O presente trabalho constitui em uma resenha do livro Ditaduras e Revolução. Democracia e Políticas da Memória, publicado pela Edições Almedina em 2015, organizado por Manuel Loff1, Filipe Piedade2 e Luciana Castro Soutelo3 (LOFF, et al., 2015). Ler e refletir sobre o tema dessa obra é de fundamental importância dada a conjuntura em que vivemos. Tanto no Brasil como em diferentes países da Europa, os últimos anos marcam um momento em que revisões históricas sobre o passado de regimes ditatoriais e fascistas ganham espaço e discursos políticos incorporam apologias e mesmo pedidos pela volta de alguns desses regimes. Com o objetivo de lançar um olhar atento a esse tipo de retorno, de lutas e conflitos em torno da memória desses estados de exceção em diferentes países do ocidente, o livro em questão é uma leitura obrigatória.
Halbwachs (2006, p.72) alerta sobre a importância de marcos sociais para memória coletiva, pois, partindo de suas considerações, só conhecemos a história de nosso grupo nacional por meio de outros testemunhos de acontecimentos importantes. Sua concepção de história, baseada na analogia do “cemitério” com os fatos passados imóveis e sepultados, induziu a uma separação radical entre história e memória. Catroga (2001) observa alguns pontos em comum sobre essas duas formas de estabelecer filiações com o passado, bem como a possibilidade de mudanças, revisões e novas interpretações sobre os “fatos”, ou seja, tal como a memória, a história também está sujeita às dinâmicas e aos interesses do presente.
Se a história é um cemitério, como Halbwachs imaginou, é constantemente revirado e suas tumbas estão sempre abertas, por onde, de tempos em tempos, alguns cadáveres retornam para espreitar os vivos (ou são retornados forçosamente, despertados de seu sono). Por isso, a leitura de Ditaduras e Revoluções é importante, pois lança luz aos elementos presentes em rememorações de grupos e sujeitos em sua relação com a história e com políticas públicas que tratam do passado que envolve memórias traumáticas em diferentes países do mundo ocidental. Especialmente porque
[…] qualquer passado pode ser usado, transformado em mercadoria, distorcido, comercializado, reelaborado, deslocado, indiciado, processado, julgado e, é claro, esquecido (HUYSSEN, 2014, p. 177).Assim, o livro traz reflexões de pesquisadores de diferentes países (ou que estudaram ditaduras em diferentes contextos), particularmente sobre Portugal, Espanha e o Brasil. A primeira parte apresenta pesquisadores que se debruçam sobre A luta pela memória em Portugal: da ditadura, da Revolução; a segunda parte aborda A memória da Guerra Civil espanhola e do Franquismo; a terceira parte lança luz sobre Uma nova frente: a memória da ditadura militar no Brasil e a quarta parte, colocada como considerações finais, indaga sobre a existência de Uma memória européia. De uma forma geral, os artigos reunidos na obra abordam sociedades que foram submetidas aos regimes fascistas ou “fascizados”, sob forte repressão social e policial, especialmente entre os anos 1970-1980.
De acordo com os autores que organizaram o livro, os últimos quarenta anos desde “o final do ciclo de impulso revolucionário e emancipador” iniciado na década 1970 “até à vaga neoliberal e neoconservadora que se vem espraindo desde então”, implicam em uma batalha pela hegemonia política e cultural que se estende ao campo da memória (LOFF, et al., 2015, p. 10). Entre as questões abordadas pelos autores reunidos estão algumas referentes ao papel do estado na produção, difusão e representação de memórias e políticas públicas, que podem promover (ou não) consequências legais aos sujeitos envolvidos, desde punições ao ressarcimento e indenização das vítimas desses regimes.
A democratização, no caso ibérico, promovida na década de 1970 abriu uma porta para a libertação da memória, seguida por um período de reconciliação (mais visível na Espanha), que acabou conduzindo a uma “desvalorização da memória antifascista” (LOFF, et. al., 2015, p. 12). Esses embates ocorrem porque os Estados, instituições, movimentos políticos, entre outros, produzem discursos memoriais, representações adequadas aos seus interesses que se cruzam, ou mesmo contradizem e entram em conflito com narrativas tecidas nos grupos sociais, dos sujeitos que vivenciaram os períodos mais difíceis desses regimes. São memórias que se constituem no âmbito familiar, ou mesmo em associações de classe, em uma escala menor que aquela dos agentes do estado, instituições culturais ou de partidos.
