Do outro lado: A história do sobrenatural e do espiritismo | Mary Del Priore

Sobre a autora

Mary Del Priore é ex-professora de história da USP e da PUC/RJ, pós-doutora na École dês Hautes Études em Sciences Sociales, de Paris. Possui mais de 40 livros publicados e é vencedora de vários prêmios literários nacionais e internacionais, como Jabuti, Casa Grande e Senzala, APCA e Ars Latina, entre outros. É sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, do P.E.N. Club do Brasil, da Real Academia de La Historia de Espanha e da Academia Portuguesa da História. Atualmente, leciona na pós-graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira, no Rio de Janeiro.

Resenha

Mary Del Priore em seu livro Do outro lado: A história do sobrenatural e do espiritismo nos faz mergulhar na história do sobrenatural nas sociedades, nos incita a pensar como as pessoas no decorrer de vários séculos encaravam a morte. A autora destaca, a influência do espiritual na vida das pessoas, desde o nascimento até a morte, e as transformações na forma das pessoas encaram o mundo.

Um dos períodos mais retratados por é o século XIX. Por ser um século de grandes descobertas e revoluções, foi marcado pela racionalização, entretanto, a autora destaca que essa razão em demasiado, tornava-se tediosa, aumentando ainda mais o imaginário das pessoas para com as coisas espirituais, sobressaindo o fantasioso em meio à razão. Além disso, é destacada a questão do imaginário com relação à morte, o culto aos mortos aos poucos foi substituído pelo culto aos santos, em vista do distanciamento da relação entre vivos e mortos, criando assim, a ideia de que somente os santos seriam os intercessores dos vivos no plano espiritual. Porém, no século XIX a relação com os mortos era muito forte, tanto que haviam cultos religiosos e celebrações para eles, e essa tradição permanece até os dias atuais em algumas sociedades.

A autora inicia o livro relatando histórias que envolvem o sobrenatural no Brasil, nos séculos XIX e XX. Do namorado que assassinou a companheira ao pé de uma escada, na entrada de um casarão e como esse assassinato acabou influenciando a vida das pessoas que ali moravam; ou do médico negro que aparecia em sessões espíritas em Recife, em fins do século XIX, e que previa a morte das pessoas e passava mensagens aos vivos durante as sessões.

Com tais relatos, Priore destaca a necessidade das sociedades em ter algo para acreditar, que as crenças no sobrenatural expressam um sentimento particular dos indivíduos, tornando-se uma forma de consolo para as frustrações quotidianas, uma recompensa para as frustrações que a razão não conseguia amenizar

No plano de sua função no interior de uma dada sociedade, as crenças são insubstituíveis. Servem para compensar as vicissitudes da vida quotidiana, acolhendo favoravelmente os desejos mais secretos dos homens, fazendo justiça entre bons e maus e passando avisos e mensagens. No coração do mistério e do silêncio, no seio do diálogo entre o espiritual e o material, tradições específicas fazem florescer mortos e monstros, tornando-se absolutamente verossímeis. E, desde sempre, o sobrenatural teima em voltar do passado para avivar as cores do presente (p.15).

No Rio de Janeiro não seria diferente, em fins do século XIX e início do século XX, a cidade era efervescente em sua pluralidade religiosa, como destaca relatos do jornalista João do Rio, em 1905

A religião? Um misterioso sentimento misto de terror e de esperança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo e a perversidade. O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade de cultos espantar-vos-á. São swedenbordianos, pagãos, fisiolátras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da vida, reveladores do futuro, amantes do Diabo, descendentes da rainha de Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagoas mulheres que respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todos os sustos […] (p.17).

Com as reportagens de João do Rio, surgiu a série intitulada As religiões do Rio, que contavam histórias de espíritas, cartomantes e até mesmo a de um frei exorcista do morro do Castelo, pais de santo, sonâmbulos, pessoas endemoninhadas dentre outros personagens que habitavam o imaginário das pessoas nesse período. A série de reportagens de João do Rio permite aferir o quanto o sobrenatural exercia influência na sociedade do século XIX e inicio do XX.

Outro elemento que fazia parte desse universo do mistério e da imaginação, era a noite: a escuridão escondia mistérios que intrigavam as pessoas. Uma coisa em comum no imaginário do sobrenatural era a relação dos indivíduos com a fé, o acreditar em algo, buscando um significado para seus anseios. Priore destaca a relação entre os indivíduos e o sobrenatural, e o papel da fé na sociedade.

Uma vida finita, “sem grandes significados”, não é o bastante para os homens, que sempre buscam no sobrenatural as respostas para as perguntas e angustias que a vida lhes apresenta. Por isso se torna plausível acreditar que há dois séculos o sobrenatural fosse tão fantasiado pelas pessoas, pois até os dias atuais, o mesmo permanece assim.

Além desse apego ao imaginário, e essa busca por respostas nas várias formas que o sobrenatural se apresentava na sociedade brasileira do século XIX, Priore salienta o surgimento do espiritismo no mundo, as transformações que ele sofreu, além das várias críticas e perseguições aos seus seguidores. Desde Hippolyte Léon Denizard Rivail, ou como ficou mais conhecido, Allan Kardec, que buscava estudar o fenômeno por um viés mais científico, porém não em sua totalidade, pois acreditava também na influência do sobrenatural; até os indivíduos em geral que buscavam respostas às indagações, e com esse anseio por algo que respondesse as perguntas mais íntimas e as vontades mais reprimidas, as mesas volantes, sonâmbulas, curandeiros, cartomantes, espíritas, e pais de santos, acabavam ganhando espaço na sociedade. Portanto torna-se compreensivo o apego emocional dos indivíduos para com a religião, ainda mais em um período marcado por tantas transformações materiais, intelectuais e sociais, porém com grande clima de insatisfação para com os rumos da humanidade, transformando as certezas dos indivíduos em dúvidas e alimentando ainda mais a chama da crença.

Por fim, cabe destacar que Mary del Priore nos envolve com sua escrita clara e cativante. Fenômenos do sobrenatural que ganhavam destaque no século XIX ganham vida nas palavras de Priore, fazendo com que o leitor se imagine no contexto histórico abordado, criando uma noção histórica do período, dos costumes e crenças que atualmente consideramos sem grandes fundamentos, mas que no período exerciam influências e davam significado para a vida. Podemos nos imaginar nas histórias sobre fantasmas, ou como as sessões espíritas eram grandes esperanças de contato entre vivos e seus entes queridos já falecidos, ou como a busca pela verdade ou pela concretização de suas vontades fazia com que mulheres da alta sociedade carioca subissem o morro atrás de cartomantes ou benzedeiros.

Esses são os elementos que compunham o quadro de personagens dessa história do sobrenatural, todos com suas particularidades, porém, com o mesmo objetivo: trazer as respostas e o conforto ansiado por quem os procura. Se eram farsantes ou charlatões, não cabe a nós julgarmos, só nos cabe compreender o papel que esses indivíduos e suas crenças exerceram no período abordado e o legado que nos deixaram.

Laíssa Thaila Vicente – Graduanda do 7º semestre do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas. Bolsista PET – História.


PRIORE, Mary Del. Do outro lado: A história do sobrenatural e do espiritismo. São Paulo: Planeta, 2014. Resenha de: VICENTE, Laíssa Thaila. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.5, n.10, p. 162-165, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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