Discutindo a História: escrita e métodos | Em Tempo de Histórias | 2010
O destaque, nos jornais matutinos, para os estudos sobre o carro elétrico não tarda em ser substituído por novas manchetes. As eleições presidenciais e o embargo econômico ao Irã dividem espaços na televisão com as chamadas publicitárias, McDonald‘s, I‘m lovin‘s it. Em um simples deslocamento pelo centro da cidade, a sucessão de imagens captadas pelo observador aponta o excesso informativo e a velocidade do tempo vivido. Na dinâmica seletiva da memória, a efemeridade dos fatos não encontra acolhimento, e o próprio cotidiano apenas conduz o indivíduo em sua vida de desacontecimentos.
Ireneo Funes, o personagem memorioso de Jorge Luís Borges, apresenta-se como o avesso da condição apresentada, mas, tampouco, é aquilo desejado. Esquecimentos e lembranças compõem a historicidade humana, são categorias que alicerçam as identidades. Enquanto que um passado desventurado pode produzir traumas sobre o presente, são de vivências alegres que se formam as saudades. De um ou de outro modo, a experiência constrói-se tão somente quando o vivido (social ou individual) passa a ser internalizado. Qual a relação, portanto, entre o tempo social e aquilo que uma sociedade ou um grupo julga digno de registro, de memória, de internalização e de orientação das práticas?
Não é preciso uma investigação muito aprofundada para se verificar que as diferentes experiências sociais proporcionam formas de temporalidades outras, para além daquela marcada pelos ponteiros do relógio. A sensação de que o dia escoou mais rapidamente que o normal é um exemplo da subjetividade no trato da questão. O tempo, como sublinhou o sociólogo Philippe Zarifian, é uma dimensão indispensável a todo fenômeno social 1. Aqui se mostra uma das faces da atual conjuntura. Ao passo que se tem a impressão de um super-aceleramento do tempo, também os desacontecimentos, que em nada somam à experiência, oferecem ao cotidiano a fisionomia de estagnação. Mas a velocidade que causa vertigem ainda é desassossego, desestabiliza expectativas, fragmenta narrativas.
A escrita da história não pretende desacelerar este movimento congelando suas engrenagens sobre as páginas de um texto; seus argumentos não são absolutos, também ela possui seus regimes de verdades, condiciona-se aos mecanismos de seu meio. O objeto de análise, sabe o historiador, jamais é conhecido em si mesmo, senão a partir de. Em seu métier, o pesquisador vale-se da narrativa para tecer significados de uma experiência localizada e, por ser subjetiva a própria concepção de tempo, é pela narrativa que as construções sociais de temporalidades adquirem inteligibilidade. Nesse quadro, o aporte hermenêutico contribui com a trama de narrar a experiência humana coletiva, uma vez que, como esboçou Paul Ricoeur, busca apreender os sentidos dos fenômenos em sua historicidade 2.
O próprio fazer historiográfico possui sua historicidade; seus olhares, abordagens e métodos são dinâmicos, incorporam questões do presente. Deste modo, também a narrativa historiográfica desenvolve-se na instabilidade. Um bom exemplo pode ser observado no declínio das metanarrativas. A história global, cuja retórica da sequência de acontecimento pretendia fazer entender que a humanidade caminhava para um telos pré-determinado, fragmentou-se, tornou-se “histórias de”, narrativas localizadas. Sob o argumento de “fim da história”, passado e futuro foram reduzidos em detrimento do presente; criou-se uma espécie de “estar agora” autosuficiente, pretensamente autônomo de experiências ou de expectativas. Mas o presentismo, que na voracidade de seu canibalismo qualquer outra temporalidade devora, não é de tudo sem propósito. A burguesia internacional, conforme sublinhou Boaventura de Souza Santos, pôde aqui finalmente ver o tempo consumado como repetição automática e perpétua do seu controle 3.
A história, definitivamente, não se esgotou; mas ao pesquisador tampouco é permitido ficar alheio às forças que o rodeiam. Ao problematizar a experiência humana em seus tempos, a história reafirma-se como produtora de conhecimento válido à vida. Nesse sentido, a análise historiográfica permite questionar, desnaturalizar práticas e fenômenos já consagrados em sociedade, como o já citado presentismo.
Os estudos apresentados nesta edição da Revista Em Tempo de Histórias pretendem não apenas promover por alguns instantes a desfamiliarização do leitor com práticas do cotidiano, mais ainda aproximar experiências capazes de acentuar nossa condição. Como sabiamente nos ensinou Hannah Arendt, as particularidades individuais ou de grupos inscrevem-se sob a condição humana, uma igualdade relativa 4.
