A proposta fundamental deste dossiê centra-se na análise das relações entre as ditaduras latino-americanas e o meio ambiente. Essa perspectiva serviria de catalisador para as diferentes dimensões que compõem a complexa história das ditaduras militares que assolaram a América Latina na segunda metade do século XX. Tais ditaduras impuseram modelos econômicos liberais agressivos que moldaram para sempre a região em termos socioculturais.
Pois bem, o poderoso imaginário neoliberal, que acabou desenhando cidades, áreas rurais e demais territórios, produziu e continua a produzir muitas tensões nas sociedades onde está presente. Assim, o aumento da violência, corrupção, desigualdade e marginalização acaba causando grande impacto ambiental. Essa perspectiva se faz necessária em razão do progressivo interesse das sociedades latino-americanas por seu passado autoritário, tanto por parte de grupos sociais que – cada vez mais representados na política institucional – buscam valorizá-lo, quanto por setores que percebem no estudo da história recente uma fonte de significados para compreender o momento atual. A ascensão do autoritarismo na América Latina em geral, e no Brasil em particular, está sendo acompanhado por duas grandes crises ambientais: a acelerada destruição dos biomas e da biodiversidade e a pandemia gerada pelo coronavírus. Ambas estão associadas a modelos de produção e consumo que, paulatinamente, mostram-se perversos e autodestrutivos.
Juliana Ribeiro Marra, com o texto A civilização chega à selva: o domínio da natureza e o desejo do “Brasil Grande” no regime civil-militar, e Júlia Boor Nequete, com Otimismo e silenciamento: a Transamazônica e a integração nacional através da propaganda oficial da ditadura civil-militar nos documentários da Agência Nacional (1964-1979), demonstram que a construção do Estado brasileiro sempre esteve intimamente ligada à ideia de conquista interna, tendo na destruição da natureza selvagem do país sua maior fonte de simbolismo. O meio ambiente usado como forma de propaganda para promover a ideia de força e progresso é analisado por Luiz Eduardo Pintos Barros no artigo Preocupações ambientais? A Argentina e suas ações no contexto do projeto hidro energético de Itaipu entre o Brasil e o Paraguai (1966-1979), abordando-o a partir da geopolítica e de seu impacto diplomático. Já Karina Souza e José Carlos Anjos, em Modernização por expropriação: a ditadura civil-militar no Vale do rio Pindaré-MA, devolvem a terra ao campo de batalha entre as forças repressivas e de oposição.
Do legado do autoritarismo, podemos desfrutar de dois textos tão díspares quanto necessários. De um lado, Janaina Cardoso de Mello em Democracia em crise: a política do caos no Peru contemporâneo em meio à potência cultural busca compreender a atual crise de valores democráticos no Peru, um país conhecido de maneira muito superficial no Brasil. O texto permite ao leitor colocar em perspectiva a visão que se costuma ter da América Latina a partir do Brasil. Por outro lado, em Religiosidade no BNM Digit@l: os bastidores do “Brasil: Nunca Mais” a partir de fontes da internet, Luca Lima Iacomini analisa a recuperação da memória da ditadura na atualidade e a importância das identidades religiosas, considerando o acervo da plataforma BNM Digit@l disponível abertamente na internet.
O Conselho Editorial da revista nos propôs ampliar o enfoque do dossiê e, graças a isso, foi possível incluir textos de qualidade indubitável que exploram as mais variadas faces da ditadura no Brasil.
O tema principal está associado à repressão, violência do Estado e violação dos direitos humanos. Nesse sentido, agrupamos artigos como o de Selma Martins Duarte intitulado Violações dos direitos indígenas e os limites da justiça de transição no Brasil. O texto trata da importância de compreender os avanços nos limites da Justiça de Transição sobre os povos indígenas para enfrentar o problema da violência contra este setor da população, menosprezado durante o processo de redemocratização do país. Como espaço de transição entre a questão indígena e os grupos de oposição ao regime militar, Eder Augusto Gurski pesquisa a Espionagem e investigação em tempos de Ditadura: a caça aos integrantes do CIMI-Sul. Por fim, José Aírton de Farias, em Explosões conservadoras: atentados de extrema-direita na transição da ditadura civil-militar (1980-82), analisa a resistência terrorista à transição para a democracia, mostrando que havia forte apoio social à ditadura ainda nas suas fases mais tardias.
Complementando a pergunta de Farias, Paulo Henrique Leal Pereira, em Um grito de socorro: a democracia roubada, propõe-se a explicar, por meio de uma entrevista com um ex-militar, o sucesso tanto do golpe de 1964 quanto de sua extensão no tempo graças à narrativa e à estrutura ideológica dos militares.
Este rico dossiê se encerra com artigos que ampliam os estudos sobre a ditadura militar no Brasil em sua dimensão social. Julia de Paula França nos apresenta ao mundo da resistência dos estudantes e docentes com seu artigo A espacialidade do movimento estudantil e do movimento docente na PUC-Rio durante o regime militar brasileiro. Já Geovanni Rocha Junior faz sua contribuição analisando a instabilidade econômica em Democracia, desemprego e conflitos sociais em Santa Catarina (1980- 1984).
Como podemos ver, a proposta inicial dos editores convidados foi ampliada por uma variedade de trabalhos que trazem aos leitores uma série de análises que enriquecem o debate historiográfico e ampliam consideravelmente o acervo de pesquisas sobre as ditaduras militares latino-americanas.
Agradecemos ao Conselho Editorial da revista Em tempos de Histórias pelo convite e, acima de tudo, agradecemos aos autores pelas produções de alta qualidade. Esperamos que os leitores gostem tanto quanto nós dos textos que compõem este dossiê.
Organizadores
Paulo Cesar Gomes – NEC/UFF.
Carlos Benítez Trinidad – HISTAGRA/USC.
Referências desta apresentação
GOMES, Paulo Cesar; TRINIDAD, Carlos Benítez. Apresentação. Em Tempo de Histórias. Brasília, n. 38, p. 3-5, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]
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