O surgimento da epidemia de HIV/Aids recolocou em primeiro plano questões que pareciam superadas para a medicina, ou ao menos relegadas aos rincões mais pobres do planeta, onde as doenças infecciosas e parasitárias continuavam (como continuam) seguindo, como causas importantes de morbimortalidade.
A irrupção de uma ‘praga’ moderna também reviveu antigos fantasmas, como a discriminação, a demonização de ‘outros’ responsabilizados pelo seu aparecimento, o pânico da contaminação. Estas respostas surgiram através de todos os recortes sociais possíveis, não poupando nem mesmo aqueles que supostamente teriam o conhecimento técnico para evitá-las.
O trabalho de Dina Czeresnia ajuda a entender e colocar em perspectiva as respostas sociais à epidemia de HIV/Aids — e entendemos os desenvolvimentos técnico-científicos também como respostas sociais — ao historiar uma série de linhas, aparentemente desconexas, que levam às modernas construções de epidemias, infecção e contágio.
Um primeiro mérito deste livro é articular termos usualmente abordados isoladamente, como o desenvolvimento do conceito moderno de organismo e seu papel no entendimento corrente sobre os processos infecciosos; a visão cultural do contágio e a constituição histórica de um conhecimento sobre as epidemias; as origens históricas da epidemiologia e as disputas teóricas entre contagionistas e anticontagionistas.
Neste último particular, a autora faz um importante trabalho de especificação de quais eram, exatamente, os pontos de divergência entre estas duas correntes de pensamento, mostrando, por exemplo, como o enfim triunfante contagionismo na verdade trazia uma nova concepção, representada pela incorporação da perspectiva microbiologista, constituindo um novo conceito, o de transmissão. Em lugar de um ‘contágio’ inespecífico (etimologicamente ligado à idéia de contato físico), as doenças infecciosas caracterizar-se-iam pela possibilidade de transmissão de agentes microscópicos de um indivíduo a outro.
Outro aspecto importante deste livro é a recuperação das idéias de autores praticamente desconhecidos, Crookshank e Hamer, epidemiologistas do início deste século, com idéias surpreendentemente avançadas mesmo para os nossos dias, propondo uma epidemiologia que levasse em consideração não apenas os agentes patogênicos microscópicos, mas também o que chamavam de “constituição epidêmica”.
Um último aspecto meritório de destaque, presente ao longo de todo o desenvolvimento do livro, é a concepção de uma ciência com determinações complexas, que, longe de ter uma relação de dominação com a cultura mais geral, ou de completo desconhecimento, mostra amplas interações, em que ambas moldam correspondentemente seus discursos e suas práticas. Desse modo, as visões de um dado momento histórico sobre as epidemias, suas causas e seu enfrentamento, longe de espelhar passivamente o discurso da autoridade acadêmica, mantêm com esta um diálogo dinâmico, de interação.
É esta concepção, fundamentalmente, que abre espaço para a investigação teórica da autora, que vai da biologia à história, da epidemiologia à filosofia, incursionando até mesmo por alguns aspectos teóricos da psicanálise. O resultado é um painel amplo que retrata a multiplicidade de sentidos que se esconde por trás de termos técnicos de aparente simplicidade, que por sua vez ajuda a explicar por que o pânico, o preconceito e a discriminação são também por vezes ‘contagiosos’, mesmo para aqueles que, em virtude do seu treinamento profissional, suporíamos ‘imunes’.
Resenhista
Kenneth Rochel de Camargo Junior – Doutor em saúde coletiva. Professor adjunto do IMS/UERJ. E-mail: kenneth@uerj.br
Referências desta Resenha
CZERESNIA, Dina. Do contágio à transmissão: ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1997. Resenha de: CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel de. Epidemias, infecção e contágio. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.4, n.1, mar./jun. 1997. Acessar publicação original [DR]
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