Os estados que se definem como democráticos, que resultam de processos pós-autoritários, produzem discursos institucionais que descrevem processos de (re)fundação radicados na rejeição da opressão (política, social, étnica, cultural, de gênero…) que precedeu a sua consolidação. Na historiografia e, particularmente, na divulgação histórica através dos mais variados instrumentos de atuação no espaço público (e particularmente através dos média), desenvolvem-se, também aqui inevitavelmente, políticas da memória (LOFF, et al., 2015, p. 13).
Após as décadas iniciais da democracia em Portugal e Espanha, começam a ocorrer confrontos entre discursos políticos opostos que se concentraram em alguns pontos polêmicos, como a responsabilidade da Guerra Civil espanhola, da repressão e da dignidade moral das vítimas e sobre a natureza política do salazarismo, o colonialismo/Guerra Colonial, a repressão e os movimentos de resistência (LOFF, et al., 2015, p. 12). Huyssen (2014, p. 177) esclarece que os traumas históricos, como o Holocausto, o nazismo, o fascismo, as ditaduras, figuram no primeiro plano de uma política da memória mundial, mas como a presente obra indica, avanços neoliberais e conservadores nas sociedades que sofreram com esses regimes autoritaristas e repressores entram em choque com a memória das vítimas e dos integrantes de movimentos de resistências.
Partindo dessas considerações, a primeira parte da obra inicia com o artigo de Manuel Loff, Estado, democracia e memória: políticas públicas da memória da ditadura portuguesa (1974-2014). Esse artigo questiona o fato de Portugal apresentar um quadro de políticas públicas da memória da ditadura (1926-1974) que se constitui de forma muito semelhante aos países em que a democracia emergiu sem uma ruptura com o passado autoritário, o que não aconteceu nesse país, onde uma revolução interrompeu o regime ditatorial. Loff também chama atenção para a polarização que a revolução que pôs fim ao salazarismo introduziu na sociedade portuguesa, dificultando o enraizamento de consensos mínimos sobre a memória da ditadura. O autor estabelece uma periodização, apresentando, caracterizando e debatendo diferentes fases de políticas da memória da ditadura em Portugal, desde 1976 até o presente.
O artigo de Paula Godinho, Passados insubordináveis: acontecimento, razão escrita e memórias fracas é o segundo capítulo da primeira parte. As considerações da autora giram em torno de um estudo sobre os discursos biográficos de integrantes do Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), especialmente no que diz respeito aos embates entre uma memória coletiva do grupo em foco e em uma memória pública, construída pelos discursos dos meios de comunicação, livros, toponímia, entre outras representações. Completam essa segunda parte os artigos de Cristina Nogueira, Resgatar a memória: os jornais 3 páginas para as Camaradas das Casas do Partido e A Voz das Camaradas das Casas do Partido; de Fernando Rosas, A Revolução portuguesa de 74/75 no seu 40° aniversário; de Bruno Monteiro, Revolução de outro modo. Práticas de construção da memória sobre a revolução entre as elites económicas do Porto; de Ana Sofia Ferreira, Memória da luta armada durante os 40 anos de democracia; de Filipe Piedade, A memória das Forças Armadas sobre a Guerra Colonial nas páginas de publicações militares (1976-2012); finalizando com Luciana Soutelo, O revisionismo histórico em perspectiva comparada: os casos de Portugal e Espanha.
A segunda parte do livro, direcionada à Guerra Civil espanhola começa com o artigo de Julián Casanova, O castigo no(s) pós- -guerra(s), onde analisa a ditadura de Franco saída da guerra civil e consolidada entre a Segunda Guerra Mundial. O autor elabora um paralelo entre a construção de uma memória da Guerra Civil espanhola, da ditadura franquista e da Segunda Guerra. Casanova demonstra como os debates em torno dos direitos humanos, das memórias de guerras e ditaduras em um plano internacional impulsionou movimentos e organização das vítimas da guerra e da ditadura espanhola em uma busca por justiça e reconhecimento público da tragédia. Outros dois artigos compõem a análise do caso espanhol: o trabalho de Carme Molinero, A herança do passado. O franquismo e a direita espanhola, e o de Pere Ysàs, Memória e silêncio. A esquerda espanhola durante a transição.