O dossiê Discutindo a História: escrita e métodos, o qual compõe a primeira parte deste volume, conta cinco textos, cujas perspectivas dialogam sobre o fazer historiográfico. No primeiro estudo da seção, o filósofo Rainri Back apresenta O jogo da historicidade, em que argumenta que existir historicamente pressupõe apropriar-se do legado da tradição. O foco sobre a linguagem ganha particular espaço no estudo; aqui, dentre as possibilidade do dizer algo, entende o autor que também o crivo dos outros deve ser considerado, isto é, “as coisas não estão a mercê do que queremos dizer sobre elas”. Ao tratar da historicidade, três autores são destacados: Dilthey, Heidegger e Gadamer. Se Back reconhece pontos importantes de discussão nas obras destas autoridades, ainda assim não os poupa de sua análise crítica, apresentando seus limites. O “ser histórico” é compreendido como a existência envolvida pela tradição na qual se formou antes mesmo de ter início a vivência pessoal e que oferece possibilidades do vir a ser. Destarte é que o jogo da historicidade refere-se à interpelação do passado sobre o presente sem que este passado ponha-se claramente visível.
Na sequência, Johnny Roberto Rosa expõe o artigo Responsabilidade Histórica e Direitos Humanos, no qual o ofício do historiador é questionado a partir dos usos da história. Não se trata de julgar valores, adverte o autor, porém se busca discutir os padrões éticossociais deste profissional em meio à importância da narrativa sobre acontecimentos coletivamente traumáticos. Os diálogos com os recentes trabalhos do professor Antoon de Beats, da University of Groningen, oferecem um rico debate em torno do impacto da Declaração dos Direitos Humanos sobre a proposta de um código de ética para os historiadores. Nas linhas do texto de Rosa a história toma sentidos que impelem ao profissional responsabilidades específicas: “pertence à responsabilidade do historiador tornar conscientes transtornos radicados nas experiências históricas negativas e reprimidas, encerrando a obrigação da revelação e, quando possível, a dissolução de tal transtorno na coerência tempora”. A função terapêutica, como argumenta em seu estudo, não se desassocia do fazer historiográfico.
Pablo Spíndola apresenta o terceiro trabalho desta seção. Em História da Cultura Intelectual, são abordadas as condições de produção das ideias e seu registro pela historiografia. Spíndola encontra na relação entre os conceitos de história das ideias, história das mentalidades e história cultural um locus de nebulosidade, de imprecisão. O autor parte então em busca de uma maior clareza sobre as especificidades das ideias enquanto objeto de estudo, desenvolvendo fecundo diálogo com as obras de Francisco Falcon, François Dosse e Roger Chartier. Mais que discutir um conceito, o estudo propõe um passeio pelos métodos utilizados pela historiografia que visaram apreender, de alguma forma, as ideias. A história é apresentada em sua historicidade. As aproximações entre a história e outros campos do saber também são contemplados. Adverte Spíndola que, ao fechar a análise das ideias ao seu contexto de produção, o historiador corre o risco de ignorar as individualidades. A história da cultura intelectual, desse modo, não se constrói pela procura de uma verdade pré-existente a ser descoberta, conquanto pelos caminhos que apresentam as possibilidades.
Rodrigo Fernandes da Silva, em Apontamentos de um Procedimento Hermenêutico-Fenomenológico, traz-nos seu recente estudo sobre a obra do grupo Chico Science e Nação Zumbi. Sua argumentação não se prende à contextualização do movimento manguebeat, mas focaliza o aspecto estético e político do grupo pernambucano. Dentre os conceitos trabalhados pelo autor, um instigante caminho à pesquisa é encontrado na noção de “afrociberdelia”, pois, como entende Rodrigo Silva, conjuga tanto valores da modernidade como da tradicão. Um passado de resistência negra, exemplificado sobretudo na figura de Zumbi dos Palmares, ressoa nos acordes elétricos de um tempo moderno: “o afro-futurismo por sua percepção originária quanto ao passado, re-abre em fissuras os prédios, os carros, as indústrias e injeta a intensidade primitiva de nossa ancestralidade em cada fissura aberta para a construção de um novo software chamado afrociberdelia”. As discussões do autor transitam entre a história e a filosofia, travando, em diversos momentos, conversações com obras de Edmund Husserl, de Gilberto Freyre, de Walter Benjamin e outros.
