecido como emblema cultural piauiense, ao sublinhar que a busca por uma piauiensidade que se sobressaísse na cultura nacional parecia um desejo de expor uma “carranca sorridente”, produzindo, por essa via, uma leitura deificada daquilo que era regional. Remete, portanto, ao que Certeau chamaria de “erguer o morto”, no caso a dita “cultura popular”, de forma a monumentalizá- la e cristalizá-la aos olhos dos observadores.13

Arrematando uma discussão, anteriormente realizada em torno do Projeto Pixinguinha, com alcance nacional, inclusive com impacto no Piauí, e do Projeto Torquato Neto, de iniciativa local, Medeiros salienta que ambos, a princípio recebidos com euforia pelos artistas e agitadores culturais teresinenses, passariam a ser pautas de conflito eles. Os desencontros que eclodiram, de acordo com o autor, girariam, sobretudo ao redor do estabelecimento de critérios de escolhas de quem seria agraciado pelos projetos, o que resultaria em críticas de figuras como Durvalino Couto Filho (p. 158). Isso terminaria por configurar algumas rupturas simbólicas, materializadas, por exemplo, no “heliotropismo positivo”, movimento capitaneado por Durvalino, cuja repercussão junto a críticos que se postavam ao lado do poeta, lhe daria tônus de uma como que “tropicália piauiense”, ao mesmo tempo que seria visto por outros personagens da cena, caso de Paulo de Tarso Morais, como um movimento elitista, que colocaria essa fração dos produtores de cultura piauiense em um “casulo cultural” (p. 161).

Se pensarmos o trabalho de Hermano Carvalho Medeiros como mais uma significativa contribuição da área de História para extrapolar as fronteiras dos estados tidos como “centrais”, é possível que ele ofereça duas respostas diferentes e certamente complementares entre si. Por um lado, o livro possibilita uma leitura da produção cultural de uma época que não se enquadra nas chaves interpretativas dominantes forjadas pela historiografia a respeito da música e de outras manifestações culturais no eixo Sul-Sudeste. Não apenas pelos autores que compõem o repertório de Medeiros, em larga medida historiadores piauienses, como igualmente pelas singularidades empíricas que esse cenário possuiu, em que referências regionais, nacionais e globais se entrelaçavam em uma complexa rede de interlocuções que eram acionadas discursivamente de maneiras distintas, conforme as intenções dos artistas e produtores de cultura que nele se movimentavam.

Simultaneamente, Do U dy grudy ao Cantares reflete também o empenho do pesquisador em apropriar-se do modo de escrita historiográfica pertinente no interior dos espaços em foi produzido. Adequando-se às leis do meio, das quais fala Michel de Certeau em “A operação historiográfica”14, Hermano Medeiros se articula ao circuito acadêmico sobre o tema, ensejando, portanto, uma abertura para outros pesquisadores e publicações, tornando seu livro capaz de dialogar de forma sinérgica com aquilo que foi e é gerado no contexto das universidades, em particular nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Nesse movimento de transgressão temática, de adição de elementos novos ao campo de pesquisa e de agenciamento de uma adequada operação historiográfica, o livro contribui para que a historicidade da cultura piauiense seja costurada, na oficina dos historiadores, em linha de conexão com as experiências já conhecidas e largamente estudadas de outros tantos artistas e movimentos estéticos do Brasil contemporâneo, diluindo ainda mais as fronteiras que, reiteradamente, teimam em apartar diferentes espaços do país.

Notas

1 Ver MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular em São Paulo (anos 1930). São Paulo: Estação Liberdade/Fapesp, 2000.

2 Ver PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/ Fapemig, 2015.

3 Ver CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005; COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

4 Ver ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2005.

5 Ver CAMARGOS, Roberto. Rap e política: percepções da vida social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2015.

6 Ver ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

7 Ver MEDEIROS, Hermano Carvalho. Da fuga ao mito: a construção do mito cultural Torquato Neto. Monografia (Licenciatura Plena em História) – Uespi, Teresina, 2009.

8 Idem, Acordes da cidade: música popular em Teresina nos anos 1980. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – UFPI, Teresina, 2013.

9 Título de uma revista cultural que circulou por Teresina em 1977, cujo objetivo era visibilizar um conjunto de artistas piauienses de setores como poesia, humor, contos e fotografia.

10 Título de coluna publicada pelo jornalista Kenard Kruel no Jornal da Manhã em 1985.

11 Expressão cunhada pelo poeta Torquato Neto quando da confecção do filme experimental em formato super-8 O terror da Vermelha, de 1972, presente em cartazes espalhados pelos cenários da película.

12 COUTO FILHO, Durvalino. Os caçadores de prosódias. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1994.

13 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001.

14 Idem, A operação historiográfica. In: A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2013.


Resenhista

Fábio Leonardo Castelo Branco Brito – Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do curso de graduação em História e do Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Autor, entre outros livros, de Visionários de um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos. Teresina: Edufpi, 2018.  E-mail: fabioleobrito@hotmail.com


Referências desta Resenha

MEDEIROS, Hermano Carvalho. Do U dy grudy ao Cantares: as vozes e os acordes da moderna canção popular piauiense. Teresina: Cancioneiro, 2022. Resenha de: BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Percursos sonoros da “Distanteresina”: a moderna canção popular piauiense no interior do debate nacional. ArtCultura. Uberlândia, v. 24, n. 45, p. 256-261, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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