A terceira parte, dedicada aos estudos sobre a ditadura no Brasil é composta por dois artigos: o de Carla Luciana Silva, As políticas de memória no Brasil, 50 anos após o Golpe, e de Lucileide Costa Cardoso, 50 Anos Depois: Discursos de Memória e Reconstruções históricas sobre o Golpe de 1964 e a Ditadura Brasileira. Carla Luciana Silva direciona seu trabalho na análise das políticas públicas promovidas no âmbito do Estado que, para a autora, apenas foram promovidas em função da mobilização de uma parcela da sociedade. Nesse caso, foram abordadas a formação da Comissão de Anistia, da Comissão de Mortos e Desaparecidos e a Comissão da Verdade, todas entendidas como uma forma de ampliação do estado sobre a memória, observando os consequentes avanços e retrocessos em relação à legislação e às políticas de memória sobre a Ditadura.
O capítulo escrito por Lucileide Costa Cardoso versa sobre a elaboração de discursos memorialísticos e historiográficos do Golpe de 1964 e da ditadura e como interpretações históricas acabam incorporadas à memória, contribuindo para cristalizações, revitalizações e confrontos. Os novos recortes, temáticos, conceituais e temporais impulsionados pelos movimentos sociais, as datas simbólicas como os trinta, quarenta e cinquenta anos do golpe foram abordados pela autora que defende a tese de que, no caso brasileiro, não houve uma ruptura política na transição da ditadura para a democracia, mas o estabelecimento de consensos entre diferentes grupos sociais. Para sustentar sua proposta, Lucileide empreende uma pesquisa em diferentes produções memorialísticas e históricas sobre o regime ditatorial brasileiro desde 1964 até 1980.
A quarta parte apresenta três capítulos: Memórias europeias. Perspetivas emaranhadas, de Enzo Traverso; Invasores ou vítimas? Sobre a memória transnacional da guerra germano-soviética (1941-45), de Xosé M. Núñez Seixas e A ética da memória europeia: o que deve ser feito, de Luisa Passerini. Traverso inicia seu artigo tecendo considerações sobre as relações entre memória e história, observando interações e limites entre esses dois conceitos, considerando que, no último século, a memória coletiva se transformou em um objeto de investigação para os historiadores. Suas considerações teóricas giram em torno das formas de representação do passado, da escrita da história e da constituição de uma memória histórica. Para exemplificar sua discussão, o autor aborda diferentes acontecimentos ao longo do tempo do espaço, como a memória do Holocausto e sua narrativa, bem como o papel que esse evento, ou melhor, a maneira como foi instituída sua memória (a memória das vítimas), influenciou a narração e a memória de outros conflitos europeus.
Xosé Núñez Seixas centra suas reflexões em torno da construção de uma memória transnacional após a guerra germano-soviética (1939-1945), elaborando uma síntese do percurso dessa elaboração em países Alemanha, Itália, Espanha, França, Finlândia, Holanda, Bélgica, Noruega e Suécia. O autor assinala que não existe um padrão de rememoração ou lembrança desse da Frente Leste desse conflito, existindo uma grande variedade de memórias públicas e privadas e de políticas da memória estatal- -nacional que dialogam entre si. Finalizando o livro, Luisa Passerini questiona a existência de uma identidade europeia que possa servir de base para a criação de uma memória comum aos europeus. Em seu artigo, a autora analisa o papel dos migrantes, das artes visuais, do cinema e até da mitologia nas tentativas da criação de uma memória comum na Europa. Concluindo, é possível observar que o livro Ditaduras e Revoluções aborda diferentes questões relacionadas a constituição, revisão, comemoração e rememoração do passado em países que sofreram com ditaduras, mas, também, traz questões importantes sobre a memória de sujeitos e grupos revolucionários, que combateram esses regimes.
Notas
1 Professor no Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH/UNL.
2 Mestre em História Contemporânea e Licenciado em Línguas e Relações Internacionais pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
3 Mestre em História Contemporânea e doutoranda em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Referências
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Quarteto Editora: Coimbra, 2001.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014.
LOFF, Manuel; PIEDADE, Filipe; SOUTELO, Luciana Castro. (Coord.). Ditaduras e revolução. Democracia e políticas da memória. Coimbra: Edições Almedina, 2015.
Resenhista
Eduardo Roberto Jordão Knack – Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Graduado e Mestre em história pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Brasil. Atualmente, está em pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Pelotas, Brasil. E-mail: eduardorjk@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
LOFF, Manuel; PIEDADE, Filipe; SOUTELO, Luciana Castro. (Coord.). Ditaduras e revolução. Democracia e políticas da memória. Coimbra: Edições Almedina, 2015. Resenha de: KNACK, Eduardo Roberto Jordão. Batalhas pela memória: ditaduras, revoluções e democracias. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 17, n. 1, p. 183-187, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]
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