Fechando o dossiê, Tati Lourenço da Costa apresenta Ecos da Foto, em que discute o fazer historiográfico a partir da memória, enquanto categoria de análise, e do recurso às fotografias e entrevistas orais. No estudo, a autora compartilha parte de suas experiências no projeto “Memórias da Cidade-ecos”, realizado em Londrina no ano de 2007. O olhar sobre os álbuns de família constitui importante peça no trabalho da autora, as fotografias são elementos construtores de memória, de narrativas, e fontes de integração entre gerações.
Em “Artigos Livres” quatro estudos são apresentados, iniciando-se pelo trabalho Anchieta, José do Brasil, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Fernanda Uarte de Matos. A exposição tem como objeto o filme homônimo produzido no Brasil em 1977. Sob o contexto da ditadura militar vivenciada no país, as representações e memórias vinculadas à película são questões discutidas pelas autoras. Ao tratar de uma filmagem como objeto de pesquisa, Fleck e Matos compreendem que o conteúdo desta vai além do controle de seus produtores; em Anchieta, José do Brasil mostram que, mesmo sob um ambiente de vigilância, isso não ocorreu de forma diferente.
Fabiana Francisca Macena contribui com seu artigo Além do Modernismo Paulista. A autora traz um texto crítico à historiografia que concede ao modernismo brasileiro um fenômeno exclusivista da cidade de São Paulo e sacralizado, em parte, pela memória. Macena parte do entendimento de que a modernidade não se acomodou unicamente no âmbito estético e deve ser pensada como construtora de sentidos que abarcam outros campos da experiência social. O período da Belle-Epoque (1907-1914) no Rio de Janeiro é o recorte de sua pesquisa, e a revista Fon-Fon seu objeto de análise.
Na sequência, Emília Saraiva Nery expõe o estudo The Doors, Joy Division e Nirvana nas Recusas do Fim do Tempo Juvenil. A autora encontra nas canções dos grupos musicais selecionados evocações de desejos que vão além dos impulsos individuais, são expressões de uma coletividade, de uma identidade cunjuntiva, particular aos jovens da segunda metade do século XX. Nery toma a ansiedade identificada entre grupos da juventude como perspectiva para interpretar a relação entre a consciência de enraizamento na história e o desejo de ultrapassar tal condição. O sentimento de ânsia é compreendido como um rito de passagem particular à cultura ocidental. Nas palavras da autora, “o sentimento de uma perda do referencial da identidade individual, o ‘eu’, que sob a ação de uma temporalidade irreversível culminaria numa morte ou fim irremediável ocasiona também o sentimento de melancolia”.
Encerrando a seção, Marinelma Costa Meireles apresenta o artigo Escravidão, Mistura Racial e Etnica e Hierarquias no Brasil. A autora propõe uma discussão em torno das identidades de escravos africanos e de seus descendentes, buscando compreender os meandros de sua formação a partir das relações comerciais escravistas e do cotidiano vivenciado na sociedade brasileira. Meireles demonstra que os espaços sociais foram pautados no Brasil escravagista não apenas pela diferenciação entre escravo e homem livre, mas ainda pela distinção entre os próprios africanos e seus descendentes.
A edição de número 16 traz ainda uma entrevista com o professor José Carlos Reis, realizada por Eric de Sales. Em uma conversa descontraída, Reis comenta sua carreira, experiência como historiador, e recentes trabalhos. Teoria e historiografia são alguns dos pontos discutidos no diálogo entre Sales e Reis.
Na seção Resenha, Johnny Rosa comenta a obra La Europa Cosmopolita, de Ulrich Beck e Edgar Grande. Humanismo Cosmopolitia é o título dado por Rosa ao seu estudo, que interage também com os estudos de Jörn Rüsen.
Gostaria, por fim, de agradecer aos amigos e colaboradores que participaram direta ou indiretamente da realização deste volume, assim como desejar uma ótima leitura a todos!
Notas
- ZARIFIAN, Philippe. Temps et Modernité: Le temps comme enjeu du monde moderne. Paris: L‘Harmattan, 2008.
- RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Porto: Editora Rés, [s/d].
- SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
- ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.
Organizador
Paulo Raphael Feldhues
Referências desta apresentação
FELDHUES, Paulo Raphael. Apresentação. Em Tempo de Histórias. Brasília, n.16, p.6-11, jan./jul. 2010. Acessar publicação original [DR]