Do medo das doenças à morte coletiva | Revista Latino-Americana de História | 2021
Trauma coletivo da pandemia Covid-19 | Foto: BBC News
A proposta do Dossiê 2021.1 da Revista Latino-Americana de História da UNISINOS/RS trouxe como tema “Do medo das doenças à morte coletiva”. Um diálogo multissecular com o medo sempre uniu as pessoas, consideradas individualmente ou pertencentes a uma comunidade ou a civilização inteira. Doenças como lepra, peste, tuberculose e sífilis são evidências históricas geradoras de medo coletivo. São consideradas eventos naturais e sociais de grande relevância biológica, psicológica, demográfica e econômica, mas que a historiografia pouco ou não suficientemente se ocupou até algumas décadas. O motivo talvez seja que o esforço de tornar os eventos históricos compreensíveis e racionais venha a se defrontar com situações aparentemente irracionais e incompreensíveis que são as epidemias, imprevisíveis, por vezes fatais, e que são acompanhados por ansiedade, angústia e medo.
Hoje um mesmo medo congrega as pessoas. Enquanto a ciência se esforça na pesquisa de uma vacina ou de um fármaco antiviral, o vírus COVID19 se espalha, causando um número inesperado de mortes e sofrimento, da mesma maneira que em épocas pregressas houve o acometimento de jovens na pandemia da gripe espanhola, as trágicas sequelas da poliomielite, o surgimento de vírus mortais como o Ebola, a gripe H1N1 e os desdobramentos da SIDA. Esse dossiê é mais um esforço de trazer à luz da interpretação contemporânea o fenômeno do medo das doenças à morte coletiva.
Do ponto de vista individual, as doenças e as epidemias são tanto fenômenos biológicos, que modificam o organismo, quanto sociais, que interferem na existência humana. Em seu aspecto de caráter coletivo, as doenças e as epidemias são fenômenos que provocam e promovem reações diversas em defesa da vida como espécie e da sociedade como coletivo de indivíduos. Desta maneira, a doença é ao mesmo tempo processo natural e sociocultural.
Os artigos aqui reunidos trazem importantes reflexões para compreendermos o fenômeno social das doenças, alguns elementos médicos são apresentados, mas as discussões se voltam para os efeitos sociais que as endemias e epidemias provocam ao longo da História. São trabalhos que apresentam esses eventos de modo localizado permitindo compreender os arranjos locais no enfrentamento às doenças, mas que remetem a práticas e políticas que se desenvolveram em todo o país. Esses enfrentamentos congregam questões médico-sanitárias, econômicas, sociais, políticas e, mais amplamente, culturais. Os trabalhos aqui reunidos percorrem três séculos de História.
O Brasil do Setecentos, marcado pela seca, fome e epidemias é retratado no artigo intitulado “A Seca, a Epidemia e a Fome nas Capitanias do Norte, 1790-1793”. O artigo mostra o imbricado problema das carestias sociais durante a chamada “Grande Seca” que se abateu sobre as Capitanias de Pernambuco, Rio Grande, Paraíba e Ceará. O evento revelou problemas desde a falta de comida à falta de assistência, o período revelou uma população vulnerável e desassistida de médicos, cirurgiões ou boticários em meio a epidemias que assolavam a região. O século XIX, quando inicia um processo de medicalização social, é marcado pela tentativa de sanear os espaços urbanos. O artigo “Entre miasmas e médicos: a municipalidade e a saúde pública no Brasil Oitocentista (Recife, 1829-1849)” discute a atuação da municipalidade no âmbito da saúde pública e as medidas para lidar com os problemas médicos sanitários, usa o caso do Recife, mas podemos encontrar no texto situações que se repetem Brasil afora, uma vez que a saúde pública e higiene eram tratadas em separado pelos poderes constituídos no período analisado.
