Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930 – RAGO (VH)
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar – A utopia da cidade disciplinar- Brasil: 1890-1930. Editora Paz e Terra, 1985. Resenha de: FARIA Maria Auxiliadora. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p.147-148, jun., 1986.
A convite, do prefaciador Edgar de Decca e da própria Autora. participei da viagem. E o fiz com gosto por estar, como outros, preocupada em resgatar na tecitura histórica da República Velha práticas cotidianas do operariado brasileiro.
No Brasil, esta tentativa é nova. E como tudo que é novo, inquietante. Ao se tentar por exemplo, reconstituir os processos de morar dos trabalhadores. suas formas de lazer e de educação, sua sexualidade e mesmo as sutilezas de suas resistências frente às diversas instâncias do Poder, revela-se o até então irrevelado. Redimensiona-se o papel histórico da classe operária, recuperando-a não em suas generalizações mas em suas particularidades, ou no seu cotidiano.
Para penetrar nesse mundo novo necessário se faz, tal como propõe a Autora, empreender uma viagem. Todavia, não se pode levar na bagagem preconceitos há muito arraigados: que a classe operária brasileira da Primeira República era social e politicamente atrasada; que os anarquistas não propuzeram nenhuma forma organizada de resistência; e além de outras ”verdades consagradas” a de que as classes dirigentes, ocupadas na manutenção do Estado Oligárquico cujo sustentáculo econômico era o setor agrário-exportador, não construiram, a nível do espaço urbano em geral e da fábrica em particular, dispositivos especiais de domesticação do operariado.
O cenário é quase sempre a cidade de São Paulo, apesar de o subtítulo referir a: Brasil 1890·1930. O objeto de estudo: o cotidiano do operariado e, em especial dos adeptos da doutrina anarquista. E assim que Margareteh Rago tenta, e com êxito, desvendar as inúmeras formas utilizadas no processo de adestramento dos operários para torná-los mais produtivos, mais dóceis e mais disciplinados. Aptos a desfrutar, portanto, de um espaço – a cidade- que longe de ser o local mesmo do conflito deveria tornar-se o da harmonia.
No sumário do lívro, mais que um índice, um apelo da Autora, um chamamento à leitura: “Fábrica satânica/fábrica higiênica- A colonização da mulher -A preservação da infância- A desodorização do espaço urbano”. Introduz em cada um desses capítulos não apenas emocionantes relatos fundados em dados empíricos, mas também e principalmente, ricas interpretações subsidiadas por pensadores como E.P. Thompson e Michel Foucault. Utiliza-se também de O. Montgornery e Mário Tronti. quando se preocupa em analisar práticas explícitas ou veladas de resistência operária. Assim, a Autora contribui decisivamente à construção de uma nova historiografia sobre a classe operária e o movimento anarquista na Primeira República.
Mas se a contribuição é decisiva, não se pode negar que o arrojo de M. Rago ao penetrar “no interior das fábricas, dos bairros e vilas operárias do inicio da industrialização do país” para atingir os objetivos propostos, resultou num certo comprometimento da análise no tocante a temas polêmicos. como sejam: o mito do amor materno, o aleitamento infantil, o problema do menor abandonado ou mesmo a questão da segregação social do espaço urbano, que ela preferiu chamar de “desodorização do espaço”. A ideologizaçâo que atribui ao saber médico, leva o leitor menos atento a repudiar a evolução da medicina e a introdução de técnicas sanitárias e higiências no espaço urbano. Assim também, a atribuir à medicina preventiva, e ao incentivo à amamentação um lugar de peças decisivas num plano diabólicamente tramado no sentido exclusivo de domesticar a mulher operária e preparar cidadãos saudáveis e aptos a se integrarem ao mercado de trabalho. Ainda sobre a mulher conclui, à pág. 206, que o projeto de domesticação da classe operária redefiniu papéis e que a ela (mulher) “foi designado o triste destino de vigilante do lar e de mãe de família. Todos os comportamentos que se produziram fora destes parâmetros recobriram-se do estigma da culpabilidade e da imoralidade. Entre as figuras da Santa Maria e da Eva, nenhum espaço foi permitido à mulher. a despeito de todas as solicitações que o mundo industrial lançava sobre ela”.
Da idéia de “triste destino” talvez lhe tenha ocorrido outra, que deu título ao livro: “Do cabaré ao lar”, ou aí estaria o duplo de que tanto fala o prefaciador? Como ele mesmo afirma. que a liberdade do literato não é a mesma do hitoriador, ocorreu-me o que se contava no meu tempo de estudante: Um aluno, não sei bem se de História ou de Sociologia, teria ido à biblioteca em busca do livro “Raizes do Brasil” do saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Não o encontrando na prateleira apropriada, pediu auxilio a uma funcionária que lhe passou a seguinte advertência:- “Você está equivocado. Esse livro deve ser procurado na seção destinada às obras de botânica”.
Quem empreender com a Autora a viagem proposta certamente colocará o livro na prateleira adequada, e o destacará como obra inconfundível. A densídade com que desvenda a trama do cotidiano operário apesar de pequenos desvios de percurso, acaba por desmistificar algumas verdades. Entre outras, a de que, apesar de todas as tentativas de silenciamento, operários em geral e anarquistas em particular, foram capazes de apresentar formas: de resistência ao conjunto de normas disciplinares que lhes foram impostas nos primeiros anos de industrialização brasileira.
Maria Auxiliadora Faria – Professora Adjunta do Departamento de História da FAACH/UFMG.
[DR]