Também o artigo do “‘Assombro’ à morte: possibilidades de se pensar o medo, varíola e raiva no Piauí na segunda metade do Século XIX” revela uma situação comum a muitas províncias brasileiras. A insalubridade urbana e a presença de epidemias apresentavam-se como um cenário propício ao medo, ameaças reais somavam-se ao imaginário social promovendo o pânico na população. O trabalho apresenta medidas adotadas pelo poder público, como a regulamentação das posturas, a vacinação e isolamento para frear a disseminação de doenças, medidas adotadas em todas as províncias e capital do Império. O século XX inicia com antigos e novos problemas sanitários. Dois trabalhos que discutem a presença de moléstias contagiosas e as medidas concretizadas para combatê-las em cenários periféricos as grandes metrópoles do sudeste brasileiro. A tuberculose é uma doença que permite pensar sobre a vida e a morte. Devido aos números impressionantes de pessoas acometidas, a doença fazia parte da experiência de vida de grande parte da população. A sífilis, com seu estigma de moralidade, frequentemente remonta ao comportamento sexual considerado pecaminoso ou excessivo e, portanto, sujeito a punição. É a doença do outro, do estrangeiro ou do inimigo. Fatores sanitários, sociais, culturais ou políticos, legitimados pelo saber médico, ajudaram a considerar as duas doenças como problemas de amplitude nacional, capazes de atrair a atenção da opinião pública e a promover campanhas especificamente destinadas a erradicá-las. Os textos sobre tuberculose e sífilis encontram-se dentro da conjuntura política do governo de Getúlio Vargas de enfrentamento às moléstias contagiosas e de concretização dos ideais formativos de um Estado forte.
O artigo “Aprenda a defender seu filho”: As políticas públicas de saúde e a atuação médica na sífilis congênita em Teresina- PI nos anos 1930 e 1940” analisa a situação da moléstia e as medidas que foram criadas na prevenção e profilaxia da sífilis infantil em Teresina. Os autores discutem aspectos históricos da origem da doença, a evolução do tratamento e atitudes pontuais como a utilização dos exames pré-nupcial e de pré-natal, instâncias específicas para evitar a propagação da doença. Aspectos eugênicos impediriam a união e reprodução de indivíduos portadores da doença reduzindo desta maneira a alta mortalidade infantil. É salientado o vínculo da saúde infantil ao desenvolvimento e a civilização do estado e do país; a agenda da política varguista reconhecia a preservação da saúde materno infantil como assunto de interesse nacional.
O artigo “A Semana da tuberculose de 1937 em João Pessoa: discursos médicos e educação sanitária no combate à peste Branca na Paraíba” dedica-se a análise das medidas educativas de promoção à saúde que foram desenvolvidas, os autores envolvidos e a população a ser alcançada. É destacada a maneira como o combate à tuberculose seguiu aos padrões nacionais e a legislação que se cristalizou. A doença que tinha os pobres como metáfora de contágio e perigo, atingia a cifra de 40% das mortes causadas por moléstias transmissíveis; isolar-se ou ocultar a doença eram possibilidades na ausência de um tratamento eficaz. O artigo mostra como o evento uniu esforços da comunidade médica que contaram com o apoio da imprensa, da rádio e do Departamento de Ensino local. Palestras educativas e conferências proferidas por médicos dedicaram-se à conscientização social da população frente à doença, enfatizando os fatores que enfraqueceriam o corpo e que levariam ao agravamento do mal. O quadro que emerge da revisão dos artigos que tiveram o medo como temática subjacente mostram diversas experiências regionais frente à história da doença e da saúde num período de mais de três séculos. A produção historiográfica resultou, entre outros tópicos, na produção de conhecimento que contemplam a dimensão social e política das epidemias, as políticas de saúde pública, a relação da saúde com os processos de construção do Estado, e as relações entre instituições de saúde e as estruturas sociais, econômicas e políticas. São questões atuais que ainda hoje podem oferecer modelos para pensar as intervenções políticas e a questionar condutas em saúde pública.
Organizadores
Leonor C. Baptista Schwartsmann
Juliane Serres
Referências desta apresentação
SCHWARTSMANN, Leonor C. Baptista; SERRES, Juliane. Apresentação. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.10, n.25, p. 5-8, jan./jul. 2021. Acessar publicação original [DR]